DADOS BIOGRÁFICOS

Nascida no Rio de Janeiro em 1955, Leda Maria Martins se configura como uma das principais pensadoras do teatro brasileiro, sobretudo o teatro negro brasileiro. Formou-se em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e, devido à sua excelência acadêmica, realizou mestrado em Artes na Indiana University, entre os anos de 1978 a 1981. Sua dissertação, intitulada O Moderno Teatro de Qorpo Santo se volta sobre a obra dramatúrgica de Qorpo-Santo.

Ainda nos EUA, Leda se depara com o livro Drama para negros e Prólogos para brancos, coletânea de textos dramáticos organizados por Abdias Nascimento e encenados pelo Teatro Experimental do Negro – TEN. Sob a influência do trabalho dramatúrgico do TEN, a pesquisadora ingressa no curso de doutorado em Estudos Literários da UFMG no ano de 1987, investigando de forma comparativa a trajetória teatral do TEN, no Brasil, e a formação do Teatro Negro (Black Drama) nos Estados Unidos. Como fruto de sua tese surge o inovador e importante livro A cena em Sombras, publicado em 1995.

Além de exímia pensadora, Leda Maria Martins desenvolveu importante trabalho como educadora. Foi Docente da Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, entre os anos de 1981 a 1983 e lecionou também na Faculdade de Letras da UFMG de 1993 a 2018, tendo exercido, ademais, cargos de direção e chefia de departamentos em ambas universidades.

A intelectual também possui forte ligação ao campo religioso dos Reinados Negros. De sua aproximação acadêmica e religiosa a esse universo, surgem as reflexões teóricas presentes em Afrografias da Memória, importante livro publicado em 1997 e republicado em nova edição revista e atualizada em 2021.

Além das mencionadas obras, a professora e pesquisadora possui uma ampla lista de publicações acadêmicas nacionais e internacionais de importante relevância para a área dos estudos Teatrais, Literários e Culturais, tendo coeditado, inclusive, o número 18 da revista norte-americana Callaloo (1995).

Para informações mais detalhadas acerca de sua trajetória como pensadora do Teatro, leia, clicando aqui, o ensaio biográfico escrito por Guilherme Diniz.


 

Sonhar a transformação: uma entrevista com a professora Leda Maria Martins

 

Entrevista por:

Henrique Júlio Vieira*

Marcos Antônio Alexandre**

 

Marcos Antônio Alexandre: Antes de tudo, declaro minha grande admiração e estima que tenho por você, Leda Maria Martins. Amiga, colega, parceira e uma das irmãs que a vida me deu, possibilitando que vivenciássemos muitos momentos de afeto, alegrias, encantamentos, luto, parcerias acadêmicas etc. Tenho tido o prazer de ver você sempre plena, independentemente das adversidades, distribuindo conhecimento, formando pesquisadoras e pesquisadores, influenciando a vida de muitos e muitos, entre os quais eu me incluo. Vi você idealizando e construindo, com outros parceiros de jornada, o curso de Artes Cênicas, hoje Teatro, da Escola das Belas Artes. Já como professores do curso tivemos a oportunidade de formar centenas de estudantes e pesquisadores. Com você, participei dos Encontros do Instituto Hemisférico e Políticas das Américas e tivemos o privilégio de organizar o V Encontro intitulado Performance e “raízes”: práticas contemporâneas e mobilizações comunitárias, em parceria com Fernando Mencarelli, Graciela Ravetti e Sara Rojo. Sob a sua coordenação, na Diretoria de Ação Cultural da UFMG, eu tive a oportunidade de participar da Comissão de Organização de algumas edições do Festival de Verão da UFMG e, como amigo, tenho acompanhado a sua trajetória de vida, pessoal e profissional, experienciando momentos especiais de sua trajetória como dramaturga, diretora, ensaísta, intelectual, professora, pesquisadora, poeta e Rainha do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá. 

