Territórios cruzados:
relações entre cânone literário e literatura negra e/ou afro-brasileira1
Edimilson de Almeida Pereira*
"Temos sempre uma grande ansiedade de pertença, e isso
também torna difícil pensar o novo.”
Boaventura de Sousa Santos 2
Introdução
No presente artigo abordaremos uma das modalidades de criação literária através da qual autoras e autores afro-brasileiros têm inscrito sua participação na vida social e na cena literária brasileira. Ao elegermos essa vertente como tema de nossa análise queremos explicitar “o fato de que outras vozes poéticas navegam no mar da poesia brasileira contemporânea e, através de outras estratégias, também se ocupam das questões relativas à presença das culturas africanas na formação da literatura brasileira.”3 Porém, em função do recorte proposto, nos restringiremos à linha de criação que se convencionou chamar de Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, fato que não esconde as divergências em torno do emprego desta terminologia. É oportuno dizer que poetas e estudiosos contemporâneos definiram ou caracterizaram essa modalidade literária utilizando as possibilidades oferecidas pelos textos de criação (poesia e prosa) e de reflexão teórica (ensaios e entrevistas) produzidos por afrodescendentes e não-afrodescendentes.
O imbricamento de aspectos ideológicos e estéticos (tais como o entendimento da literatura produzida por autores negros como uma crítica aos mecanismos de exclusão vigentes na sociedade brasileira e a crítica aos padrões eurocêntricos empregados na construção de discursos sobre os negros brasileiros, respectivamente) têm multiplicado os modos de definição propostos para essa modalidade literária.4 A partir das obras que a constituem, percebe-se que na base da definição e da caracterização da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira sobressaem duas instâncias que, de certa maneira, se entrelaçam: a primeira vinculada à experiência histórica e social do autor, e a segunda, à produção do texto como lugar de reflexão acerca dessa experiência.
Quando o autor que se exprime é um sujeito negro, o texto se desdobra a partir daquilo que se vivencia como um sujeito negro na história, destacando-se aí a necessidade de se atualizar uma gama de discursos que a diáspora, a escravidão e a violência impediram de germinar. Por sujeito negro entenda-se aquele indivíduo que, mediante a análise das condições históricas que afetaram o seu grupo e a si próprio, instaura no texto literário a “coincidência do eu lírico com o eu-que-se-quer-negro”, aspecto que evidencia “o trânsito de uma consciência ingênua para uma consciência crítica da realidade. Do ser que ainda não é para o que quer ser.”5 A partir dessa definição do sujeito social, que se torna ator do próprio discurso, a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira se constitui, simultaneamente, como elaboração artística e como convite à mobilização política dos afrodescendentes, que se organizam para reivindicar os seus direitos sociais.
No que diz respeito à produção do texto como lugar de reflexão acerca da experiência do sujeito negro, essa vertente literária pode ser caracterizada como uma literatura de fundação. Sob essa perspectiva, o fazer literário é apresentado como uma resposta específica de um grupo a circunstâncias históricas marcadas pelo embate entre diferentes segmentos da sociedade. Os autores identificados com a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, ao mesmo tempo em que mapeiam os mecanismos de exclusão e as situações sociais adversas vividas pelos afrodescendentes, se empenham em estabelecer a crítica do modelo literário canônico. Por isso, como afirma Eduardo de Assis Duarte (apud PEREIRA, 2010, p. 73), “[a] conformação teórica da literatura ‘negra’, ‘afro-brasileira’ ou ‘afrodescendente’ passa, necessariamente, pelo abalo da noção de uma identidade nacional una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica, presentes nos manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas”.
Em termos gerais, os autores e autoras que se articulam em torno da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, além de enfrentarem os desafios próprios do fazer literário, se dão conta de que sua atividade se estende para o território da vida real. Ou seja, ao participarem de simpósios, oficinas, debates e outros eventos, colocam em cena suas visões sobre a realidade brasileira e, mais especificamente, sobre as relações dessa sociedade com os indivíduos afrodescendentes. Não por acaso, na crítica ao modelo literário hegemônico e ao sistema editorial esses autores e autoras ressaltam o desinteresse de tais setores por uma vertente literária que punge as feridas sociais do país. Isso significa dizer que os autores e autoras da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira – assim como outros segmentos autorais que se sentem excluídos – estruturam formas específicas de expressão literária (num gesto de crítica ao enrijecimento das fronteiras do cânone literário nacional) e instituem formas alternativas de divulgação de suas obras (numa atitude de repúdio a certos canais editoriais que restringem a literatura a objeto de consumo).
Sociedade e cânone literário
A análise das relações entre a literatura e a sociedade nos remete às conjunturas históricas e ideológicas que, explícita ou implicitamente, atuam na definição de ambas. Tanto a literatura quanto a sociedade, pensadas como modelos analíticos ou instauradas como realidades, se articulam, se desenvolvem e se transformam em íntima relação com os eventos históricos. Atento a esse aspecto, bem como à necessidade de reconhecer o que há de específico na literatura, Otto Maria Carpeaux (apud BOSI, 2002, p. 7) observou que a “literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir, mas não acompanhar”. O crítico salienta ainda que “cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais.” (BOSI, 2002, p. 7)
Se, por um lado, a literatura é tecida por sujeitos imersos no Tempo histórico e recebe desse tempo a motivação para firmar-se como realidade, por outro, ela é constituída por elementos próprios (visíveis através de sua forma e modos de aproveitamento da linguagem) que a tornam diferente do fato histórico ou, se preferirmos, daquilo que conhecemos como a sociedade. Em função disso, as relações entre a literatura e a sociedade não se resumem à reduplicação que uma pode fazer da outra, mas se desdobram a partir dos vínculos de interdependência que estabelecem entre si. Por essa razão, as maneiras de definir as formas literárias podem variar de um período para outro e, não raro, dentro de um mesmo período coexistem modos diferenciados de percebê-las e praticá-las. As tensões decorrentes desse quadro dão origem às diferentes tendências literárias; estas, uma vez legitimadas pelo discurso de determinados grupos, se exprimem como realidades sociais espelhando (com modificações e interferências) os conflitos e as tentativas de negociação que desenham o rosto da sociedade e das práticas literárias.
Essas breves considerações são oportunas para analisarmos os tecidos literários – particularmente o da chamada Literatura Negra e/ou Literatura Afro-brasileira – que roçam a pele do cânone literário brasileiro. Este – cujos contornos mais decisivos são traçados a partir da primeira metade do século XIX – reflete as correntes estéticas dominantes de seu tempo, em geral, oriundas dos cânones literários europeus. Foi sob as lentes do historicismo romântico (móvel de busca das identidades nacionais no ocidente) que vimos nascer as linhas aceitas, até aquele momento, como indicadoras da literatura nacional brasileira. Sendo assim, a relação entre autonomia nacional e formação de um cânone literário próprio, após 1822, tornou-se “compreensível porque os críticos nacionais, sacudidos pelos ideais românticos” tomaram para si “a missão de fomentar o debate em torno da existência e constituição da literatura. Tratava-se, então, de encontrar mecanismos capazes de legitimar a recém implantada nação, e a literatura oferecia-se como uma boa alternativa para a consecução desse objetivo.” (ZILBERMAN E MOREIRA, 1998, p. 9)
Embora fossem visíveis os esforços de escritores e críticos para diferenciar a Literatura Brasileira de suas fontes ligadas ao colonizador português6, não se pode desconsiderar que a base do pensamento para explicitar o nacional em certo corpus produzido no Brasil ainda procedia da Europa. Um fato que demonstra essa relação (estremecida pelos debates em torno da afirmação da autonomia brasileira e, ao mesmo tempo, da manutenção dos laços de dependência com as metrópoles européias) foi a edição de Niterói, Revista Brasiliense, em Paris, em 1836. Dentre os fundadores da revista se destacava Domingos Gonçalves de Magalhães que (ao lado de Manuel de Araújo Porto Alegre, Sales Torres Homem e Pereira da Silva) tanto frisou uma possível direção de autonomia através do nacionalismo indianista quanto reduplicou a nossa dependência ao realizar uma leitura da natureza e da cultura locais, ou brasileiras como se pretendia demonstrar, através do emprego de princípios estéticos importados.
