Margens da história: 

A revisitação do passado na ficção afro-brasileira1

 

 

Eduardo de Assis Duarte*

Mas Tia Bilina nunca olha lá pra baixo.
Nem pra frente. Nem pros lados.
Passa o bêbado falando doideira,
passa o moleque trepado na Uzi israelense,
passa a menina de 12 anos exibindo o barrigão lustroso…
e nem é com ela.
Seus olhos olham pra dentro do tempo,
pra dentro da mina de onde brotava aquela água.
Nei Lopes

A revisitação do passado como senha para a busca daqueles recônditos ocultos nos discursos estabelecidos; esforço de compreensão da dinâmica histórica desde os começos até as heranças vivas no presente, em sua concretude material, social e, também, subjetiva; olhar indagador sobre aquele continente emudecido pelo tempo em busca de seus porquês, na pista dos porquês de agora. Encarada desta forma, a mirada rumo ao ontem da história pretende entendê-lo como antevéspera do hoje e não como monumento petrificado. O que para muitos é página virada, ainda não passou para os que almejam trançar roteiros de frente para trás, suplementares e alternativos à estrada real da verdade instituída. Roteiros estes traduzidos em formas distintas de literatura.

Este é o projeto que move boa parte das narrativas de autoria afrodescendente empenhadas em constituir uma especificidade frente aos discursos vigentes no corpo multifacetado da literatura brasileira. Não é de hoje que muitos desses escritores persistem nessa identificação que, arriscando-se a cair na univocidade própria às essências, se abriga em termos como “negra”, “afro-brasileira”, ou, mais recentemente, “negro-brasileira”, para demarcar um território literário onde tenham vez enquanto perspectiva e linguagem da diferença étnica e cultural. A recuperação crítica do passado torna-se uma constante na edificação de narrativas que se querem dentro e fora da literatura brasileira, como argumenta Octavio Ianni (1988). Tais textos rejeitam o tempo pretérito enquanto totalidade monológica. Ao lê-lo a partir do presente, buscam rastros e resíduos de um passado que não quer passar. Este tempo vive numa memória coletiva distinta daquela história do Brasil que faz do treze de maio de 1888 algo como um happy end festivo e apaziguador.

O ímpeto de narrar os começos e os fins das edificações históricas figura, entretanto, como verdadeiro leit motiv do romance brasileiro canônico desde seus começos. De Alencar a João Ubaldo Ribeiro, aí inclusos entre tantos, Jorge Amado e Guimarães Rosa, a presença do passado serviu quando nada de condimento a enredos diversos, fundacionais ou não. Doutra parte, não há como negar, em pleno século XXI, o caráter de narrativa inerente ao discurso historiográfico. Ficção e história via de regra mesclam suas águas no estuário discursivo das narrativas do Brasil, verdadeiras ou não, pedagógicas quase sempre, sobretudo se descartarmos como ornamentais os mitos da imparcialidade científica e da neutralidade da palavra ficcional ou poética.

Um breve exemplo: acomodado no range-rede de um passado quase feito conto de ninar, Riobaldo traz suas lembranças para os olhos (e, pretensamente, para os ouvidos) do “senhor” que o lê. Cabe a este, igualmente refestelado no deleite solitário da recepção, “por tento” na colcha de relatos que vê desfilar com rara beleza nas páginas roseanas. Tais exercícios de memória não se voltam, contudo, para as grandes demandas coletivas, vinculadas ao processo histórico. O mythos da procura presente na obra aponta para aquela “busca do sentido da existência” que marca a tradição do grande romance ocidental, cujo apogeu se dá no alto modernismo de que é um dos exemplos entre nós o autor de Grande sertão: veredas.

Ao contrário do tom que marca a fala de Riobaldo – jagunço aposentado cujo conhecimento repousa na experiência adquirida – Tia Bilina, a personagem de Nei Lopes em epígrafe, traz no olhar a amargura de um saber impotente perante a realidade que a cerca. Em “Até a água do rio”, do livro Vinte contos e uns trocados (2006), ela vive cercada de fatos consumados para cuja compreensão compartilha seu discurso com o dos demais personagens. O texto de Nei Lopes mescla falas e tempos distintos, num dialogismo entre passado e presente que dá ao conto ares de crônica histórica inusitada e plural. Com isto, só aparentemente o depoimento de Tia Bilina se desgarra da paisagem da favela por onde desfilam os bêbados, a barriga lustrosa da grávida de doze anos e ainda os meninos drogados e armados pelo narcotráfico. A memória da velha negra funciona como senha que abre a porta do outrora para trazê-lo até a berlinda onde se digladiam os novos donos do espaço marginal em que construiu sua morada. Indagada sobre o rio, lembra da água “limpinha, fresquinha, boa de lavar, cozinhar, beber, molhar a horta” (LOPES, 2006, p. 11), que ali jorrava quando chegou. E logo sua fala remonta aos começos do povoamento:

Ninguém nunca soube direito como isso aqui começou. Veio um, que trouxe o outro. Outro que trouxe o um... Minha mãe dizia que naquela época a maioria era filho ou neto de africano. Meu bisavô mesmo, ela dizia que era um nego alto, forte, bonito. E que ele era de Moçambique... Depois é que começou a vir esse povo do Norte, da Paraíba, do Espírito Santo. (Ibidem, p. 13, grifos do autor).