Leda, você sempre me inspirou muito na minha trajetória acadêmica, continua sendo referência em minhas pesquisas recentes e você sabe que tenho – e guardo – um grande apreço pela nossa amizade. Recebi com muito orgulho o convite para lhe fazer as seguintes perguntas/provocações, aqui pensadas como uma oportunidade de apreender um pouco mais suas palavras-oralituras. 

A Revista Em Tese começou a ser dirigida pelos alunos por causa da professora Leda. Foi na coordenação dela que a revista mudou essa perspectiva, e os alunos assumiram. Lembro de quando a Leda sugeriu, foi ótimo e a gente vê o quanto foi bom e como está funcionando, porque a Em Tese é uma revista bem conceituada, é lida e publica trabalhos diversos e sobre vários temas. Ou seja, os alunos têm feito um ótimo trabalho como pesquisadores, não é, Leda? 

Leda Maria Martins: Sim, sim, se não me engano, a Em Tese surge quando ainda era um programão, o Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Foi na gestão da Else Ribeiro, a coordenadora, e eu era vice-coordenadora. A gente teve uma gestão compartilhada e foi quando eu fiz essa sugestão, que foi acatada pelo Colegiado. Foi de 96 a 98. Quase 30 anos. A ideia era essa mesma, ter um canal de publicação das reflexões dos alunos que cursaram e cursam a pós-graduação, mas também em intercâmbio com outras postulações e reflexões pelo Brasil. É muito bom saber que ela está de pé. Isso é muito importante. Você tem uma via de publicação que está nas mãos do corpo discente. Isso é muito bom. Parabéns a vocês por esse trabalho! 

MA: Não há dúvida de que você, Leda, é uma das intelectuais contemporâneas mais importantes que vêm refletindo sobre as poéticas pretas, em seus campos plurais de conhecimento e de fomentação artística e estética. Sua obra A cena em sombras (1995) é um dos livros mais lidos e citados por estudantes, intelectuais, pesquisadores e pesquisadoras negros e negras de várias áreas de saberes, entre os quais eu me incluo. Por outro lado, a sua obra poética ainda é pouco conhecida na academia, mesmo entre os pesquisadore[a]s que têm retomado o seu trabalho. Poucas pessoas tiveram acesso a sua obra poética e/ou leram seus livros Cantigas de Amares (1983) e Os dias anônimos (1999). A partir dessa premissa, eu gostaria que você comentasse um pouco sobre a sua relação com a poesia e como ela retroalimenta a sua produção intelectual.

LM: Em 2021, a Editora Perspectiva reeditou Afrografias da Memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. Ficou uma edição muito bonita. Neste mês, reeditou A cena em sombras. Neste ano também, já estou com um livro novo, que se chama As horas sutis, mas não foi possível terminá-lo. A ideia é que no ano que vem a gente publique as poesias reunidas com esse livro novo, Os dias anônimos, mas você tem razão. É um trabalho muito menos conhecido, já esgotado há muitas décadas, o que é uma pena, porque eu me apresento sempre primeiro como poeta e todos os meus escritos são também poéticos. Sejam eles ensaísticos ou não, o poético, na verdade, é o que guia toda a minha produção de escrita.

A relação com a poesia vem junto com os ambientes de produção poética. Aprendi a ler com 4, 5 anos, sozinha, e sempre fui uma leitora muito voraz. Ao mesmo tempo em que sempre mantive essa relação muito próxima com a leitura da literatura, particularmente da poesia, outra ambiência poética foi a dos Reinados. Reinado é poesia o tempo todo. É uma paisagem poética dos cantares, das danças, das textualidades. Então, a poesia, para mim, vem dessas duas ambiências. É o que me conforma. A minha própria percepção de mundo se dá muito através da poesia. Como leitora de poesia, como ouvinte de poesia e na paisagem sonora dos Reinados.

Não há para mim um afastamento, uma distância. Tudo que produzo é da ordem do poético. Quem visita meus livros, ensaios também tem essa perspectiva: sempre é a linguagem poética que aciona aquilo que ali se produz. É um modo de percepção de mundo, de criação, em todos os âmbitos. É sempre esta tentativa de composição poética, porque eu acho que é o poético que me guia na vida.