Paralelamente ao debate relacionado às questões de autonomia e de dependência, o período de articulação do cânone literário brasileiro revelou as cenas de um drama interno, ou seja, a formulação de um modelo cultural dominante que, em larga medida, ignorou outras fontes culturais e outras formas literárias presentes na sociedade brasileira. Por conta disso, o cânone da Literatura Brasileira – legitimado a partir da forma escrita produzida por sujeitos sociais privilegiados – acentuou no plano da cultura os abismos de natureza política e econômica vigentes no país. No tocante às heranças culturais africanas e afrodescendentes, elas sofreram no campo literário a reiteração dos mecanismos de marginalização impostos aos africanos escravizados e aos seus descendentes. Nesse contexto, pode-se falar de uma dupla recusa às produções literárias de procedência afrodescendente no Brasil: a primeira relacionada ao desinteresse pelas poéticas de base oral; e, a segunda, à rejeição do discurso dos autores e autoras que se auto definiram como negros para denunciar as injustiças sociais.
Primeira recusa
O cânone literário brasileiro, desenhado com base na valorização da literatura escrita, não contemplou as produções orais aqui instaladas e desenvolvidas pelos sujeitos relacionados ao imaginário africano. Em tempo, deve-se levar em conta que essa “repressão cultural e linguística” dificultou, inclusive, a manutenção de muitas das línguas que, “durante os três séculos do tráfico negreiro, chegaram ao Brasil na boca de cerca de quatro milhões de indivíduos.” (LUCCHESI, 2008, p. 151)7 . Ao analisar os desdobramentos desse processo de marginalização, o antropólogo Antônio Risério (1993, p. 69) observou que “o texto criativo africano foi ladeado ou ignorado” 8 e “não conheceu, na história da cultura textual brasileira, o mesmo destino que premiou o texto ameríndio”, especialmente na chamada fase indianista de nosso Romantismo.
Porém, vale ressaltar que, mesmo sofrendo com a rejeição imposta pelos modelos literários legitimados, a textualidade de procedência iorubá despertou mais atenção do que a de origem banto entre os escritores brasileiros. As referências ao mundo iorubá ganharam projeção no ambiente da literatura através de poetas e ficcionistas que criaram a partir da complexidade ritual do Candomblé personagens e enredos reconhecidos pelo público leitor. É certo que, em caso de um mergulho mais acentuado nessas matrizes culturais, poder-se-ia ter captado de maneira mais criativa a textualidade iorubá, evitando que se tornasse um elemento decorativo, admitido para dar “cor local” a uma textualidade que insistia em reproduzir os valores daquela que se legitimava como a “alta” literatura.
ORIKI
Os orikis (do iorubá, orí = cabeça, kì = saudar) são elaborações textuais que, tal como outras fontes literárias de extração africana, revelam a grande importância atribuída à voz no processo de criação. Na formulação dos orikis a voz é tratada não só como um elemento de transmissão de conteúdos (ou seja, um suporte), mas também como um elemento de composição.
Os orikis são frases, epítetos ou poemas cuja função é saudar os orixás, indicando suas origens, características físicas e psicológicas, bem como os acontecimentos nos quais eles estão envolvidos. Além de referir-se aos orixás, os orikis abordam outros temas, tais como as cidades, as linhagens e as pessoas ilustres relacionadas à vida social dos iorubás. Veja-se dois exemplos de orikis, dedicados a Oxumarê e Oxalá, respectivamente.
Oxumarê: é a serpente que morde a própria cauda; representa, simultaneamente, o masculino e o feminino; é o elemento de união entre o céu e a terra.
Quem apareceu no céu?
Oxumarê apareceu no céu.
O que apareceu no céu?
O segredo apareceu no céu.
Oxalá é orixá da Criação; tem como uma de suas representações o branco imaculado; é o deus da sabedoria e da paz.
Celeiro imenso do céu.
Velho com vigor de jovem,
Descansa no céu como um enxame de abelhas.
Fonte: RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 116-118.
Por outro lado, a produção textual tecida com os fios culturais dos mundos banto e católico não foram, até o momento, devidamente considerados como fonte de diálogo e inspiração para a formação do repertório literário brasileiro. O dinamismo social dos grupos bantos e de seus descendentes no Brasil foi registrado, pelo menos até agora, mais pelas lentes de viajantes, historiadores, funcionários (jornalistas, agentes do governo, chefes de polícia) e comerciantes de escravos do que pelas objetivas de poetas e ficcionistas.
NARRATIVAS DE PRECEITO
O corpus textual das comunidades constituídas por afrodescendentes ligados às heranças banto-católicas – tal como os devotos do Congado – revela um sofisticado trato da linguagem por parte dos indivíduos responsáveis pela transmissão desse repertório. Os textos desenvolvidos oralmente sob a forma de prosa são identificados como narrativas de preceito. Veja-se um exemplo registrado na voz do Sr. José Paulino Clemente, do município de Jequitibá, em Minas Gerais.
À noite nós não mexia com Candombe. À noite não. Ia começano a noite nós parava. O sol na língua da África chamava cumbi. De modo que o Candombe aqui o nosso sistema é isso. Cumbi mandava. Sábado nós dançava de madrugada. Quando dava domingo de manhã cedo, nós cabava o Candombe. Quando era de manhã cedo, na hora de começá o Candombe, o sujeito gritava: Oi, vem o cumbi! Cumbi, ele envém! Quando era de tarde, na hora de terminá: Oi, cumbi, cumbi! Cumbi, lá foi! Oi, cumbi, cumbi! Cumbi, lá foi, gente! De manhã cedo, prá começá: cumbi, lá envém! De tarde, pra acabá: cumbi, lá foi! Antigamente o pobre vivia pelo sol. O sol saía, acabô o Candombe.
Fonte: PEREIRA, Edimilson de A. e GOMES, Núbia P. M.. Ouro preto da palavra. Belo Horizonte: Ed. PUC-MG/ Mazza Edições, 2003, p. 113.
CANTOPOEMAS
Os textos orais, criados pelos devotos do Congado, nos quais a letra e a melodia são elementos de destaque, podem ser chamados de cantopoemas. Assim como as narrativas de preceito, acompanham as celebrações das comunidades e contribuem para a fundação de uma ordem social baseada no respeito ao sagrado e aos ancestrais. Veja-se um cantopoema colhido na voz do Sr. Geraldo Arthur Camilo, da comunidade dos Arturos, em Contagem, Minas Gerais.
Esse povo tudo é fio Coro
É fio de Nossa Senhora do Rosaro
Ôoo
As minha coroa
Os meu bastão
É da minha mãe do rosaro Uê uê uê
As minha gunga
Meus patangome
Minhas espadas Oôô
Meus irmão
Minha famia
Meu povo tudo Uê uê uê
Nada num é meu
Minha povo
Nada num é meu
Tudo é de papai
Tudo é de mamãe
Viva mamãe do Rosaro
Dona do congá
Oi, vamo embelezá
Oi, vamo embelezá, meus irmão
Vamo embeleza
Fonte: PEREIRA, Edimilson de A.. Malungos na escola. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 139.
