Da Cabula (trechos)

FILOMENA - E essas regras humilhando?.. Vou entender nunca... Só serve pra arrochar com a cabeça da gente. Se escrevo "as faca" não tá na cara que é mais de uma faca? Já tô falando "as". Mas não, tem que meter um S lá no fim da outra pa­lavra, obrigação de complicar. E as letra?! Tem cada praga indecisa: já viu o H? Tem vez que silencia, fica ali só de enfeite. Outra hora vem e chia. Depois chega rouco. Dobra a língua. Vich ... Nem comento do J e do G, do X, do C ... Vou tentar não passar do chão da linha, não tremer o lápis.

 

O sono vem pesando em suas pálpebras. Filomena começa a cabecear, dar piscadas longas. Enquanto parece perder a consciência, a mão se mostra cada vez mais segura, o lápis manuseado com destreza pas­seia no brochura. Escreve. Após um tempinho pra redação, projeta-se no fundo do cenário, desenrolando-se como um papiro, uma enorme folha de caderno com dois parágrafos. Em cada linha, frases escritas em linda letra de mão. Surge a Entidade, totalmente coberta de flo­res vermelhas, com uma roupa de mergulhador coberta por flores dos tornozelos e pulsos até o pescoço. Ela vem até a mesa, pega o caderno e começa a lê-Io, enquanto a luz focada sobre a mesa e o fogão se apaga. Ao fundo, os dois parágrafos escritos são aqueles que a entidade começa a ler no caderno e o que a trupe interpreta, entrando e tomando conta da cena. A estória continua sendo lida pela Entidade Flores Ver­melhas, indo além do que se mostrava nos dois parágrafos projetados ao fundo, desenrolados na folha de papiro-caderno.

 

FLORES VERMELHAS - Mulheres de leveza majestosa, briosas. Braceletes esplendorosos. Brincos de contas de penas. Missangas retocavam tornozelos. Búzios torneavam pulsos negros. Colares vermelhos louvavam. Femininas noites estreladas. Flores e tranças adoçavam na cabeça um altar de Beleza. Panos das costas esvoaçavam, carinhavam a curva dos ombros soberanos.

 

Formavam a roda. Em comunhão festejavam, espocavam gritos e gargalhadas. Até se aninharem em cadeiras esculpidas por mestres. Desciam cachoeiras de suor, minava na cor o cheiro de vida, frenesi. Então apenas os homens dançavam, recebendo no peito as pétalas que elas ofertavam.

A terra vibrava na ventania da dança. O sol quentava ao redor do planeta, os dançarinos giravam ao redor do sol. A eternidade se entrelaçava no ritmo, morando na ginga, na cintura, nos saltos graciosos, na saúde generosa dos atabaques versados, repicava no agogô. A liberdade e a gratidão bailavam nas frases do corpo, ouvindo com os poros. Namorando o espaço, semeando proteção. Música cheirosa abria caminhos.

(Da Cabula.)

 

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