A valorização da identidade étnico-cultural em A caixa de surpresa e Lápis de cor, de Madu Costa

 

Nathália Dias*

 

Escritora, “contadora” de histórias e educadora ligada principalmente à literatura infanto-juvenil, Madu Costa trata a afro-brasilidade de várias formas em suas obras, e se dedica a participar de projetos e eventos que objetivam o reconhecimento e a expansão de tal campo artístico de nossa literatura. Envolvendo-se em espetáculos de teatro e ministrando oficinas de contação de histórias, a autora busca incentivar não só a leitura em meio às crianças, mas, também, a produção de textos irrigados pela arte imaginativa. O trabalho de Madu quer difundir a afirmação racial, e a infância é o ponto de partida para a mudança da negação e a transformação da realidade. Os livros A Caixa de Surpresa (2009) e Lápis de Cor (2012), publicados pela editora Nandyala, propõem situações que têm crianças como protagonistas.

A Caixa de Surpresa traz a jornada de Victor em busca de “um presente mágico para aquela pessoa tão especial” (COSTA, 2009. p. 8). O menino não consegue achar nada interessante para presentear sua professora e chega até a cogitar dar um de seus tesouros: sua coleção de conchinhas, pedras, botões e tampinhas de jogo de botão. No entanto, ele não consegue se desfazer de nenhum daqueles objetos que são tão preciosos e cheios de memória. Então, ele decide criar um presente mais previsível, monta um buquê, mas, este murcha e o menino logo desiste da ideia. Determinado a encontrar um presente, Victor guarda em potes de vidro cheiros, nos olhos cores, na pele, nas roupas e nos cabelos a chuva e tenta, ainda, alcançar um arco-íris. A noite se aproxima e com ela uma referência ao mito de São Jorge é inserida de forma sutil à pequena narrativa.

Ele ainda tinha um pouco de tempo para encontrar o presente mágico para aquela pessoa tão especial. Depois que toda a luz se recolheu do céu, trocando o cenário e deixando o dragão continuar a sua eterna luta contra o cavalo de Jorge, o menino, cansado, também se rendeu... (COSTA, 2009. p 8).

Ao descrever metaforicamente a chegada da noite e incorporar brevemente a imagem da luta entre Jorge e o dragão na lua, a autora restabelece ligações entre o negro contemporâneo e suas raízes culturais africanas relacionadas à tradição oral. O mito conserva uma memória comum e, ao trazê-lo para o texto, Madu promove o resgate de uma identidade cultural a partir da referência criada.

O menino volta para casa, dorme e sonha. A construção discursiva da descrição de tal sonho é feita a partir de opções vocabulares carregadas de valores étnicos e culturais, Victor “sonhou morangos silvestres, amoras maduras, broa de fubá, canjica, manacá em flor...” (COSTA, 2009. p. 10). A palavra “canjica”, por exemplo, diz respeito a uma comida difundida na culinária brasileira, contudo, o termo é oriundo do banto (kanjica). Os bantos são um grupo etnolinguístico localizado principalmente na África Subsaariana, que tem como língua materna uma língua da família banta. Algo semelhante acontece com o uso simbólico da palavra “fubá”, que é também africana, originária da língua Kimbundu, e refere-se a qualquer espécie de farinha. Dessa forma, ao inserir palavras com tanta representatividade identitária, a autora cria pontes histórico-culturais de comunicação com a criança leitora. Segundo Eduardo de Assis Duarte,

A linguagem é, sem dúvida, um dos fatores instituintes da diferença cultural no texto literário. Assim, a afro-brasilidade tornar-se-á visível já a partir de uma discursividade que ressalta ritmos, entonações, opções vocabulares e, mesmo, toda uma semântica própria, empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos na língua (DUARTE, 2008, p. 16).

Além disso, a presença de “manacá”, palavra de origem tupi, mostra que as referências culturais presentes através dos vocábulos vão além das relacionadas às raízes afro e se estendem, também, às referências indígenas. Isto posto, é possível perceber uma intenção autoral de valorização da identidade étnico-cultural a partir de marcas deixadas no texto.

No dia seguinte, Victor continua sua jornada em busca do presente mágico, lhe resta agora pouco tempo até a festa na escola. Pensativo e ainda sem um presente, ele pede sugestões à mãe e ela lhe sugere dar um abraço, um beijo, um cartão perfumado. No entanto, o menino continua sem gostar de nenhuma das ideias e a mãe já não tem mais argumentos. Quase na hora de ir para a escola, o garoto toma seu lanche, joga fora o que sobrou de cascas e caroços e em seguida parte para a festa. Na escola toda enfeitada, Victor espera até o último presente ser aberto para só então revelar o seu tão especial e mágico. Ele diz que trouxe uma árvore, vai até a mochila e pega uma caixinha com um presente esférico enrolado em papel alumínio.

- Está aqui, professora. É para você!

A professora abraçou o menino. Regou o presente com algumas lágrimas.

- A árvore está dentro do caroço, professora. É só plantar e esperar. Vai dar muitos frutos... (COSTA, 2009. p. 16).

Após acompanhar a jornada do filho em busca de um presente tão especial, a mãe se surpreende e se orgulha com o agradecimento da professora.

Naquela tarde, quando mãe foi buscar o menino, ficou surpresa quando a professora agradeceu pelo presente...

- Presente? Mas, o que foi que ele te deu?

- Ele me deu um pé de abacate, guardado dentro do caroço...

A mãe sorriu. Abraçou o menino e foram tomar sorvete... (COSTA, 2009. p. 17).