A existência de uma voz narrativa negra é por si só um fato inusitado na ficção brasileira, mesmo contemporânea, como atesta a pesquisa de Regina Dalcastagnè (2011) realizada em 258 romances publicados entre 1990 e 2004. Já o texto de Nei Lopes não apenas traz esta voz, mas a recobre com uma autoridade próxima do testemunho. Uma vez fora da senzala, a personagem se integra à constituição de um novo território – o morro – espaço apossado, que tem na transgressão sua marca de origem. Pretensamente destinado a se integrar ao novo mundo liberto de senhores e feitores, é antes de tudo lugar dos desvalidos, marcado pelo abandono e consequente anomia; terra de todos e de ninguém, palco do embate cruento entre os princípios da liberdade e da propriedade. O conto-crônica busca narrar as fontes dessa anomia cada vez mais traduzida em violência e, para tanto, vale-se dos relatos dos mais velhos, como em “Gurumba Cúria Mataco”, também da mesma coletânea:

Quando compadre Calixto chegou, ela já estava lá, e ele foi deixando. Ninguém sabia de onde veio, sua idade e quem era direito. Uns diziam que isto tudo aqui tinha sido uma grande fazenda onde ela foi escrava. Tudo foi acabando – fazenda, escravidão, Floriano, Pereira Passos, Getúlio – e ela foi ficando”. (Idem, p. 35).

O recurso aos remanescentes da escravidão faz o passado surgir em carne e osso, inscrevendo uma memória marginal que apresenta seu registro e se posiciona frente às mudanças em curso. O texto se faz ainda com o depoimento dos pretos velhos, tornado causo e lembrado pelos mais jovens. Nestes momentos o tom sobe e a crueldade do passado aflora sem meias palavras:

Meu velho contava que compadre Calixto veio de Minas. E dizia que era neto de escrava. De escrava com senhor branco, fazendeiro, que estourou a avó dele, novinha, e depois deu pro filho comer. Meu pai dizia que ele contava isso rindo, na sacanagem, quando tomava umas e outras, mas que via lá dentro do olho dele a raiva borbulhando, querendo azedar. Mas aí eles mudavam de assunto. (Idem, 2006, p. 33).

A passagem, mais uma entre tantas presentes em Nei Lopes e demais autores afro-brasileiros, põe em cena a face oculta do modo de produção escravista, em grande medida responsável pelo processo miscigenador que caracteriza a formação do povo brasileiro. No entanto, a violência de gênero, a vitimar em especial as mulheres, persiste passados os séculos e se reproduz por entre os becos e esquinas que ocupam a memória de Tia Bilina. Voltemos a ela para trazer à tona o passado recente e a figura de Beiçola – molequinho mais escuro que os irmãos e, por isto, “sacaneado o tempo todo.” (Ibid., p. 18). O garoto cresce e não deixa por menos:

Tinha 13 para 14 anos e só andava doidão. Não respeitava ninguém mesmo! Batia na mãe, roubava dinheiro das mulheres, tomava bolsa de compras. E tudo isso garantido no bagulho que cheirava, no revolvão que não largava e nos companheiros dele lá. Teve um dia que o Batalhão ocupou o morro. E umas meninas aí, sem juízo, bateram palmas, cheias de graça com os peeme. Só que eles foram embora. E aí o Beiçola e a turma dele barbarizou elas todas. E ainda botaram elas nuas na rua, pra todo mundo ver. (Ibid., p. 19)

Confrontadas, a história de Calixto e a cena de Beiçola, ambos ausentes no momento da enunciação, remetem, cada uma a seu modo, ao moleque Prudêncio, personagem de Machado de Assis. Na infância, torturado e tratado como animal pelo sádico senhor; mais tarde, adulto e alforriado, compra outro negro e nele reproduz o tratamento recebido. O episódio expõe a argúcia machadiana em condenar a escravidão como processo de embrutecimento que faz da vítima o futuro carrasco. E, longe de idealizar a criança torturada, mostra como o regime subsiste pela naturalização de seus métodos mesmo depois que ela, ao menos na aparência, tenha elaborado seus traumas de infância. O paradoxo se instala no momento em que a memória da dor passa a combustível do ódio no contexto da perpetuação das hegemonias étnica e de gênero.

Ao continuar servindo ao modo de produção do qual fora vítima, Prudêncio permanece escravo, agora em outra configuração. Já Beiçola vai na mesma linha e reencena o círculo vicioso. Ambos figuram como personas de uma ideologia que faz do oprimido alguém que almeja a liberdade tão somente para ocupar o lugar do opressor. Seria Beiçola um avatar contemporâneo de Prudêncio, cada qual com seu instrumento preferido? Diferentes na aparência, remetem ambos ao mesmo sistema que chancela a violência desde os tempos coloniais.