Segunda recusa
À recusa em abordar as textualidades orais de extração africana, por parte dos representantes da literatura canônica, somou-se outra, movida pelos mesmos agentes, pouco interessados em dar voz e vez aos autores que fizeram da literatura um meio para apontar o estado de apartheid vivido pelas populações negras no Brasil. Contudo, a inclusão de temas como a discriminação racial e a falta de oportunidades impostas aos negros e negras do país rompeu, desde os versos satíricos de Luiz Gama (1830-1882) – (“Que mundo é este? que mundo é este? [...]/ Vejo o vício entronizado;/ Vejo a virtude caída”) – o cenário de aparente equilíbrio étnico e social moldado pelos discursos oficiais. Luiz Gama, ao lado de Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) e Maria Firmina dos Reis (1825-1917), dentre outros, pertence a uma rede de escritores reconhecidos como vozes precursoras de um discurso literário no qual as demandas de um “sujeito negro” estão impressas de maneira mais evidente.
Em linhas gerais, a Literatura Negra e/ou Literatura Afro-brasileira se desdobrou como resposta à segunda recusa, já que os paradigmas eurocêntricos seguidos pelo cânone literário brasileiro exerceram tanto a função de delinear uma face da Literatura Brasileira quanto a de silenciar os valores que propunham outros eixos de expressão literária. Na articulação dessa literatura situada fora do cânone (mas não desinteressada da crítica ao cânone e ao modelo social que o legitimou), um aspecto importante foi o “surgimento de um sujeito-de-enunciação no discurso poético, revelador de um processo de conscientização de ser negro entre brancos” (BERND, 1988, p. 48). Ou seja, os autores e autoras destacaram como seu foco de interesse a história de homens e mulheres descendentes de negros e negras inseridos numa sociedade que nem sempre lhes garantiu respeito e dignidade, embora tenha se servido sistematicamente de suas capacidades.
Ao articular o campo da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, o negro procurou exprimir “sua própria fala” para recontar a história a partir de sua perspectiva. A afirmação desse eu negro, observa Zilá Bernd, “representa uma tentativa de dar voz ao marginal, de contrapor-se aos estereótipos (negativos e positivos) de uma literatura legitimada pelas instâncias de consagração.” (BERND, 1988, p. 50). Ao enfatizar o primeiro termo – Literatura Negra –, Cuti afirma que ela “nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil (CUTI, 2010, p. 44). As duas terminologias, centradas na experiência de um sujeito que se autodeclara “negro” e/ou “afro-brasileiro”, realçam o valor político atribuído à literatura, tratada pelos autores e autoras como um instrumento de criação e de intervenção na sociedade.
Esses traços, presentes com maior ou menor intensidade, em autores negros de diferentes períodos da Literatura Brasileira (de Domingos Caldas Barbosa, no século XVIII, passando por Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, no século XIX e, também, Lino Guedes, Solano Trindade e o Grupo Quilombhoje, no século XX – apenas para citar algumas referências) nos permitem rastrear uma cartografia temática da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, na qual se destacam, dentre outras, as seguintes linhas de força:
a) a afirmação de um sujeito enunciador negro
Sou eu quem grita sou eu
O enganado no passado
Preterido no presente
Sou eu quem grita sou eu
(Carlos de Assumpção, “Protesto”)9
b) a denúncia da violência e da exclusão social:
Rasguemos por fim
estas estorias de grilhões,
sem esquecê-las
porque afinal pesam sobre nossos ombros
e teimam em ferir o futuro.
(José Carlos Limeira, “Compromissos”)10
c) a valorização das heranças afrodescendentes:
encontrei
em doces palavras
cantos
em furiosos tambores
ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
(Oliveira Silveira, “Encontrei minhas origens”)11
d) a reapropriação positiva de símbolos associados negativamente aos negros:
Lá vem o navio negreiro
Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia…
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência…
(Solano Trindade, “Navio negreiro”)12
e) o reconhecimento das figuras heróicas negras:
retomar toda história
de todos os fatos
contar todas as verdades
para todas as idades
do teu mito que
para sempre se refaz em
liberdade liberdade liberdade
(Jônatas C. da Silva, “Zumbi é senhor dos caminhos”)13
Recriação do imaginário nacional
Além dos temas acima, que ajudam a compor o tecido da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, merecem ser consideradas as estratégias de recriação do imaginário nacional, a reapropriação do corpo negro e a projeção do discurso das mulheres afro-brasileiras. No tocante ao imaginário nacional legitimado pelas elites, pode-se dizer que ele não registra as experiências dos afrodescendentes de modo dialético, restringindo-a à reiteração de estereótipos. Diante disso, cabe aos autores afrodescendentes ou não, interessados por esse território de demandas, a tarefa de criticar e de, em certos casos, reescrever as páginas desse imaginário.
Essa tarefa tem como frente inicial de atuação o campo ideológico a partir do qual são articuladas as visões políticas e estéticas de um determinado grupo. Para interferir nesse campo, espera-se que os autores e autoras mergulhem em suas teias, aproveitando-se de suas fissuras para contestar o imaginário nacional consagrado. Na tarefa de recriar o imaginário nacional delineia-se a proposta autoral de reinserir na vida cultural e política da nação – sob outra perspectiva que não a dos estereótipos – os sistemas de valores e práticas que caracterizaram a reelaboração das heranças africanas no contexto brasileiro. Para tanto, a reapropriação das representações do continente africano, desde o ponto de vista dos afrodescendentes, significa a reconstrução de uma linha epistemológica que subverte as representações moldadas pelos ideólogos do colonialismo europeu.
Num primeiro momento, essa subversão é ainda parcial, pois em certas passagens da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira nota-se que “a projeção do ideal [de África] minimiza o processo de recriação do imaginário nacional”, já que “substitui a imagem distorcida que as elites escravocratas tiveram da África por outra não menos distorcida, porque excessivamente idealizada, à qual se apegam muitos afrodescendentes.” (PEREIRA, 2010, p. 337). Atento a essa idealização, Alberto da Costa e Silva observa que Castro Alves, por exemplo, ao retratar o africano em “O navio negreiro” refere-se a uma África que “não é a do africano escravizado no Brasil, que ele deseja redimir, mas a África do imperialismo romântico e mediterrânico francês.” (SILVA, 2009, p.151).
Essa observação revela uma lacuna no conjunto da Literatura Brasileira, em geral, e da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, em particular, já que em ambas não se articulou de modo denso e abrangente um discurso que apreenda as várias Áfricas forjadas através dos embates históricos e, por isso mesmo, assentadas sobre complexas relações sociais. No dizer de Costa e Silva, a trilogia escrita por Antônio Olinto – que compreende os romances A casa da água (1969), O rei de Keto (1980) e o Trono de vidro (1987) – se apresenta como um conjunto discursivo singular, pois nele a África não é “apenas pano de fundo ou cenário” (SILVA, 2009, p. 155). Ao apreender a dinâmica da vida social de certos territórios da África ocidental, Antônio Olinto, entre outros procedimentos, transmudou “em ficção a saga dos Olímpios do Togo, desde o Francisco que, liberto, voltou da Bahia, até Sylvanus, que foi o primeiro presidente daquele país.” (SILVA, 2009, p. 155).