Na coleção Arte e Teoria, organizada por Pedro Kalil, eu falo muito da minha relação com a poesia e a matemática. São algumas das minhas paixões.

MA: O “Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas de Belo Horizonte” foi criado por Denilson Tourinho, em 2017, tendo como inspiração as noções e conceitos advindos de sua obra. Recentemente, também organizado por Denilson, foi lançado o livro Caderno Espiralar: Volume Leda Maria Martins, pela Mazza Edições, em 2022. Desde a sua criação, foram premiados dezenas de produções de artistas, coletivos e grupos negrorreferenciados mineiros e de outros estados brasileiros. Como você observa a repercussão do Prêmio na trajetória dos artistas, grupos e trabalhos agraciados?

LM: A ideia que muito me honrou na época foi do Denilson Tourinho. Foi uma grande surpresa para mim, eu fiquei muito comovida e agradecida, porque todo o trabalho, inclusive de criação, busca de patrocínio, produção e da entrega é dele. O prêmio atualmente contempla produções de várias partes do Brasil, e tenho observado, nas vezes em que pude participar da entrega, é a importância para as pessoas que recebem e veem o seu trabalho reconhecido. O prêmio tem uma característica que eu acho muito interessante e se deve à engenhosidade e à criatividade do Denilson. As categorias são baseadas na minha produção. Ele inova em relação às categorias, o que também é muito comovente para mim. O prêmio tem alcançado todo o Brasil, com repercussões até no exterior. O que eu posso testemunhar, primeiro, é a alegria de dar nome ao prêmio, segundo, talvez o mais importante, é ver a repercussão na trajetória desses artistas, grupos e de coletivos e principalmente traz uma outra percepção em relação à produção artística. A produção estética valorando insumos que advêm das poéticas negras. Tenho ficado impressionada com a riqueza desta produção. Em todo o Brasil, o teatro brasileiro deve muito, nesse sentido, às produções negras das últimas décadas. São extremamente potentes e partem da pesquisa de fontes teatrais performáticas, muitas delas advindas do amplo repertório das culturas negras e das poéticas negras no Brasil. E isto é fabuloso. O teatro brasileiro se enriquece muito com esses trabalhos e, particularmente, fico muito orgulhosa de ver que eles também nos trazem novos aportes em relação à cena brasileira.

MA: Sua peça, “Récita n° 3 – Figurações”, foi publicada, em 2018, pelo selo Funarte, no livro Dramaturgia negra, organizado por Eugênio Lima e Julio Ludemir, como uma das dramaturgias que compõem a publicação, que reúne 16 textos de autoras e autores negros e negras de várias regiões brasileiras, reafirmando que as poéticas negras são plurais e potentes. Sei que, em sua trajetória no mundo das artes, também atuou como diretora teatral. Você pode dividir conosco um pouco sobre essa experiência de escrever “Récita n° 3 – Figurações” e também comentar sobre o fato de a peça ter sido pensada para ser levada à cena por uma mulher? Na minha leitura, uma poética textual que instala a dinamicidade do tempo espiralar.

LM: Figurações foi primeiro publicada como um monólogo. Eu não denominei assim, mas ele foi pensado já assim. Quando publiquei no livro de poemas Os dias anônimos, Récita n° 3 – Figurações já tinha sido publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais. A ideia originária mesmo deste texto, o único texto no livro em prosa, em prosa poética, mesmo que ele fosse um monólogo. Em 2018, quando Eugênio Lima e o Julio Ludemir me pediram um texto para a dramaturgia negra pela Funarte, eu tinha recém sofrido um acidente e estava praticamente imobilizada. Foi muito dificultoso para mim, porque, primeiro, eu falei que não teria como. O Eugênio, um grande amigo, também insistiu e então fiz uma reformulação no Récita. Continua quase como um monólogo, mas agora surge na dramaturgia como uma récita polifônica, na qual ele é constituído por um eu poético que se expressa, mas com as réplicas do coro ou da própria voz que se repete.