Já o trauma do estupro sofrido pela avó de Calixto surge nos olhos injetados de álcool e ódio do neto, e, possivelmente, na cor de sua pele. Mas o modo entre risonho e debochado com que narra o episódio – “estourou e deu para o filho comer” – reproduz a naturalização da violência que as atitudes do jovem bandido do morro também exemplificam e que surge condensada nas duas cenas de Memórias póstumas de Brás Cubas. A história não cessa de se repetir: o moleque Beiçola anuncia no nome os traços do ego surrado e obcecado em dar o troco. Suas atitudes resultam de um passado que não se restringe à individualidade. Remontam ao processo que atinge corpo e identidade negros submetidos ao rebaixamento histórico que os exclui dos padrões de beleza oriundos da branquitude. Num contexto de racismo dissimulado como o brasileiro, o conto de Nei Lopes condensa em poucas linhas a alienação que faz do menino mais escuro e de lábios salientes objeto de escárnio de seus próprios irmãos.

Assim, entre os flashes de memória dos mais velhos, o texto afro-brasileiro dramatiza os resíduos presentes deste passado que não passa. Tia Bilina olha vez por outra para o morro de onde descia a água límpida de sua infância para constatar que, depois dos desmoronamentos e tragédias resultantes da ocupação desordenada, “isso aqui agora está uma cidade! Água, tijolo, laje, encanamento...” (ibid, p. 11), mas “o filetezinho d’água escorrendo pela pedra dá a impressão de que é a nascente, a mina, chorando a esculhambação a que isto chegou.” (Ibid, p. 13). E conclui: “Essa vala aqui não tem jeito! Vem lá de cima. É como se fosse a vida da gente, suja, podre, fedendo... Mas está aí. Fazer o quê? E ela é o que restou do rio, minha filha.” (Ibid, p. 23). Água remete a vida; e rio a tempo. Apropriadas pelo texto de Lopes, as imagens conservam os sentidos vindos da tradição. Mas expressam também o resíduo degradado em que se transformaram muitos remanescentes do escravismo, assim como o pedaço da antiga fazenda, hoje território à margem da cidade moderna e higienizada.

Deslocada da espacialidade presente nos enredos de Nei Lopes, a noção de margem se materializa nas narrativas de Contos crespos (2008), de Cuti (pseudônimo do escritor paulista Luiz Silva), como expressão de individualidades encurraladas pelos resquícios do passado:

Sou na infância.

A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. A professora nem ao menos finge não perceber. Olha-me também. [...] A aula continua. [...] A cada palavra de seu discurso, pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um “eu” mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais. [...]

Os negros escravos eram chicoteados... – e dá mais peso à palavra negro e à palavra escravo! [...]

É você, macaco. Você é escravo – cochicha-me um aluno branco.

Sussurro uma vingança para depois e sinto, pela primeira vez, um ódio grande e repentino, metálico, um ódio branco.

[...]

Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças desprovidas de humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização.

Vinham porque o Brasil precisava de...? Vejamos quem é que vai responder...”. (CUTI, 2008, p. 160-161, grifos do autor).

Intitulado, ironicamente, “Lembrança das Lições”, o conto remete à memória que “espanca” o eu-narrador sempre que remete aos antepassados. Lembrança renovada no texto pelas “lições” que recebe da professora e dos colegas, inesquecíveis mesmo depois de adulto. À memória traumática da escravização acrescenta-se a da leitura enviesada produzida pelo discurso pedagógico, que faz da escola aparelho ideológico disseminador do racismo. Novamente dor e ódio emolduram o elo entre passado e presente, explicitado em todas as letras nas juras de vingança e mesmo no corpo do personagem, que abandona a sala de aula para “defecar o desespero das entranhas” (Ibid., p. 161). Elo histórico, social e comunitário, a “estender-se pelas ruas” por onde transita a narrativa. No desfecho do enredo, o personagem adulto sente na pele a falta da formação que não teve e presencia o antigo colega, também negro, cair na marginalidade e na prisão.

Esse sentido de comunhão com o semelhante constrói elos temporais e afetivos mediados pelas condições sociais vividas no presente. Assim, a escrita afro- brasileira coloca o sujeito da enunciação a falar por si e por seus pares, princípio também adotado em textos de autoria afrodescendente de outros países. A referência a este “eu mais amplo” contribui para identificar o narrador com a tradição dos griots africanos – sábios guardiães da memória comunitária, porta-vozes de seus semelhantes, e sujeitos atentos ao poder dos discursos. Daí a persistente revisitação do passado, traço programático e gesto político de enfrentamento com a ideologia da escravidão benigna e seu correspondente posterior – o mito da democracia racial. Desta forma, a recorrência ao passado ganha um sentido próximo da tradição crítica realista e assume tons de denúncia do status quo.