Como se pode depreender, a tarefa de recriação do imaginário nacional, inserida nos discursos de autores e autoras afro-brasileiros, do passado e do presente, apresenta-se como um desafio estético ainda a ser cumprido. Se a idealização do continente africano correspondeu a uma etapa de reapropriação do patrimônio dos ancestrais, o fato é que a contemporaneidade solicita aos autores e autoras afro-brasileiros ou não uma abordagem crítica do continente, seja para analisar suas estruturas sociais, seja para considerá-lo como referência de criação artística. Nesse cenário, o diálogo entre o Brasil e o continente africano, intensificado pelo tráfico de escravos, constitui um mediador indispensável para que as duas margens do Atlântico se observem mutuamente, levando em conta as rupturas e as reinterpretações de seus valores e modos de encenar a realidade.
O corpo negro
A análise das interpretações do corpo negro, geradas no período de vigência do escravismo, revela que a sociedade brasileira imprimiu sobre ele diferentes e conflitantes representações. Por um lado, as elites desqualificaram-no como forma humana, privando-o de sua história e de sua cultura. Interpretado sob essa perspectiva, o corpo negro foi transformado em alvo de espoliação através do trabalho e da agressão sexual. Para assegurar o domínio sobre esse corpo, visto como “estranho”, o sistema escravista traçou sobre ele cortes e escritas – sinais de uma ordem social que fez da violência sobre o corpo negro uma de seus mecanismos de atuação.14
Por outro lado, os africanos e seus descendentes contestaram esse processo, que tentou negar a pluralidade de sua história e de sua cultura. Contestaram, por extensão, a marginalização que o sistema escravista impôs ao corpo negro. Embora mutilado e vigiado, o corpo negro foi reconfigurado física e ideologicamente como um território no qual homens e mulheres, negros e não negros, se reencontram para reescrever os modos como são organizadas algumas das relações sociais no Brasil. Ao retomar essa relação tensa, que explicita o modo como corpo negro foi agredido e restaurado, o poeta Eduardo de Oliveira (BERND, 1992, p. 62), assume o discurso em primeira pessoa para representar, na prática, uma experiência de sentido coletivo:
Dentro de minha túnica africana
há um coração que a própria dor abarca,
a oscilar, como um pêndulo que marca
toda essa angústia da tragédia humana!
Em linhas gerais, a encenação do corpo negro nos discursos da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira tem se desdobrado a partir da denúncia da violência, que durante o período escravista – e, também, após a sua extinção – motivou os espancamentos, as mutilações e os abusos praticados contra homens, mulheres e crianças. No poema “Comensais”, Adão Ventura (2006, p. 26) aponta a persistência desse quadro nas relações sociais brasileiras:
A minha pele negra
servida em fatias,
em luxuosas mesas de jacarandá,
a senhores de punhos rendados
há 500 anos.
Contudo, a essa visão do corpo enredado pela lembrança da flagelação contrapõe-se uma visão restauradora, que o devolve a um sujeito negro, articulador do seu próprio discurso. Sob essa perspectiva, o corpo se configura como uma linguagem reterritorializada, que rompe as formas exteriores da dependência. Para tanto, numa etapa inicial, os autores e autoras da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira desnudam a prática em vigor durante o regime escravista, que permitia aos proprietários inscreverem suas marcas de poder sobre o negro escravizado. Eis o que mostra Adão Ventura (2006, p. 17), no poema “Negro de ganho”:
Negro de ganho,
negro de lenho,
negro de lenha.
Negro de ganho,
no lombo a lenha,
na alma a canga.
Uma vez exposta a gramática da violência, o corpo restaurado pela Literatura Negra e/ou Afro-brasileira se exprime como fonte para os discursos de resistência. Sob esse ponto de vista, os corpos de homens e mulheres são transfigurados em geradores de linguagem, que revelam a humanidade de quem havia sido reduzido à condição de objeto. O que se observa, portanto, é a reinserção do corpo marginalizado na esfera da ordem social, construída para as experiências do afeto e do trabalho, da autoestima e da convivência com outros corpos de outros sujeitos. Para tanto, a dimensão física do corpo é analisada como um dos componentes de um espectro maior de identidades a ser desenhada pelo sujeito afrodescendente. Veja-se a abordagem desse tema na indagação da poeta e prosador Paulo Colina: “bastaria ao poema apenas/ a cor da minha pele?” (CAMARGO, 1986, p. 81).
A formulação dessa questão cria a possibilidade de se apreender o corpo como um mediador de culturas e de significados. Ou seja, nos corpos dos indivíduos escravizados transitaram através do Atlântico modos de vivenciar a dor e a alegria, de adoecer e de curar, de crer e de sublevar-se, de silenciar e de falar, de agir e de pensar. Ao mesmo tempo, nesses corpos aportaram outros modos não-africanos de inserção no mundo, enriquecendo-o como lugar de negociação entre diferentes experiências sociais. Esse corpo negro, redimensionado a partir de sua força dialética, move-se, por exemplo, na poética de Oliveira Silveira (apud AUGEL, 1988, p. 60); o poeta gaúcho elege esse corpo como um elo entre sujeitos e sociedades em processo de afirmação e de transformação:
Aqui meu umbigo túmido
receptor de seiva
neste lado do mar
nesta longe placenta
E a África lá está
na outra extremidade do cordão.
A representação do corpo restaurado se oferece ao sujeito afrodescendente ou não como motivador de um discurso que enfatiza as mobilidades culturais. Isto é, a discussão acerca das identidades e das visões de mundo são, a partir desse corpo, uma realidade que desafia os discursos absolutos, fundados pela imposição de uma ordem social sobre as demais. Através do corpo restaurado falam os negros silenciados e também os outros sujeitos oprimidos, independente de seu gênero, origem étnica ou grupo social. Destaca-se, nessa lógica, o apelo à fraternidade que aproxima todos os sujeitos, tal como sugere Solano Trindade: “Minha família é incontável/ eu tenho irmãos em todas as partes do mundo” (CAMARGO, 1986, p. 40). Em síntese, esse corpo nutre uma linhagem discursiva que, dentro da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, estabelece a negociação como um instrumento privilegiado para compreendermos algumas das relações que os indivíduos estabelecem entre si.
O discurso de autoras afro-brasileiras
No conjunto literário a que se convencionou chamar de Literatura Negra e/ou Afro-brasileira há que se destacar o modo de escrita das mulheres negras. Essa consideração é relevante uma vez que as mulheres escritoras atuaram e atuam de maneira decisiva na constituição do tecido literário nacional, embora no cenário de tensões da sociedade brasileira elas experimentem, em termos individuais e coletivos, algumas das práticas mais ásperas de discriminação. Inseridas num contexto de heranças patriarcais, arcam com as delimitações impostas ao gênero feminino; num contexto sócio-econômico marcado pelos abismos de valorização entre o trabalho de homens e mulheres, situam-se, em geral, na parte mais baixa da pirâmide salarial; por fim, num contexto de diferenças étnicas, são reduzidas a estereótipos que cerceiam suas trajetórias nas esferas pública e privada.
A articulação do cânone literário brasileiro, como vimos anteriormente, expurgou de suas bases as perspectivas literárias não eurocêntricas, o que resultou, em termos de referência étnica, na exclusão das poéticas de extração africana e indígena e, em termos de modalidade discursiva, das poéticas orais. Se considerarmos esse campo literário desde a perspectiva dos gêneros, não será difícil observar que sua constituição relegou ao segundo plano a contribuição das mulheres escritoras, bem como as suas lógicas discursivas e preferências temáticas.