É um texto bastante musical no meu modo de pensá-lo, constituído, de fato, tanto pela palavra, mas pelas suas réplicas e tréplicas, como vários ecos que são trazidos à cena de uma mesma fala, e se repete com alguns pouquíssimos gestos de diferença. Talvez a grande diferença seja que Figurações, agora publicado em 2018, exige a participação do coro, da música e do cenário como constitutivos da própria cena. Foi um modo muito interessante de constituir a cena, para mim, naquele momento em que eu estava com muita dificuldades físicas. Pude ver já três encenações, uma feita por um curso da USP, outras duas, uma por Brasília, outra pela UFBA, e achei lindíssimas as três leituras cênicas. As rubricas são integrantes do texto, de certo modo, compõem o texto cênico e com algumas dificuldades. Estou muito consciente delas. Uma delas, por exemplo, é o uso da cora, um instrumento africano, mas ainda de difícil acesso no Brasil. Em todas as montagens que eu vi, a cora foi substituída por outros instrumentos, mas espero que um dia Figurações possa ser encenada com a cora, porque o pensamento sonoro que me dirige ali tem muito a ver com esse antigo e milenar instrumento africano.

Vocês dizem que ele também instala a dinamicidade do tempo espiralar. Eu ainda não tinha essa pesquisa sobre o tempo, mas depois, quando fui reconfigurá-lo, percebi que, na verdade, a dinâmica temporal da cena que se propõe é espiralar. É necessária, na sua realização, a conexão funcional entre sonoridades e visualidades, tentando talvez instalar essa ideia que depois eu vou desenvolver do “corpo-tela”, um corpo matizado pelas sonoridades, pelas visualidades como construção da memória. É um texto feito para uma mulher, mas nada impede também que seja um texto realizado por um homem. Quando visualizei mentalmente as cenas e depois as coloquei no papel, eu via uma mulher, mas depois eu fui perceber que, na verdade, ele não se fecha. Ele está aberto a qualquer um ou uma que queira representar esse eu poético que pode ser incorporado sem qualquer limitação de gênero e sexualidade.

MA: Em sua obra ensaística, você assevera que “A cultura negra é o lugar das encruzilhadas”. Em diversos trabalhos por mim escritos, eu retomo este trecho e sua noção de “encruzilhada” para fomentar minhas discussões e leituras analíticas. O mesmo é feito por outros pesquisadores e outras pesquisadoras, coletivos e práticas de aquilombamento como a segundaPRETA, lembrando que você foi a homenageada da 3ª temporada, realizada em 2017. A partir da presença marcante da encruzilhada como conceito suleador das cenas negras/pretas contemporâneas, como você avalia “experiências” como a “Polifônica Negra”, a “segundaPRETA”, o “FAN – Festival de Teatro Negro”, o “Prêmio Leda Maria Martins” e o “Solo Negro”, na movência e transmissão dos saberes articulados nos/pelos teatros negros?

LM: Quando propus “encruzilhada” como clave teórica e metodológica, foi no meu projeto de doutorado, por volta de 1985, 1986, ao Programa de Literatura Comparada da UFMG. Era assim algo inédito, bastante, porque estava buscando, no âmbito dos repertórios de pensamento dos povos negros, elementos que permitissem articular as leituras sobre o teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos, no propósito de buscar aportes teórico-metodológicos que não fossem apenas os baseados nas matrizes europeias ocidentais, mas que também buscassem esses outros saberes teóricos, conceituais, metodológicos, performáticos das culturas negras. Anos depois, décadas depois, outras pessoas têm acionado a mesma palavra, com perspectivas teóricas diferentes das minhas, ou vias similares, sem, às vezes, citar esta antecedência. Não é um absoluto, mas, na época, meados dos anos 80, não tinha ninguém propondo pensar a cultura negra por meio também de epistemologias que viessem do âmbito dos repertórios negros. Eu lanço esse conceito no projeto de doutorado, depois na tese defendida em 91 e em 95 saiu o livro, a primeira edição de A cena em sombras, trazendo essa possibilidade teórica.