É o que ocorre igualmente em Vencidos e degenerados, do escritor nordestino Nascimento Moraes. Publicado em 1915 com o subtítulo “crônica maranhense”, o romance, talvez por isto mesmo, passou ao largo da crítica e da história literárias do século XX, mais voltadas para a compreensão do modernismo, do romance de 30 e dos desdobramentos de ambos nas décadas seguintes. Por outro lado, a emergência da ideologia da mestiçagem inibiu em grande medida a discussão que é central no romance: as várias feições de um modo de produção ao mesmo tempo capitalista e escravista, bem como de seus resquícios após o término formal do regime. No livro, esse modo de produção surge flagrado em seus extremos traumáticos – a impregnar cativos e senhores, e a se transformar na aparência para impor novas formas de subjugação ancoradas no preconceito.

Considerada “documento sociológico” por Jean-Yves Mérian (2000), a narrativa tem início na manhã de 13 de maio de 1888. E penetra no clima de expectativa reinante para falar da noite mal dormida tanto nas alcovas quanto nas senzalas. E, como poucos romances brasileiros, penetra no clima que toma conta das casas e das ruas após o anúncio da Lei Áurea. Ambientado no provincianismo racista de São Luís do Maranhão, o texto mescla a confraternização de libertos e abolicionistas às reações violentas que marcam os gestos de antigos senhores e escravos: outrora espancados que agora agridem; outros que danificam ou buscam destruir os locais do trabalho forçado; ou que humilham os antigos senhores ou simplesmente abandonam o espaço do cativeiro, mesmo que o jantar esteja ainda cru no fogão... E no extremo oposto, proprietários incrédulos vendo seu capital se esvair pelas portas da frente, tanto dos casarões centenários quanto dos lares remediados cuja única poupança era a força de trabalho daquele corpo, agora sujeito livre unido à multidão. O romance apresenta um cenário distinto do que prevaleceu no discurso da história e acolhe cenas como a abaixo transcrita.

Achavam-se, naquela tarde à janela de sua residência, na Rua Grande, D. Silvéria Montenegro e sua filha caçula, de nome Silvina, uma criança gentil, faceira e inteligente, que contava apenas sete anos de idade. D. Silvéria estava fula, terrivelmente enfurecida: momentos antes vira sair pela porta afora mais da metade de seus bens, em escravos lustrosos e bonitos que ela se comprazia em quebrar os dentes. Gênio irascível, assomada e intempestiva, D. Silvéria não se conteve: deixa o marido, o velho major Montenegro a cismar, cabisbaixo, na varanda, e vai pôr-se à janela com as faces vermelhas, os lábios descorados, trêmulos, cabelos arrepanhados, olhos sanguíneos a ver magotes de negros que passavam, à-toa sem destino, a gritarem pela rua abaixo ou acima numa alucinação bem declarada. Rebenta no canto da Rua da Mangueira um grupo de abolicionistas, desfraldando uma bandeira branca, cabeças descobertas, a gritarem incessantemente:

– Viva a Liberdade! Viva Patrocínio!
– Viva a Rainha Isabel!
E o pessoal respondia: – Viva! Viva!…
E Silvina, quando o grupo passou à porta, gritou no formoso rasgo infantil:
– Vivou!
Virou-lhe a mão, rápida e violentamente a mãe.
A criança, à força da pancada, caiu banhada em sangue. É que a pedra do anel, um bonito anel de brilhante que D. Silvéria trazia na mão direita vazou um dos olhos, o esquerdo, da infeliz pequenina. (NASCIMENTO MORAES, p. 44-45).

A longa citação se justifica pelo contraste que estabelece com as imagens festivas preponderantes na literatura e na historiografia, espécie de capítulo final do propalado happy end da escravidão. Justifica-se ainda como exemplo do modo cru, advindo sem dúvida da estética do choque naturalista, com que representa o embrutecimento inerente ao sistema. A ênfase na questão se faz presente, é certo, em outros textos da literatura brasileira, mas está recoberta aqui por um detalhamento que faz de certas cenas, e não apenas esta, passagens antológicas.

O gesto da personagem condensa e eleva ao paroxismo a faceta cruel do mandonismo senhorial. Ao “cegar” a filha, a mãe deixa patente sua própria cegueira quanto ao rumo dos acontecimentos. E ao interromper a cena deste modo, o texto deixa em aberto para o leitor um sem número de possibilidades de interpretação quanto ao futuro da criança, no momento em que a família perde parte considerável de seus bens. Deste modo, Vencidos e degenerados coloca a banalização da violência como perigoso legado do escravismo em nossa formação. E supera a condição de crônica ou documento sociológico para ascender a discurso irmanado à melhor tradição romanesca.

Joel Rufino dos Santos é outro a mergulhar no espólio narrativo do passado afrodescendente. Todavia o faz a partir de um princípio paródico que não descarta o insólito às vezes próximo do fantástico e do surreal. O autor é reconhecido por seu trabalho como historiador e, ainda, pela vasta produção ficcional destinada ao público infantojuvenil, em que se destaca a biografia romanceada de Zumbi dos Palmares. Em seu romance Bichos da terra tão pequenos (2010), Rufino traz de volta a favela e põe em cena o “Morro do Urubu” – comunidade surgida desde fins do século XIX, a partir da ocupação por remanescentes das senzalas e outros migrantes. Mas o faz por uma lente sério-cômica que não dispensa o que Machado caracteriza como segredo da boa crônica, ou seja, a preocupação com o “miúdo” e o “escondido”. É nos pequenos dramas, entre amizades, amores e traições que o texto de Rufino vai enlaçando histórias individuais e coletivas. O resultado é um painel onde há espaço também para o humor, para a carnavalização do fundamentalismo cristão-pentecostal e do próprio discurso bíblico, ao mesmo tempo em que afasta o texto das representações estereotipadas da periferia, fundadas na banalização da violência tão ao gosto da cultura de massas.

