Contra o memoricídio

 

Cátia Maringolo*

 

Gotas

Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
a chuva e o vento
purificam a terra
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
Orixás iluminam e refletem-me
derramando
gotas
iluminadas de Axé no meu Ori

Miriam Alves

2011

Com a certeza de que Orixás

nos iluminam

e nos refletem

(nas histórias e vidas

das mulheres negras aqui presentes)

derramando gotas iluminadas de Axé

em nosso Ori,

seguimos,

juntas!

 

 A história das mulheres negras no Brasil, na grande maioria das vezes, reverbera processos contínuos de invisibilidade, apagamento e silenciamento, seja numa quase que disseminada percepção (e falsa afirmação) de que não temos relatos e narrativas suficientes de existências negras quanto na de que essas mesmas experiências e existências são relampejos raros e insuficientes na colcha de memórias e histórias que compõem o aparentemente homogêneo tecido nacional brasileiro.

Porém, o que o presente livro contundentemente demonstra é que as várias histórias de mulheres negras brasileiras não podem ser compreendidas como uma de inexistência, já que refletem uma multiplicidade de possibilidades de existência, de criação e consolidação de redes de solidariedade, apoio e afeto. E o que esse livro nos permite compreender é que a vida das mulheres negras aqui selecionadas são vidas de amor e da revolução inscritas na reivindicação de afirmarmos que para além de (R)existirmos, EXISTIMOS e amamos. Porque o “o amor é uma tecnologia de guerra (cientistas sub notificam arma-biológica) indestrutível::” (Nascimento, 2017).

Temos tecido nossas vidas a partir dos fios da coragem, da luta, das memórias e existências de nossas mais velhas, nossas ancestrais, num tempo e espaço que se expandem para além do que podemos (mesmo se quiséssemos) agarrar com nossas mãos. As mulheres negras que se fazem presentes e presentificadas nos quarenta e um relatos biográficos deste livro, nos permitem acessar passados emancipados jamais esquecidos e nos faz ter esperança por futuros que talvez jamais tenhamos nos permitido conceber enquanto possibilidades de existência.

Para além de falarmos sobre REsistências, interessa-me profundamente falar de múltiplas, variadas e multicoloridas EXISTÊNCIAS de mulheres negras brasileiras, como as biografias presentes em Narrativas Negras nos permitem vislumbrar. Costurada pelas memórias de Dandara, Maria Felipa de Oliveira, Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Maria Firmina dos Reis, Chica da Silva, Carolina Maria de Jesus, Marielle Franco, Marta dos Santos, Conceição Evaristo, Mãe Stella de Oxóssi, dentre outras, Narrativas Negras se constrói pontuando como as variadas vivências e experiências de vida aqui presentes são profundamente afetadas por múltiplas estruturas de discriminação e pela interseccionalidade de matrizes de opressão como o machismo, o cisheteropatriarcado, a misoginia, pelo racismo estrutural e estruturante, pelo colonialismo, pelo capitalismo, pelas violências físicas, psicológicas, de classe, estruturais.

Entretanto, Narrativas Negras também nos possibilita enxergarmos em Dona Ivone Lara, Geni Guimarães, Neusa Santos Souza, Elza Soares, Mãe Beata de Yemanjá, Aída dos Santos, Sonia Guimarães histórias de mulheres em oposição a processos históricos de desumanização e destruição, que tornaram nossos corpos, nossas mentes, saberes, conhecimentos, nossa inventividade, criatividade e astúcia em mercadoria, em objeto e coisa. Narrar essas histórias é também um processo de humanizar existências de mulheres negras, mulheres que foram (ou são) mães, doutoras, contadoras de história, guerreiras, atletas, acadêmicas, donas de casa, escritoras, mães de santo, lavadeiras, empregadas domésticas, artistas, criadoras e possuidoras de diversos saberes e conhecimentos, que resistem a processos contínuos de esquecimento e apagamento.