O silêncio literário imposto às mulheres não resultou, efetivamente, no seu afastamento da cena literária. No decorrer do século XIX, em virtude da difusão da estética romântica e do aprimoramento das técnicas de impressão, essa presença se revelou, muitas vezes, sob a forma de um público feminino a quem os jornais e folhetins brindavam com narrativas que convidavam ao sonho e à evasão. Porém, nas malhas da própria imprensa foram veiculadas algumas das reivindicações sociais mais importantes feitas pelas mulheres. Ao analisar o funcionamento da imprensa brasileira do século XIX, estudiosos como Zahide Muzart observaram que as mulheres atuaram na produção de “revistas, livros, jornais, informativos, boletins e outras publicações.” Essas iniciativas, segundo a pesquisadora, “buscavam a conquista do direito à educação, ao que se seguiu a luta pelo direito ao trabalho profissional remunerado e, posteriormente, ao voto”. (STEVENS, 2010, p. 139).
Nesse embate entre gêneros, marcado por visíveis desigualdades, o discurso das autoras afro-brasileiras não mereceu a atenção dos formuladores do cânone literário nacional. Excluídas por motivos de natureza étnica, econômica e de gênero lograram superar, ainda assim, num ou noutro ponto, as barreiras da discriminação. A maranhense Maria Firmina dos Reis é um exemplo dessa estratégia: mulata, nascida num ambiente de grandes restrições impostas às mulheres, tornou-se professora e colaboradora de vários jornais literários, tais como o Semanário Maranhense e O País. Uma dos grandes aportes de Maria Firmina dos Reis à Literatura Brasileira – ou se preferirmos especificar o recorte étnico, à Literatura Negra e/ou Afro-brasileira – se efetivou através do romance Úrsula, publicado em 1859, sob o pseudônimo de “uma maranhense”. Nessa obra, a autora apresenta um discurso diferenciado sobre os personagens negros, pois, como analisa Eduardo de Assis Duarte,
no discurso do narrador onisciente, o negro é parâmetro de elevação moral. Tal fato se constitui em verdadeira inversão de valores numa sociedade escravocrata, cujas elites difundiam teorias “científicas” a respeito da inferioridade natural dos africanos. Assim fazendo, a voz que narra mostra-se desde o início comprometida com a dignificação do personagem, ao mesmo tempo em que expressa com todas as letras qual o território cultural e axiológico que reivindica para si: o da afrodescendência.15
Comparando a situação das autoras negras no Brasil e nos Estados Unidos, Maria Lúcia de Barros Mott ressalta o papel da pesquisa e da reedição de obras como mecanismos que contribuem para reaproximar o público das autoras e obras “esquecidas”, intencionalmente ou não. No caso americano, Mott menciona a publicação de uma “coleção composta de 30 volumes escritos no século XIX, The Schomburg Library of Nineteenth Black-Women Writers, que reúne poesia, ficção, memórias, diários e ensaios.” (MOTT apud PEREIRA, 2010, p. 245).
No Brasil, as investigações, simpósios, conferências e publicações levadas a termo por pesquisadores de diversas universidades têm chamado a atenção para nomes de importantes poetas e prosadoras afro-brasileiras. Dentre estas, destacam-se a já citada Maria Firmina dos Reis, Auta de Souza, Carolina Maria de Jesus, Ruth Guimarães, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Geni Mariano Guimarães e Ana Maria Gonçalves. Esse elenco demonstra que, apesar do espaço restrito oferecido às mulheres no cenário da literatura nacional, pode-se, hoje, tomar contato com percursos que revelam autoras mergulhadas na análise de seus dramas pessoais e também nos dramas da sociedade brasileira.
Uma análise panorâmica do discurso de algumas autoras afro-brasileiras revela que temas recorrentes na literatura, em geral – tais como as relações amorosas, os embates familiares, as rupturas e/ou imposições de hierarquias, as trajetórias dos heróis ou retratos de fatos históricos – acabam sendo atravessados, em determinado instante, pelas demandas ligadas às questões da etnia ou do gênero. Em outras palavras, os discursos dessas autoras abordam ou tangenciam, em maior ou menor proporção, os conflitos que elas (na série social) ou suas personagens (na série literária) enfrentam por serem mulheres numa ordem social influenciada pelas heranças do patriarcalismo e por serem negras num modelo social que as discrimina. A esse binômio gênero/etnia não raro se associa a precariedade das condições socioeconômicas, que registram o lugar subalterno reservado às mulheres negras e pobres. Exemplo dessa condição pode ser encontrado na obra da mineira Carolina Maria de Jesus. Em seu discurso, os elementos biográficos são realçados através das notações da vida cotidiana; contudo, esse mesmo discurso ultrapassa a dimensão individual para explicitar uma realidade marcada pela exclusão dos menos favorecidos:
Na fábrica de bolacha o homem disse que não ia dar mais bolacha. Mas as mulheres continuaram quietas. E a fila estava aumentando. Quando chegava alguém para comprar, ele explicava:
– O senhor desculpe o aspecto hediondo que este povo dá na porta da fábrica. Mas por infelicidade minha todos os sábados é este inferno.
Eu ficava impaciente porque queria ouvir o que o dono da fábrica dizia. E queria ouvir o que as mulheres dizia.
Que dilema triste para quem presencia. As pobres querendo ganhar. E o rico não queria dar. Ele dá só os pedaços de bolacha. [...]
15 DE JUNHO. ... Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver. [...] Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. (JESUS, 1976, p. 60-61).
É válido notar que o cruzamento do discurso do corpo restaurado com a dicção feminina critica e ultrapassa as imagens de violação das mulheres negras e mestiças recorrentes no imaginário nacional. Para além dos estereótipos atribuídos a estas mulheres, verifica-se no discurso de autoria feminina a retomada da gestão do próprio corpo, salvaguardando-o como mediador na reconstrução das identidades das mulheres afrodescendentes ou não, tal como anuncia a poeta e prosadora Conceição Evaristo (2008, p. 21):
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
As vozes femininas da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira transitam por terrenos similares àqueles percorridos pelas vozes masculinas, ou seja, não se furtam a denunciar a discriminação étnica e social, a reescrever o imaginário nacional e a estabelecer um discurso militante que associa a experiência da escrita à ação política em favor dos afrodescendentes. Contudo, há peculiaridades nas vozes femininas que se constituem como alternativas ao discurso engajado ou da militância política e literária. Além de reduplicarem um suposto “repertório feminino” (ligado aos afazeres domésticos, à sensualidade e à maternidade), algumas autoras elegem o gênero lírico como mediador cultural e, através dele, exprimem suas experiências pessoais paralelamente ao trato de questões de interesse da coletividade. Embora se mostrem aptas à construção do poema-panfleto é, muitas vezes, através das alusões contidas no discurso lírico que as autoras denunciam as barbáries e apontam os caminhos para superá-las. Um exemplo dessa vertente emerge na voz da poeta e crítica Leda Martins (FONSECA apud PEREIRA, 2010, p. 291):
toda história é sempre
sua invenção
Qualquer memória
é sempre
uma invasão do vazio.
Nessa vertente literária questiona-se a memória e a história, tantas vezes representadas por afrodescendentes e não afrodescendentes como uma teia de hierarquias na qual o gênero feminino não assume as funções de protagonista. Ao relativizar essa teia, a voz poética mostra que, por serem montagens ideológicas, tanto a memória quanto a história podem ser confrontadas e reelaboradas. Como tecedeiras do discurso, vozes femininas como Leda Martins, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva e Jussara Santos contestam a hegemonia do cânone literário nacional e da própria Literatura Negra e/ou Afro-brasileira e ampliam o diálogo entre os diferentes atores que se movem nos cenários da literatura brasileira.