Bichos da terra tão pequenos guarda, por outro lado, igual distância do modelo do romance histórico convencional. E descarta a idealização dos constituintes da narrativa, seres de papel cuja envergadura já se anuncia desde o título, tomado de empréstimo aos Lusíadas a fim indicar o princípio anti-épico que norteia a narrativa: seus personagens não posam de vítimas, nem de algozes, muito menos de heróis. Mas constituem uma mescla irregular e inconstante onde cabem, às vezes simultaneamente, mesquinhez e altruísmo, heroísmo e covardia.

O romance persegue a trajetória do garoto Vinquinho, assim apelidado devido a um defeito de nascença:

– Desgraça.
Como tinha o osso vertical da testa mais alto que o dos colegas, lhe deram um apelido:
– Vinquinho.
Incomodado, passava talco na testa muito negra. (SANTOS, 2010, p. 11).

Perseguido pela indigência, o menino do morro cresce longe da família, na adolescência ganha o nome de Sapo e mata um desafeto do futebol que o havia espancado. Na penitenciária, toma contato com presos políticos e assume-se Camilo, seu nome de batismo. Tais mudanças indiciam o crescimento do herói, que, no entanto, continua sendo Vinquinho no tratamento com a irmã. O traço infantil liga-se à ausência e desconhecimento do pai, mistério que só mais tarde a narrativa irá deslindar. O romance parte da trajetória do protagonista para encenar a vida popular carioca da segunda metade do século XX, de onde emergem a ditadura militar e a resistência dos grupos de esquerda. Mas também a malandragem, o crime organizado, os universos do samba e do futebol.

Já em Crônica de indomáveis delírios (1991), Joel Rufino retoma o artifício ficcional do testemunho e apresenta o texto como reprodução do “Diário de Roldão Gonçalo Rabelo”, mulato pernambucano partícipe dos acontecimentos narrados. Desta forma, a referência ao diário irá a todo instante se interpor entre o texto e sua recepção, bem como entre o texto e as ações – ou fatos – descritos.2 Ao se apropriar deliberadamente de suas referências, o romance se rende ao lúdico e faz ninguém menos do que Napoleão Bonaparte ser resgatado da prisão e desembarcar em Recife para conduzir a revolução pernambucana de 1817... No entanto, a primeira reflexão do general já o coloca em confronto com seus anfitriões: sem o apoio maciço do povo, ou seja, dos negros, não há como chegar à vitória. E, para tanto, somente decretando o fim do regime servil: “Abolição ou Morte” parece ser a razão sério-cômica para o conflito de várias frentes que dá fôlego ao enredo. Mais adiante, o texto dá um salto na cronologia e aporta em Salvador, em plena ebulição que envolve a Revolta Malê de 1835. Nesse cenário, e sempre mediado pelo diário/testemunho de Roldão, passa a palavra ao líder Alufá Licutã, com sua bizarra pregação de que

[...] no começo do mundo eram todos os homens pretos, a mesma Eva, Adão e seus dois filhos. Viviam satisfeitos, menos um pequeno grupo e no seio deste nasceu Iacub, nasceu para matar, roubar, criar problemas, era tão cabeçudo que nem por esta porta passava. Com quinze anos, Iacub já sabia como criar raças diferentes. Expulsaram então aquele gênio do mal para uma ilha, ele com seu bando. Sabem o que fez? Inventou a raça caiada, de pirraça deu à luz a raça caiada. À sua imagem e semelhança a fez, por isso os brancos matam, roubam e criam problemas para os outros. Em suma, pregava que o diabo é branco. (SANTOS, 1991, p. 144-145).

Regido por um princípio paródico que o aproxima de grandes narrativas do gênero e promove a reversão de sentidos estereotipados e incrustados no imaginário ocidental desde o discurso bíblico, Crônica de indomáveis delírios é mais uma faceta da revisitação histórica de viés afro-brasileiro que estamos a mapear. E, no caso, tal princípio se estende tanto à metanarrativa fundante da civilização ocidental, quanto ao próprio sentido do discurso testemunhal, aqui mediado pelo avesso carnavalizador que põe em cheque seu estatuto de verdade documental.