Eu volto a ela no Afrografias da memória e em Performances do tempo espiralar, porque é uma noção, uma clave teórica e metodológica, e não simplesmente o uso de uma palavra aleatória. Estamos falando de semiose, de produção de conhecimento. Nesse caso, uma percepção de como interpretar todo esse conhecimento que advém dos cruzamentos, não amistosos, entre o pensamento africano com o pensamento europeu, com o pensamento dos povos indígenas e o que se deriva das encruzilhadas. É um conceito que traz consigo a necessidade da metodologia, o que tem sido bastante fértil, tanto é assim que dele se desdobraram em outras possibilidades de se pensar as encruzilhadas, e elas têm sido pensadas em todos os ângulos das artes e de outras áreas do saber. A força do conceito vem do próprio acervo de conhecimentos de onde ele é tirado, que são as epistemologias negras advindas das matrizes africanas que enxertam e reterritorializam os saberes africanos transcriados nos territórios das Américas. Todas essas experiências vêm ao encontro de algo que já se realiza há muito no Brasil, de forma talvez menos abrangente e intensa do que nas últimas décadas se realiza. Podemos pensar a história do negro no teatro brasileiro, desde o século XVIII, no mínimo. Vale lembrar que um dos primeiros lugares transformados em palco no Brasil foi a casa de Chica da Silva, onde se realizavam várias peças, claro, advindas do repertório europeu. Temos aí uma primeira casa que é também teatro.

Também, no século XVIII, é muito importante a participação do negro em todas manifestações artísticas, em Minas Gerais e no Brasil, e particularmente nas performances religiosas. Quando a gente lê, por exemplo, o Triunfo Eucarístico, está lá mencionada a participação de grupos de congos e também de grupos indígenas na elaboração dos cortejos, com as suas indumentárias e performances próprias, assim como é interessante pensar que em toda a maquinaria teatral do século XVIII o negro está envolvido não só como performer, na medida em que os brancos não atuavam, pois os negros faziam todos os papéis no teatro do século XVIII. Papéis brancos de personagens brancas, assim como advinha dos negros toda a criação de cenários e figurinos. Vamos lembrar que nós estamos nesse século tão glorioso, tão fértil, tão sofisticado nas artes brasileiras, particularmente nas artes mineiras. A presença do negro é fundamental, ainda que não se dê o devido destaque a isso.

Depois vamos ver essa presença nos palcos se alastrar e, no século XIX, todo o trabalho de exclusão do negro dos palcos brasileiros. Ele vai, a partir do século XIX, habitar o palco de forma muito periférica e caricatural, mas nós temos iniciativas no próprio século XX que tentam reverter essa situação, como a própria Companhia Negra de Revistas, do De Chocolat, em 1926, e duas décadas depois, vamos ter a fundação do Teatro Experimental do Negro.

Nas últimas décadas, se assentou o trabalho de pesquisa, de atores, produtores, diretores, dramaturgos, encenadores que vão buscar a história do teatro negro no Brasil, recuperando suas ideias e realizações. Por exemplo, a revisita ao Teatro Experimental do Negro, às postulações não apenas sociais, mas estéticas que ali se propõem como um dos insumos. Além disso, a própria pesquisa, mesmo de várias outras fontes performáticas negras. A arte se faz com pesquisa, e toda esta pujança, como eu disse, das teatralidades negras, das performances negras, das proposições teatrais negras por todo o Brasil tem um papel muito importante, porque incidem no panorama do teatro brasileiro. Não se pode falar de teatro brasileiro hoje, como se fazia décadas atrás, ignorando estas produções, essas proposições. Os temas são importantes, porque trazem para a cena uma variedade de temas e de assuntos muito férteis, muito instigantes, que dizem respeito à história negro no Brasil e incidem na linguagem teatral.