Literatura: afirmação e ruptura de modelos
Ao alinhavarmos os argumentos que sustentam o modelo da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira nos damos conta de uma situação paradoxal e instigante: o fato de vários autores e autoras se autodeclararem negros ou negras para articularem suas obras a partir das experiências do sujeito negro (aspecto étnico) e se engajarem na luta em defesa dos direitos deste segmento social (aspecto político) não tem sido suficiente para tornar uma unanimidade o emprego dos conceitos Literatura Negra e/ou Afro-brasileira. Apesar do conflito estabelecido entre os defensores desta terminologia e os que hesitam em aplicá-la, é justo ressaltar que tal discussão coloca em xeque os paradigmas da Literatura Brasileira, questionando-os em nome de outras realidades sociais e de outras formulações estéticas. A fissura nos muros do cânone literário nacional é salutar, pois coloca em evidência a diversidade sociocultural do país, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de uma contínua negociação para que as alteridades sejam reconhecidas e respeitadas. Ao analisar o desdobramento dessa questão no âmbito da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, o crítico Domício Proença Filho (apud PEREIRA, 2010, p. 65) explicita que
em sentido restrito, considera-se negra uma literatura feita por negros ou por descendentes assumidos de negros e, como tal, reveladora de visões de mundo, de ideologias e de modos de realização que, por força de condições atávicas, sociais, e históricas condicionadoras, caracteriza-se por uma certa especificidade, ligada a um intuito claro de singularidade cultural. Lato sensu, será negra a arte literária feita por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões peculiares aos negros ou aos descendentes de negros.
A indicação de um sentido strictu sensu e de um sentido lato sensu para a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira indica que ela tangencia duas margens, simultaneamente: a da especificidade (que revela a visão de mundo de um sujeito que se reconhece como negro) e a da relatividade (que transforma essa especificidade em algo a ser compartilhado por outros sujeitos, não necessariamente afrodescendentes.) Atenta à dupla constituição desse modelo literário, a professora e crítica Maria Nazareth Soares Fonseca (apud PEREIRA, 2010, p. 100-101) argumenta:
Se por um lado é possível perceber, nas expressões, um laivo de essencialismo que também está presente em qualquer particularização como “literatura feminina”, “cultura judaica” ou “literatura afro-cubana” por exemplo, expressões como “arte negra brasileira” ou “literatura afro-brasileira” não deixam de propiciar uma necessária visibilidade a produções que têm marcas de determinados segmentos da sociedade brasileira. Ainda ficam sem resposta satisfatória questionamentos como: apresentar situações que envolvem os negros no Brasil, via literatura, é construir uma literatura negra? Ainda que as respostas sejam polêmicas, é possível indicar escritores que trouxeram, para a cena literária, questões específicas do negro e de segmentos em que as heranças africanas ajudam a construir identidades de grupos.
As análises teóricas da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira evidenciam, por um lado, a valorização da “carga de liberdade” que, no dizer de Antonio Candido (2005, p. 163), nos estimula a buscar na própria criação literária as explicações para os seus produtos. Por outro lado, na medida em que a literatura se desdobra como um “instrumento de comunicação entre os homens” (Idem, p. 163), pode-se encontrar nela reflexos de eventos importantes que constituem a vida social dos afrodescendentes. No caso da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, a ênfase dada pelos autores ao segundo aspecto fez com que ela se inclinasse na direção do modelo literário que o filósofo francês Jean-Paul Sartre qualificou como “literatura engajada”16, isto é, aquela em que os autores discutem os problemas políticos e sociais do seu tempo.
Segundo o ponto de vista da literatura engajada, o escritor assume a função de revelar as tensões da sociedade e de desnudar o pensamento do próprio homem a fim de torná-lo responsável pelas suas escolhas. Na prática da escrita, esse posicionamento leva o autor a indicar o modo como escolheu falar sobre determinados temas. Além disso, ao escrever, o autor engajado transfere para o texto algo da realidade que, espera-se, possa ser transformada através do empenho dos sujeitos sociais. Por fim, o escritor engajado procura estabelecer um pacto com um certo grupo de leitores, a fim de interferirem na ordem social amparados por um conjunto de convicções políticas, estéticas e sociais.17
No que tange à Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, a aplicação desses princípios resultou em discursos que dialogam com “imagens que definiram a ‘consciência racial’ e o ‘renascimento negro’” presentes “na primeira fase do movimento da Negritude, de Aimé Césaire e Léopold Senghor.” (FONSECA, 2002, p. 204). Contudo, além dessa semelhança de procedimentos, percebe-se que na Literatura Negra e/ou Afro-brasileira os discursos são tecidos para revelar as contradições e a violência vigentes na sociedade brasileira, como indicam os versos de Éle Semog: “A farsa e a miséria/ São apenas modernas/ Mas os grilhões são os mesmos/ E devemos rompê-los.” (BERND, 1992, p. 130). Além dos traços mencionados, a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira tem sido arquitetada como uma ponte que estreita o diálogo dos afro-brasileiros com os afrodescendentes de outras latitudes. Um exemplo disso entrevê-se na aproximação estabelecida entre Solano Trindade – autor do poema “Também sou amigo da América” – e o poeta afro americano Langston Hughes, autor de “I, too, sing America”.18
AMÉRICA
eu também sou teu amigo
há na minh’alma de poeta
um grande amor por ti
[...]
Eu te amo América
porque em ti também
virá a vitória Universal
onde o trabalhador
terá recompensa de labor
em igualdade de vida
Ao somar a sua voz à do autor afro americano, Solano Trindade redimensiona o drama vivenciado pelos afro-brasileiros, estendendo-o do limite territorial brasileiro para o âmbito de uma luta universal contra as desigualdades. Esse fato, segundo Elisa Larkin Nascimento, demonstra que a “identidade afro-brasileira se fortalece quando percebida como pertencente a uma identidade maior, internacional, da experiência generalizada dos povos de origem africana em todo o mundo.” (1996, p. 37). Porém, se o diálogo entre autores afrodescendentes amplia o campo de representação da diáspora africana, explicitando laços de irmandade e similaridade, isto não deve ser tomado como uma via de mão única, pois é preciso considerar as especificidades que os sujeitos afrodescendentes construíram nos novos territórios que passaram a ocupar.
Sob esse aspecto, se o exemplo de fraternidade Solano Trindade/ Langston Hughes conclama para a partilha de uma postura ética que evite a exploração do homem pelo homem (um tema, sem dúvida, de sentido universal), ao mesmo tempo indica que as realidades locais exigiram, muitas vezes, respostas específicas para as demandas dos diferentes grupos de afrodescendentes. Essa tensão entre o universal e o local, inserida nas teias da diáspora africana, é um fator importante para que a luta pelo reconhecimento da identidade do sujeito negro não resulte na imposição de valores ou identidades absolutas. Em se tratando das literaturas negras e/ou afrodescendentes, este raciocínio é igualmente válido, pois nos permite reconhecer as similaridades entre as literaturas da diáspora africana sem, contudo, ignorar aquilo que cada uma delas possui de particular.
Em função dos embates que margeiam as discussões sobre a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, somos estimulados a pensá-la como um sistema cerzido a partir das tensões estéticas e sociais que nos circundam. Daí, há que se reconhecer a legitimidade dos princípios e das especificidades que tornam essa vertente literária visível no âmbito da sociedade brasileira. Contudo, esses mesmos embates alimentam uma outra discussão, ou seja, aquela que nos possibilita apreender essa literatura como sendo uma forma de representação, dentre outras, através da qual os repertórios culturais das populações negras são inseridos no contexto literário brasileiro.