Assim como em A Caixa de Surpresa, o livro Lápis de Cor (2012) também apresenta uma criança como protagonista, nesse caso, Luan. Ele é ainda menino, mas é muito esperto, atento aos acontecimentos e se interessa bastante por campanhas de preservação do meio ambiente. Um dia, ao observar o corte de uma árvore em sua rua, o garoto resolve tomar uma providência e decide criar um cartaz em defesa da natureza. Luan “pegou lápis de cor e de escrever. Pegou papel. Pegou apontador. Começou a fazer o cartaz (...)” (COSTA, 2012. p. 4). No entanto, enquanto desenha, o menino cai em uma pequena reflexão; quanto mais lápis e papel ele gasta na produção dos cartazes em defesa do verde, mais árvores se perdem em lápis e papel. Ao incorporar esse “problema” ao texto, a autora leva essa questão também aos pequenos leitores e promove uma reflexão conjunta, uma vez que, a literatura infantil tem como um de seus objetivos o auxílio às crianças no processo de descoberta do mundo, e, também, torná-las conscientes de si mesmas e das relações dinâmicas das quais farão parte.

Enquanto pensa em uma solução para aquele conflito, Luan escuta alguns risinhos vindos da sala.

O menino entre tonto e surpreso, vê os lápis coloridos rolando de dar risadas...

Alguns caem no chão riscando o piso com seu riso. Outros espiam da porta da caixa, com medo de sair (COSTA, 2012. p. 13).

Os lápis de cor ganham vida, se unem em coro e começam a cantar em prol da preservação da natureza. A partir da humanização dos lápis, e da cantoria em conjunto por eles produzida, a intenção de mostrar a importância do trabalho coletivo se faz presente.

Após observar todo o espetáculo colorido, o garoto aponta os lápis e vê como solução possível para o conflito em que se encontra a reutilização das cascas de lápis em seu desenho. Ao fim, desenhou árvores diversas e bem coloridas. Com o trabalho terminado, o menino resolve que, a partir daquele dia, começaria a observar mais as árvores que encontrasse em seu caminho e decide, também, começar a catar sementes para fazer mudas e compartilhar com as pessoas que, como ele, se importam com a saúde da Terra. Luan, então, guardou os materiais e foi à rua em busca de sementes, “ele sabia que não adiantava apenas ter ideias. Por isso, sem perder tempo, deu início à sua ação e... mãos à obra!” (COSTA, 2012. p. 20). A partir disso, nota-se que a questão central do livro ultrapassa a tentativa de conscientização do pequeno leitor sobre assuntos referentes ao meio ambiente e quer mostrar, também, a importância das iniciativas próprias.

Como dito anteriormente, a literatura infantojuvenil tem grande influência na construção de valores e na constituição da personalidade das crianças. Através de um processo de transferência, elas se colocam no lugar dos personagens. Quando a literatura não estabelece uma via possível de comunicação entre os pequenos e o mundo em sua volta, o não reconhecimento de si mesmos nos textos gera um sentimento de inferioridade e autorrejeição, uma vez que eles não se sentem parte de um grupo e nem aceitos pela sociedade. Sobre a ausência de personagens negros nas obras literárias, Suely Dulce de Castilho afirma que “a marginalização dos mesmos nos livros infantojuvenis produz uma realidade preconceituosa nas relações intersubjetivas estabelecidas pelas crianças e contribui para a sustentação de uma ordem racial desigual”. (CASTILHO, 2004. p. 109 ).

As ilustrações são uma das formas de despertar a identificação dos pequenos nos livros. Em Lápis de cor, as ilustrações de Josias Marinho rompem com as imagens caricaturadas constantes do negro na literatura, as páginas são bem coloridas e o personagem é mostrado de forma positiva. As ilustrações de Luan, aliadas ao texto de Madu, fogem daquelas recorrentemente criadas em que o afrodescendente é representado de forma folclórica e depreciativa. No livro, o menino negro usa roupas coloridas, é bastante curioso, alegre e consciente da importância das iniciativas próprias, o que mostra a diferença de representação em relação aos personagens estereotipados de outros livros infanto-juvenis.

Dessa forma, sendo as obras literárias uma espécie de espelho para a construção da identidade das crianças, textos que promovam a valorização étnica, como os dois aqui referidos, contribuem de forma significativa para a formação de pequenos leitores conscientes de seu papel social. Assim, a criança negra, por exemplo, conseguirá se reconhecer de forma positiva nas produções literárias e, ainda, a partir das mensagens de igualdade e respeito às diferenças, outras crianças serão estimuladas a compreender e respeitar as diversidades. Além disso, é preciso que essa proposta literária seja trabalhada em sala de aula, pois, segundo Suely Dulce de Castilho, é necessário “incorporar outras perspectivas de leituras que rompam com os silenciamentos e preconceitos raciais existentes nas literaturas tradicionais” (CASTILHO, 2004. p. 112). Porém, mesmo com o estabelecimento da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileiras nas escolas, é notável o descompasso entre o número de obras publicadas e o número adotado pelas instituições de ensino. Tal situação reforça silenciamentos que vão além da temática em questão, permeiam o espaço e o material pedagógico e dificultam, ainda mais, a conscientização e o combate à desigualdade social.

Referências

CASTILHO, Suely Dulce de. A representação do negro na Literatura Brasileira: Novas Perspectivas. In: Olhar de professor. Ponta Grossa, p. 103-113, 2004.

COSTA, Madu. A Caixa de surpresa. Belo Horizonte: Nandyala, 2009.

______. Lápis de cor. Belo Horizonte: Nandyala, 2012. Ilustrações de Josias Marinho.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea: Relações Raciais. Brasília, n 31, p. 11-23, janeiro/junho, 2008.

LIMA, Maria Nazaré. SOUZA, Florentina. Literatura afro-brasileira. Brasília: Fundação Cultural Palmares; Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006.

* Graduanda da Faculdade de Letras da UFMG.

Texto para download