Em Performances do tempo espiralar, faço algumas observações sobre algumas das proposições que têm a ver com esse cruzamento entre os repertórios performáticos negrorreferenciados com outras teorias, sejam elas ocidentais ou orientais. É um trabalho de cruzamento, um trabalho de alçamento dos repertórios negros. Muitas vezes, os próprios grupos e artistas negros iam buscar seus repertórios nos acervos ocidentais. Um dos grandes méritos dessas novas gerações, mas isso também está lá postulado por Abdias Nascimento, no Teatro Experimental do Negro, é esse trabalho de imersão, de pesquisa muito expansivo. É muito intenso e é muito produtivo. Nunca advoguei que fosse simplesmente uma troca, uma substituição de paradigmas, mas que no repertório, seja ele dramatúrgico, cênico e teórico, se agregassem as várias e ricas contribuições das epistemes negras nas artes brasileiras, como meio de pensá-las ou meios e processos de produzi-las.

MA: Dos momentos que compartilhamos, dois me marcaram profundamente. Foram eles, respectivamente, o descoroamento de sua mãe, Dona Alzira Germana Martins, como Rainha de Nossa Senhora da Mercês da Irmandade do Vale do Jatobá (28 de abril de 2004); e, logo depois, o seu coroamento como também Rainha de Nossa Senhora das Mercês, não a substituindo, mas dando continuidade à sua missão como matriarca importante dentro da comunidade do Jatobá. Esses momentos provocaram em mim diferentes emoções, do luto à alegria; a certeza da concretização de um tempo espiralar que nos convoca a seguir a nossa jornada nesse plano em que estamos compartilhando nossas existências. Lembro-me de como foi difícil para você tomar a decisão de receber o legado de Dona Alzira e manter-se à frente na condução de suas “obrigações” como Rainha, diante de suas atribuições acadêmicas. Hoje, depois de quase 20 anos, na função de Rainha, como tem sido manter-se presente diante da Irmandade do Jatobá, conciliando com as outras atividades que você continua desempenhando mesmo depois de aposentada da UFMG? Como tem sido o seu trabalho atualmente como Professora Visitante no Rio de Janeiro?

LM: Eu faço parte do Reinado desde muito jovem. Com 5, 6 anos, já era Princesa Conga no Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, para cumprir uma promessa. Minha mãe fez a promessa para 7 anos. Fui princesa por 10 anos e depois, por razões pessoais, abdiquei da coroa, mas nunca deixei a Irmandade, sempre continuei indo e participando intensamente do Reinado, porque a minha constituição como pessoa passa por essa vivência no Reinado. Em 1992, a minha mãe foi convidada para ser a Rainha de Nossa Senhora das Mercês, em substituição à Dona Ana, que havia falecido. Ela já tinha sido convidada outras vezes e tinha recusado. Quando veio esse convite de João Lopes e da comunidade, ela quis aceitar, conversou comigo. Por uma coincidência muito grande, 24 de setembro, dia de Nossa Senhora das Mercês, é o aniversário de minha mãe. Então ela foi coroada em 1992. Dessa coroação, gerou-se um curta feito pelo Arthur Omar, Coroação de uma Rainha. Talvez seja uma das melhores obras feitas, porque captura a atmosfera das cerimônias, dos rituais. Ela se tornou uma das rainhas mais reverenciadas lá do Jatobá, pelo seu saberes, pela sua espiritualidade, pela sua generosidade, pelo modo como sempre teve de abraçar, e quando digo abraçar tanto fisicamente como afetuosamente, no coração, todas as pessoas. Era uma benzedeira extraordinária. Era uma cozinheira extraordinária, ela tinha um repertório, uma enciclopédia de saberes e teve um reinado muito feliz lá no Jatobá.