Voltando a Nei Lopes, além das narrativas de Vinte contos e uns trocados, o escritor também recorre à memória comunitária para construir a presença do negro em dois romances: Mandingas da mulata velha na cidade nova (2009), e Oiobomé (2010). E o faz num tom em que há espaço para o humor e a carnavalização. Em Oiobomé, denominado “rapsódia”, numa alusão nada sutil a Macunaíma, de Mário de Andrade, volta aos tempos da Inconfidência Mineira para dar início a um longo percurso em que relê os eventos que marcam a fundação do Brasil enquanto nação moderna. As ações giram em torno de Dos Santos, mais precisamente Francisco Domingo Vieira dos Santos, “negro alto e espadaúdo, de feições duras sob a testa larga” e “amigo fluminense do Alferes Xavier”. (LOPES, 2010, p. 11-12). E já no prólogo, fica o leitor ciente de que

Desde a primeira reunião, em casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, que sua presença se tornara um incômodo e um embaraço.

[...]

Paula Freire é sobrinho do conde de Bobadela e comandante do regimento de Dragões; o Dr. Maciel, que acaba de se formar em Coimbra, é seu cunhado; Gonzaga é ouvidor; Aires Gomes é juiz; Alvarenga Peixoto, Claudio e Vital Barbosa vivem de rendas, nos bolsos e nos punhos, pois são simplesmente poetas; Oliveira Lopes, Abreu Vieira e Toledo Piza são militares de patente alta; Rolim, assim como Toledo e Melo, é padre... Então o que faz aquele negro ali senão causar incômodo e mal-estar? (Ibid., p. 11-12).

Como nos delírios de Joel Rufino, Nei Lopes mescla de forma irreverente nomes e fatos históricos com sua multifacetada ficção, que ganha tons de realismo cru e denúncia logo adiante, quando, a propósito de voltar à infância de Dos Santos, o texto relata seu primeiro contato com a violência escravista:

O capataz, cada vez mais furioso, desfaz o laço que prende Tomásia ao libambo e a joga no chão.
– Vou te matar, sua negra feiticeira!
Os ajudantes já sabem o que fazer. E tão logo a escrava é arrojada ao solo, pegam-na pelos braços e pelos pés e a amarram com a corda transpassada numa trave do teto, de cabeça para baixo.
O negrinho Domingo assiste à cena, olhos esbugalhados, tremendo de horror.
[...] Ele não sabe, mas Tomásia vai ficar ali, pendurada pelos pés, sufocando, o sangue descendo todo à cabeça, supliciada até a morte. (Ibid, p. 19-20).

A cena marcará para sempre o personagem e faz dele o adulto convicto de que “a escravidão corrompe o escravo e o senhor”. Derrotada a revolução das Minas Gerais, parte o herói para o norte do Brasil, onde funda a nação negra incrustada na ilha de Marajó. Oiobomé reúne ex-escravos vindos de diferentes pontos e se faz país independente, fronteiriço ao Brasil e reconhecido pelos vizinhos. O texto rege-se pelos procedimentos da colagem e da montagem, aplicados desde os nomes dos personagens até a própria composição do enredo. Em ambos os romances, percebe-se o dialogismo a propiciar a alternância e a multiplicidade de vozes já presente no volume de contos. A heterodiscursividade que marca os contos está no foco narrativo múltiplo de Mandingas, bem como na sucessão de protagonistas que ocupa o poder narrativo em Oiobomé, a ponto do romance, publicado em 2010, terminar com uma mulher no comando do país imaginário situado no norte do Brasil.

Mandingas da mulata velha na cidade nova gira em torno de Tia Amina – ou Mãe Norata ou Oxum Toki, como era conhecida a baiana Honorata Sabina da Cruz – personagem que remete à figura algo mítica de Tia Ciata, liderança da comunidade negra do Rio de Janeiro, mãe de santo e matriarca do samba. O texto descarta a simples entronização da protagonista. Toma-a mais como referência para mergulhar no mar de histórias e personagens ligadas ao território carioca conhecido no passado como “Pequena África”.

A exemplo do que ocorre em muitos contos, o romance parte do presente e tem início com a demolição de antigo sobrado da Rua da Alfândega, centro do Rio de Janeiro, no qual os operários encontram um novelo empoeirado em volta de um saquinho de pano. Este contém dois pedaços de pele animal com inscrições em “tinta vermelha, escura, parecendo sangue, muitos rabiscos, grafismos, desenhos feito uma escrita. Dessas com que escrevem árabes, judeus, turcos, de trás para diante.” (LOPES: 2010, p. 17-18). Uma vez retirada da parede onde estava, a linha “escura e forte” ganha vida e sai “coleando”, “rápido como uma cobrinha”, a percorrer magicamente todo o espaço da “Pequena África”. O recurso remete a conhecida passagem de Gabriel Garcia Marquez e faz da linha escura e vivente uma metáfora dos muitos fios de memória que irão compor a narrativa e a figura da protagonista. Guardada num monumento que está sendo demolido – o casarão – a memória deste território vê-se reduzida aos traços apropriados pelo ficcionista.