Por isso, é pertinente salientar que no contraponto da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira movem-se diferentes perspectivas de interpretação da experiência dos sujeitos negros; perspectivas que decorrem dos territórios estéticos representados pelas textualidades criativas africanas e afrodiaspóricas, em especial aquelas que não se prendem apenas à prática da escrita. Essas textualidades de base oral subsistem em comunidades que se articulam em diálogo com as culturas populares de áreas rurais e urbanas. Trata-se de textualidades que vêem a oralidade e o corpo não apenas como suportes da comunicação, mas, além disso, como modos de expressão estética de determinadas experiências históricas e sociais.
Os orikis, as narrativas de preceito e os cantopoemas apresentados no início deste artigo constituem exemplos de textualidades de extração africana que são continuamente reelaboradas em face das demandas do contexto brasileiro. Essas textualidades, inequivocamente negras, não mordem a própria cauda para garantir uma sobrevivência endógena; antes, fazem de suas rupturas mecanismos de reinvenção de si mesmas e de negociação com outros sujeitos (afrodescendentes ou não) que se aproximam delas. Isso significa que essas textualidades, embora vinculadas ao universo negro-africano e negro-brasileiro, não se restringem a ser propriedade apenas do sujeito que se autodeclara afrodescendente.
A relação que vários autores têm estabelecido com os orikis de procedência iorubá nos ajudam a entender esse fato. Por um lado, podemos ter acesso aos orikis em seu contexto próprio, a partir de trabalhos de investigação como os do poeta e antropólogo Antonio Risério. Vejamos um fragmento do “Oriki de Iemanjá” citado em sua obra Oriki orixás (RISÉRIO, 1996, p. 144):
Iemanjá que se estende na amplidão
Aiabá que vive na água funda
Faz a mata virar estrada
[...]
Velha dona do mar.
Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei.
Descansa qualquer um em qualquer terra.
Cá na terra, cala - à flor d'água, fala.
Por outro lado, no domínio da Literatura Brasileira contemporânea, os orikis são reconfigurados por diferentes autores, alguns dos quais não tomam a autodeclaração da origem étnica como elemento fundante de sua atividade de criação19. Tomemos como exemplo dessa perspectiva a reencenação do oriki de Iemanjá articulada pelo poeta Ricardo Aleixo em seu livro A roda do mundo (ALEIXO, 2004, p. 36):
todas
as águas do mundo são
Dela, fluem
refluem nos ritmos
Dela, tudo que vem,
que revém, todas
as águas
do mundo são
Dela,
fluem refluem
nos ritmos Dela.
tudo que
vem, que revém,
todas as águas
do mundo
são Dela, fluem
refluem
nos ritmos Dela, tudo
que vem
que revém
O diálogo entre a versão ritual do oriki e a sua reconfiguração no espaço da literatura indica um outro modo para se lidar com as referências culturais de extração africana no Brasil. Isto é, através da investigação antropológica e do experimentalismo do fazer literário os autores e autoras interagem com a textualidade de extração africana sem reduzi-la à condição de instrumento de um determinado grupo étnico. Ao mesmo tempo, não se poderá dizer que essa textualidade (o oriki) não contribui para que os temas da afrodescendência sejam colocados na agenda de temas importantes da sociedade brasileira.
Em termos estéticos, se considerarmos a maneira como lidamos com as formas poéticas tradicionais que os africanos introduziram no Brasil e com os desdobramentos que sofreram aqui, veremos que elas ainda permanecem “exiladas” do “cânone literário brasileiro” e do “cânone da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira”. Se os conceitos de nação e de etnia constituíram, respectivamente, eixos relevantes para a configuração dos cânones mencionados, isso não deve ser suficiente para deixarmos de levar em conta a possibilidade de que outros conceitos – tais como grupo religioso ou região cultural – também possam sustentar a formulação de outros paradigmas literários. Se esse aspecto não for menosprezado, teremos maiores condições para perceber que cânones distintos riscam a paisagem de um mesmo contexto histórico e social. Portanto, a questão que se impõe é: como valorizar a estruturação dos cânones como meios de definição de identidades nacionais e étnicas e, ao mesmo tempo, como lidar com a insuficiência desses cânones para abarcar outras proposições identitárias forjadas fora da nação e do grupo étnico?
Diante disso, torna-se necessário, por exemplo, nos aproximarmos das outras articulações literárias procedentes dos repertórios africanos e afro-brasileiros, seja para ressaltar as dificuldades que temos em dimensioná-las ou para reconhecer que elas desarticulam os esquemas de recepção já consagrados. Se herdamos um cânone literário no qual sobressaem certos modelos de lírica (em que a alma e o corpo, à mercê do idealismo e da interpretação cristã, entram em contradição) e de formas textuais (em que se impõe o elogio ao decassílabo e à fulguração do soneto), apenas para citar dois pontos, como nos defrontarmos com a poética sagrada e erótica dos orikis, no Candomblé? ou com a melangé banto-católica dos cantopoemas no Congado? ou com o sistema de metáforas dos vissungos?20 Onde estão as antologias dessas obras? Qual o perfil dos enunciadores dessas poéticas? Em que medida se situam na fronteira entre a função ritual, com finalidades imediatas, e a função poética, resultante da experimentação e da valorização da linguagem em si mesma?
Se as questões acima, ao lado de outras, entrarem no circuito literário brasileiro, não há dúvidas de que poderão contribuir para o arejamento dos processos de criação e de recepção das obras. Considerando que as realidades africanas, européias e americanas possuem pontos de interseção e de tensão, há que se detectar entre os poetas brasileiros, inclusive entre os afrodescendentes, aqueles para os quais uma Literatura Brasileira se efetiva mediante a ultrapassagem do cânone que a estabeleceu como literatura escrita, com referenciais eurocêntricos.
Se a Literatura Brasileira for pensada a partir da diversidade de textualidades que a atravessam, incluindo-se as práticas orais, podemos nos deixar seduzir por uma certa provocação articulada por Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, quando se referiram ao mapa literário das Antilhas.21 Seguindo a proposição destes autores e readaptando-a ao contexto brasileiro, seria viável considerar que no grito dos negros escravizados emitidos nas minas e nos canaviais já havia se movido a célula de uma textualidade intrínseca à própria Literatura Brasileira, da qual participam igualmente as textualidades de nossas populações indígenas tanto quanto a de nossos cultores da literatura escrita.
Trilhando essa vereda, pode-se entender, por exemplo, que o enunciado de um vissungo (canto de trabalho na mineração entoado pelos negros escravizados e por seus descendentes, na região do Serro e Diamantina, em Minas Gerais) pode ser elaborado, simultaneamente, como uma crônica da vida cotidiana e como um cantopoema de sentido metalinguístico. Ao enunciar o canto “ô gente,/ fala língua de branco, auê/ ai, omboê/ fala língua de branco, auê”, o autor dessa poética alude às tensões cotidianas nascidas das diferenças entre negros e brancos. Contudo, além desse relato, o cantopoema analisa o modo como a língua pode ser utilizada (aspecto metalinguístico), dependendo das circunstâncias que envolvem o sujeito negro. Em alguns casos, era estratégico falar a língua de preto para burlar os senhores ou as autoridades, visto como agentes de coerção. Em outros casos, falar a língua de branco representava uma experiência ambivalente: por um lado, indicava a submisão do menos favorecido à norma linguística do dominante, por outro, a competência do primeiro para assimilar e transformar a norma linguística do segundo.