Ouvir (e narrar) essas histórias é uma tentativa também de decolonizar nosso conhecimento, de reivindicar existências, de versar sobre a importância (e porque não urgência) da representatividade, não enquanto um discurso raso, liberal e capitalista de diversidade, mas como prerrogativa para pensarmos sobre nossas existências, e mais amplamente, sobre nossas existências e vivências enquanto sociedade brasileira, além da imensa necessidade de oferecermos e acolhermos narrativas e discursos emancipatórios. As vidas aqui presentes não podem ser apenas assumidas enquanto práticas pedagógicas antirracistas (pois isso significaria colocar mais um fardo sob ombros já tão oprimidos e explorados), mas, parece-me, como uma urgência de conjuntamente praticarmos políticas e ações revolucionárias emancipatórias, antirracistas e feministas.

As oralituras de mulheres negras (a resistência de narrativas para além das prerrogativas normalizadoras e excludentes da cultura letrada) representam umas das mais significativas formas de subversão e oposição ao etnocídio e ao memoricídio. Ao narrar suas histórias, seja por meio de contação de relatos orais, por cantos ou por escritos, por meio de biografias, poesias, pela palavra dita ao pé do ouvido ou aquela declamada em voz alta enquanto seguimos com nossos afazeres diários, as mulheres negras possibilitam outras visões sobre suas experiências, sobre suas histórias, e principalmente sobre seus tempos e suas vidas, e como tal sobre nossas vidas, nosso tempo, nossos anseios.

No Festival Literário Internacional de Belo Horizonte (FLI-BH) realizado em 2019, a escritora Eliana Alves Cruz, uma das mais proeminentes escritoras da contemporaneidade, falava sobre a escrita de seu romance de estreia Água de barrela, vencedor em 2015 do prêmio Oliveira Silveira, da Fundação Palmares. A obra conta a história de sua família, desde o século XIX até os anos 2000. Durante sua fala, Cruz nos diz que sua existência, sua condição enquanto escritora, deve-se a estratégias empregadas por suas ancestrais, mulheres negras, para lhe garantir um futuro, para lhe possibilitar viver. A escritora enfatizou sobre compreender que era por causa das estratégias de suas ancestrais, desde o período colonial, que hoje podia estar na FLI, falando sobre sua escrita, sobre suas obras, sobre sua família. Interessante pensar que, por mais que as vidas das pessoas negras da diáspora seja marcada pela incontornável presença de uma morte anunciada, a autora frisa a importância da VIDA como tecido memorial de sua escrita.

As múltiplas estratégias de futuro empregadas por mulheres negras nos possibilitam enxergar essas vidas pelo viés da criatividade, dos saberes, da resistência e da resiliência, não pela ótica da mistificação ou da desumanização, mas pela perspectiva do agenciamento, da ética, da reivindicação, da liberdade, apesar das amarras e das constrições. Nos permite falar não de mortes, mas de vidas, de afetos, de cuidados e amor. Porque, talvez, ainda precisemos, como nossa liberdade, como o direito a nossa vida e a dos nossos, reivindicar nossos amores, afetos, nossas memórias e histórias:

Amor nasce enfeitando a gente, / Colorindo os dias e as noites. / Com o tempo o amor vai escorrendo / entre os dedos, / escapando como água, / pelas frestas das nascentes. / Vai feito correnteza / Em busca de abrigo, / e deságua na entrega, / depois começa e termina, / de novo e de novo” (Elisa Pereira).

 

São Paulo, junho de 2022

 

Referências

COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Narrativas negras: biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras. Curitiba: Voo, 2020.

NASCIMENTO, Tatiana. “Cientistas”, 2017. Disponível em: https://palavrapreta.wordpress.com/2017/09/24/cientistas/. Acesso: 31 de julho de 2020.

PEREIRA, Elisa. Memórias da pele. Lisboa: Chiado Books, 2018, p. 92. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/24-textos-das-autoras/1156-elisa-pereira-textos-selecionados. Acesso: 31 de julho de 2020.

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* Cátia Bocaiuva Maringolo é professora, Mestre em Letras, Literatura Brasileira, pela UNESP e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. Como tradutora, é responsável, entre outros trabalhos, pela versão brasileira de Erguer a voz: pensar como feminista, pensar com negra, de bell hooks (2019).

 

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