Assim guiado pela misteriosa linha antes presa na parede que vem abaixo, o tempo da narrativa volta a 1924, momento da morte de Tia Amina e oportunidade para que “Henrique da Costa, o Costinha”, repórter da “Tribuna do Rio”, saia a entrevistar amigos e conhecidos. Os depoimentos de cada um compõem os capítulos do livro, num foco narrativo múltiplo e polifônico, a desenhar por ângulos distintos o perfil da falecida, além de por em cena figuras destacadas da comunidade negra de então. O propósito de resgate é explicitado logo na primeira matéria assinada pelo jornalista:

Ainda está por ser feito o levantamento completo da contribuição do elemento negro na formação do povo brasileiro. Quando isto for feito, muitos nomes hoje obnubilados ou desconhecidos virão às luzes. E entre eles estará o da pranteada Honorata Sabina da Cruz, a Tia Amina. (LOPES, 2001, p. 27).

O excerto condensa o projeto que embasa a narrativa e que busca reconstituir o clima dos começos do samba, dos antigos carnavais, dos cultos afro-brasileiros, além de personagens como o pai de santo Abedé, o famoso alufá Assumano, entre músicos, lideranças religiosas e comunitárias. Nesta linha, o romance adota a metaficção historiográfica e povoa o enredo com figuras da história política e cultural do país, apresentadas algumas com seus nomes civis – a exemplo de José do Patrocínio, João Cândido, Venceslau Brás, Oswald de Andrade, Antenor Nascentes e do músico Sinhô. Já outras vêm com nomes que pouco disfarçam a chave de identificação, a exemplo do personagem Dr. Herculano Moreira, “mulato escuro e forte” (Ibid., p. 91) que remete ao psiquiatra baiano Juliano Moreira. Ou ainda através de alusões ao físico, como o do companheiro de mesa de Oswald num bar da Lapa – um “nordestino dentuço, com sua voz sumidinha, de fraco do pulmão” (ibid., p. 160) –, que lembram Manuel Bandeira.

Nesta diversidade polifônica, há espaço para o ponto de vista dos afrodescendentes praticantes de cultos tradicionais, a reclamarem da forma como alguns homens de imprensa produzem matérias sensacionalistas sobre os terreiros, fato que incentiva a repressão policial. E, no caso, tem-se outra alusão a personalidade histórica, desta vez ao cronista João do Rio, autor de reportagens célebres mais tarde reunidas no volume As religiões do Rio, publicado em 1904.

A pretexto de construir a biografia de sua personagem, a narrativa se desloca por momentos distintos e percorre acontecimentos como a Abolição, a Proclamação da República, as revoltas da Vacina e da Chibata. No entanto, mais do que inscrever uma narrativa edificante e exemplar, recupera o ponto de vista dos que viveram os movimentos da história, como agentes ou meros espectadores. Ao trazer a fala muitas vezes inconformada desses personagens, o texto os resgata da condição de vítimas, ao mesmo tempo em que recusa transformá-los em heróis.

Por fim, outro exemplo de revisitação crítica do passado se faz presente em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, um dos grandes romances de língua portuguesa da década de 2000 e Prêmio Casa de las Américas de 2007. Nele, a protagonista Kehinde encarna a saga de Luiza Mahin, heroína do Movimento Negro e provável mãe do poeta, jornalista, advogado e líder abolicionista Luiz Gama, um dos precursores da literatura afro-brasileira. A ficção de Ana Gonçalves posta-se interessada à margem de ambas as biografias para com elas dialogar, embora centralize o enredo na trajetória da africana escravizada, que se liberta e tem o filho numa relação fortuita com um fidalgo de origem portuguesa. Perseguida mais tarde por seu envolvimento na Revolta Malê de 1835, deixa o menino com o pai, que, em total desapego, o vende a um negreiro a fim de quitar uma dívida de jogo. Após uma longa e infrutífera procura do filho, Kehinde retorna à África para lá assumir o nome de Luiza, e se tornar empresária de sucesso.

A exemplo de Joel Rufino e Nei Lopes, Ana Maria Gonçalves refuta o modelo do romance histórico canônico. Em vez do enredo progressivo, linear e consagrador, prefere o caminho da metaficção historiográfica, pelo qual transforma vultos históricos em personagens e os retira do panteão onde figuram como essências paradigmáticas. Passam então a seres de ficção, habitantes de um manuscrito encontrado por ocaso – como o diário de Roldão Gonçalo Rabelo – e que vem a ser o próprio romance. Nele, também se movimentam à moda de “bichos da terra tão pequenos”, tomados de empréstimo a Camões pelo texto de Joel Rufino. O tom antilaudatório propicia, por outro lado, a recusa ao discurso da vitimização pura e simples do negro. Longe da idealização e dos estereótipos decorrentes, pode o texto construir situações em que a desumanidade do sistema atinge os sujeitos submetidos no que estes possuem de mais íntimo. Kehinde convive com a violência sexual desde a infância, quando presencia o estupro e assassinato da mãe ainda em África, logo na abertura do livro. Traficada para o Brasil, se apaixona mais tarde por Lourenço, também escravo na mesma fazenda em que vive. Descoberto o namoro, sofrem ambos o corretivo aplicado pessoalmente pelo senhor:

Eu olhava aquilo e não conseguia acreditar que estava acontecendo de verdade, que o Lourenço, o meu Lourenço, o meu noivo, também tinha as entranhas rasgadas pelo membro do nosso dono, que parecia sentir mais prazer à medida que nos causava dor. (GONÇALVES, 2006, p. 172).