Consideradas as possibilidades de sentido gravadas no vissungo-crônica e no vissungo-cantopoema, nota-se que essa textualidade gerenciada por negros escravizados e por seus descendentes contornou as táticas de silenciamento que lhes foram impostas por uma ordem social excludente. O repertório dos vissungos, assim como o de outras textualidades marginalizadas pelo cânone literário brasileiro, captura as questões de fundo étnico, político e econômico (tal como a exploração da capacidade produtiva de africanos e afro-brasileiros) e as reencena na arena da linguagem. Nessa arena (que se concretiza na língua falada ou escrita, no corpo, nas imagens, etc) as expressões literárias adquirem feições particulares, dependendo dos recursos estéticos utilizados pelos autores e autoras para viabilizarem a sua comunicação. Em se tratando das abordagens dos temas relacionados às populações negras no Brasil, verifica-se na arena da linguagem um contraponto entre a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira (já reconhecida, inclusive pelo seu caráter de engajamento político) e outra modalidade de Literatura Brasileira que, embora nutrindo-se de matrizes africanas e afrodiaspóricas, se estabelece sobre a mobilidade das linguagens, tomadas não como pontos de chegada, mas como pontos de tensionamento das experiências do sujeito.
A análise dos processos de formação dos modelos literários, em particular o da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, traz à tona cadeias de significados e relações de poder que, por vezes, parecem diluídas, quando julgamos que esses processos estão consolidados. No entanto, sob esse mar chamado cânone ou modelo literário, agitam-se ondas que arejam a experiência da criação literária. Por isso, se no início deste artigo a emergência da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira exemplificou uma onda a revolver o cânone literário brasileiro, não há como não dizer – ao final deste artigo – que, sob outra perspectiva, o modelo da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira tem as suas águas agitadas por outros modos de lidar literariamente com as heranças de extração africana e afro-brasileira. Do ponto de vista da história da literatura, bem como da crítica da literatura, tais movimentos são salutares, pois revelam uma sociedade que é confrontada, de maneira intensa, com suas próprias capacidades e contradições. Os autores e as autoras vinculados, de uma forma ou de outra, às heranças de extração africana têm contribuído para a permeabilidade do campo literário brasileiro, já que suas opções estéticas e ideológicas alargam as margens de funcionamento do processo criativo. O que se espera, em contrapartida, é que a recepção da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, assim como de outras tendências literárias, nos permita desenvolver uma percepção crítica da vida social e literária do país.
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3 Ver PEREIRA, Edimilson de A. (org.), Um tigre na floresta de signos, Belo Horizonte, 2010, p. 329.
4 Para se ter uma idéia da complexidade desta questão terminológica, vale considerar a crítica que o poeta e prosador Cuti [pseudônimo de Luiz Silva] estabelece ao abordá-la no capítulo 3 (“Negro ou afro não tanto faz”) da obra Literatura negro-brasileira, São Paulo, 2010.
5 Zillá Bernd, Introdução à literatura negra, São Paulo, 1988, p. 56.
6 Ver o ensaio de Luiz Roberto Cairo, “Memória cultural e construção do cânone literário brasileiro”, In: Colofão, Ouro Preto, n° 0, 2000.
7 É importante analisar os papéis que os fragmentos de línguas oriundas do continente africano continuam a exercer na sociedade brasileira. No dizer de Dante Lucchesi (2008, p. 151), muitos desses fragmentos subsistem “como línguas secretas” que “contribuem para preservar algo da identidade cultural africana de algumas poucas comunidades rurais isoladas de afrodescendentes.” A análise de alguns dos rituais mantidos em comunidades de afrodescendentes comprova essa função da “língua secreta”. A esse propósito, ver o capítulo “Língua de preto”, inserido em PEREIRA, Edimilson de A.. Os tambores estão frios, Belo Horizonte, Mazza Edições, 2005, p. 327-330.
8 Como exemplo de texto criativo de procedência africana, pode-se citar as formas poéticas dos orikis no Candomblé (de extração iorubá), os cantopoemas e as narrativas de preceito do Congado (de extração bantu).
9 ASSUMPÇÃO, Carlos de apud CAMARGO, Oswaldo de (org.). A razão da chama, 1986, p. 51.
10 LIMEIRA, José Carlos apud CADERNOS NEGROS, n° 7, 1984, p. 73.
11 SILVEIRA, Oliveira apud AUGEL, Moema Parente, Poesia negra – Schwarze poesie, 1988, p. 58.
12 TRINDADE, Solano. O poeta do povo, 1999, p. 45
13 SILVA, Jônatas C. da Apud BERND, Zilá. Poesia negra brasileira: antologia, 1992, p. 137.
14 Para uma análise das marcas tatuadas nos corpos dos escravos ver FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Paulo/ Recife, 1979.
15 Ver Eduardo de Assis Duarte, site <http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm>.
16 Vale observar que a defesa de traços específicos de um determinado grupo acentua, pelo menos nos momentos de afirmação de sua particularidade, o caráter engajado do discurso. Veja-se, por exemplo, o caso da literatura de autoria feminina (que retrata a vida da mulher além das tarefas “domésticas” e ressalta a visão interior do sujeito, o gosto pelos detalhes, a exploração de sentidos relacionados ao silêncio e ao indizível, etc) e a literatura feminista (que, ao apontar temas de interesse das mulheres, reveste-os de um caráter político e reivindicatório), que procuram situar a mulher como sujeito do discurso. Para mais detalhes sobre a formulação do feminismo e seus desdobramentos ver ALVES, Branca M; e PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo? São Paulo, 1985.
17 Para a análise de um modelo de relação entre projeto literário e intervenção crítica na ordem social, ver no site <www.quilombhoje.com.br> os princípios norteadores e as ações desenvolvidas pelo Grupo Quilombhoje, sediado na cidade de São Paulo.
18 O poema de Solano Trindade está incluído em BERND, Zilá, Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre, 1992, p. 53. O poema de Langston Hughes é aqui apresentado na tradução de Trad. Sylvio Back, Caderno Mais! Folha de São Paulo, 15 de fevereiro de 1998:
EU TAMBÉM SOU AMÉRICA: “Também canto a América./Sou seu “brother”./ Quando chega alguém,/ Eles me mandam comer na cozinha/ Mas eu rio,/ Como bem,/ E fico forte./ Amanhã/ Sentarei à mesa/ Quando chegar alguém./ Então ninguém se atreverá/ A me dizer/ “Coma na cozinha”./ Aí eles vão ver como sou bonito/ E ficarão envergonhados./ Eu também sou a América.”
I, TOO, SING AMERICA: “ I, too, sing America./ I am the darker brother./ They send me to eat in the kitchen/ When company comes,/ But I laugh,/ And eat well,/ And grow strong./ Tomorrow,/ I'll be at the table/ When company comes./ Nobody'll dare/ Say to me/ “Eat in the kitchen”,/ Then./ Besides,/ They'll see how beautiful I am/ And be ashamed / I, too, am America.”
19 Ana Ramiro (ver o site http://www.germinaliteratura.com.br/ana_ramiro.htm ), Antonio Risério e Frederico Barbosa (ver o livro Brasibraseiro, São Paulo, Editora Landy, 2004) são alguns dos poetas brasileiros que realizaram reinterpretações dos orikis de orixás.
20 Para a compreensão da estrutura e das funções dos vissungos ver Aires da Mata Machado Filho, O negro e o garimpo em Minas Gerais, Belo Horizonte, 1985.
21 CHAMOISEAU, Patrick e CONFIANT, Raphaël. Lettres créoles. Paris, 1999.
* Edimilson de Almeida Pereira é poeta, antropólogo, ensaísta e professor de Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Autor de dezenas de publicações nos campos da poesia, do ensaio e dos estudos antropológicos. Dentre seus escritos poéticos destacam-se Zeozório blues (2002), Lugares ares (2003), Signo cimarron (2005) e Homeless (2010). Como crítico, possui diversas publicações, entre elas o recente Entre Orfe(x)u e Exunouveau (2017), fruto de sua tese de Professor Titular na UFJF.