Além de recobrir a ficção com a autoridade do testemunho, o emprego da primeira pessoa pela voz narrativa dramatiza a tomada de consciência da personagem perante a violência. O tom inocente da menina que, ainda na África assiste à agressão da mãe pelos guerreiros inimigos, contrasta e suaviza o horror da cena. Já a narrativa da mulher estuprada, que assiste à sodomização e castração do amado, adensa a crítica, sobretudo quando a estende para além-mar e lembra o costume primitivo que transformava escravos em eunucos:

A última coisa que ouvi antes de sumir de mim foi o sinhô comentando que aquilo não era nada, que o Lourenço ia sobreviver e que no tempo dele era muito comum escravos capados, que os próprios pretos faziam isto em África.

[...] E o pior é que sei que isso é verdade, pois muitas vezes em África, principalmente em Abomé, vi e ouvi os tais capados, os únicos homens que podiam entrar nas dependências destinadas às esposas de um rei. (Ibid., p. 172).

Pelos exemplos apresentados, conclui-se que a revisitação do passado operada nos exemplos aqui reunidos se, por um lado, busca questionar a história oficial pelo que apresenta de apagamento da violência e dos efeitos deletérios da escravidão, por outro recusa o simplismo que divide a história entre o bem e o mal.

Nesta linha, não pretende inscrever a presença do negro pela via fundacional do heroísmo épico – ou de sua outra face, a vitimização propensa à representação a priori benevolente. Desde a infância em África, Kehindé é a vítima que cumpre uma trajetória marcada pela superação. Se é capaz de arroubos heróicos como o mergulho no oceano para recusar o batismo cristão no momento que o tumbeiro entra em águas brasileiras; é também a ex-escrava que, mais tarde integrada ao sistema, convive com o catolicismo e envia os filhos a escolas cristãs europeias.

Deste modo, os contos e romances integrantes do painel aqui esboçado, apesar das diferenças visíveis nas opções estéticas de cada um, evidenciam doutra parte as convergências que os aproximam. Sob a mescla e a diversidade de modos de expressão adotados, é possível vislumbrar o projeto que os impulsiona a revirar a memória da escravização e de suas consequências. E quanto a isto poderíamos lembrar ainda as narrativas de Conceição Evaristo – Ponciá Vicêncio e Becos da memória sobretudo –, de Lino Guedes, Raymundo de Souza Dantas, Miriam Alves, Oswaldo de Camargo, Lia Vieira, Luís Carlos de Santana, Aline França, Henrique Cunha Jr., Esmeralda Ribeiro, Francisco Maciel, entre outros. Revisitar o passado – com as tintas da galhofa, da melancolia, da ternura, do inconformismo ou de outras –, constitui-se em marca palpável a projetar a escrita de autoria afrodescendente não apenas rumo à “história a contrapelo” de que fala Benjamim. Projeta-a também na direção do processo, cada vez mais consistente, de edificação da literatura afro-brasileira.

Notas

1. In: SISCAR, Marcos; NATALI, Marcos (Org.). Margens da democracia: a literatura e a questão da diferença. Campinas, SP / São Paulo, SP: Editora da Unicamp / Editora da USP, 2015, p. 167-189.

2. A propósito dessa mediação, afirma Linda Hutcheon: “A metaficção historiográfica [...] ressalta a natureza discursiva de todas as referências – literárias e historiográficas. O referente é sempre já inserido nos discursos de nossa cultura. Isso não é motivo de desespero; é o principal vínculo do texto com o “mundo”, um vínculo que reconhece sua identidade como construto, e não o simulacro de um exterior ‘real’. Mais uma vez, isso não nega que o passado ‘real’ tenha existido; apenas condiciona nossa forma de conhecer esse passado. Só podemos conhecê-lo por meio de seus vestígios, de suas relíquias.” (1991, p. 158).

Referências

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DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem negra na literatura brasileira contemporânea. In: DUARTE, E. A.; FONSECA, M.N.S. (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, v. 4. História, teoria, polêmica.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LOPES, Nei. Vinte contos e uns trocados. Rio de Janeiro: Record, 2006.

LOPES, Nei. Mandingas da mulata velha na cidade nova. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

LOPES, Nei. Oiobomé. Rio de Janeiro: Agir, 2010.

MÉRIAN, Jean-Yves. “Vencidos e degenerados: um documento sociológico”. In NASCIMENTO MORAES, op. cit.

NASCIMENTO MORAES, José do. Vencidos e degenerados. 4. ed. São Luiz: CCNM, 2000.

SANTOS, Joel Rufino dos. Zumbi. 7. ed. São Paulo: Moderna, 1985.

SANTOS, Joel Rufino dos. Crônica de indomáveis delírios. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

SANTOS, Joel Rufino dos. Bichos da terra tão pequenos. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

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* Eduardo de Assis Duarte integra o Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da FALE-UFMG e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed., Record, 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (3. ed. rev. ampl., 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. Reimpr., 2021, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira” e o Portal literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.

 

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