Com a morte dela, em 2005, já quase se vão 20 anos, a Irmandade me chama para substituí-la. Quando a pessoa morre, no âmbito das culturas negras, há os rituais fúnebres, que são muito importantes, dentro de todos esse repertório de saberes que eu chamei atenção ainda há pouco. Eles, na verdade, são tanto rituais que dignificam os mortos e executam a própria transição do morto da categoria do vivente para habitar a ancestralidade, e tornar-se presente na nossa existência de uma outra maneira. Assim como é um ritual de passagem para os que ficam e os que recebem aqueles saberes acumulados que se transformam. Na nossa concepção, nada tem fim, nada termina. A morte é apenas um ritual de transformação de passagem, de uma dimensão à outra. Os rituais de descoroação representam essa transição daquela pessoa, não de uma instância para outra, mas na totalidade da existência. Eles continuam como ancestres perto de nós e também para a comunidade ali também confortada, de tal modo que, apesar da dor e do sofrimento, ela tem a certeza de que nada ali se acaba, tudo se transforma. Há a passagem também dessas funções, dessas responsabilidades e da energia vital para os membros da comunidade e das famílias que estão naquele momento, sentindo a perda dos seus membros queridos. São muito ricos os rituais fúnebres no âmbito das culturas negras, porque agregam a música, o canto e a dor, mas de forma cantada, reverenciada, de tal modo que a dor não seja aquela que prevaleça, mas a necessária compreensão de que nós todos somos transitórios em certos âmbitos e permanecemos como força vital que nutre a comunidade e cada um de nós, no âmbito da comunidade.

Aceitei, depois de hesitar, receber o cargo e a função de Rainha e realmente já faz quase 20 anos. É uma aprendizagem constante, a gente não nasce, vira Rainha. A gente se torna, aprende. É uma função muito linda, porque eu costumo dizer que uma das heranças que a gente traz dos saberes africanos é essa ideia das majestades como portadores da energia vital. Têm uma função muito nobre, que é da cura, no sentido de ouvir, consertar alguma coisa que não esteja indo bem, mas consertar também no sentido de harmonizar, de buscar o equilíbrio, de buscar a saúde, no sentido mais amplo da palavra, de ser um guia espiritual. No caso do Jatobá, além de todas as funções dos Reis e Rainhas de mediadores de transmissores da potência da força vital que energiza a nossa comunidade.

O que se agrega também à função da Rainha de Nossa Senhora das Mercês, no Jatobá, é ela ser a rainha do segredo, ou seja, a rainha que cuida dos preceitos dos fundamentos, daquilo que é mais secreto. É uma função muito relevante, mas de muita responsabilidade. Tem sido um período de muito aprendizado para tentar cumprir com dignidade a função delegada por minha comunidade lá do Jatobá. Sobre as outras atividades que tenho desempenhado desde que me aposentei, são as mesmas de sempre, só que agora muito mais intensificadas. Faço muitas palestras no Brasil e no exterior, também ofereço oficinas. Tenho trabalhado muito, como eu sempre fiz na vida, mas acho que depois da publicação do Performances do tempo espiralar e da repercussão que ele tem tido, os convites se multiplicaram. Eu sou parte do Reinado de Nossa Senhora do Rosário de Jatobá, que integra minha vida desde a minha infância. Tenho sido professora, pesquisadora e escritora, mesmo depois de me aposentar da UFMG.

Henrique Júlio Vieira: Gostaria de registrar o agradecimento da revista Em Tese à sua disponibilidade, Professora Leda, em colaborar com este número. Devo lhe dizer, a princípio, a imensa satisfação com a qual estamos produzindo esta entrevista. Talvez por um jargão da escrita acadêmica, menciono este “a princípio” para render os devidos agradecimentos, mas, justamente pela natureza das perguntas aqui levantadas, não haveria como falar “a princípio”, ou seja, pela primeira vez, por vários motivos. Nesta entrevista, “antes” de mim, houve o Professor Marcos Alexandre, cujas perguntas, informadas por um saber biográfico e um saber teórico, nos mostram quão acertado – e necessário – foi o convite para dividir este diálogo. Se ampliamos do ponto de vista geracional, a lógica do princípio e o discurso de “presentismo” caem por terra. Antes deste texto introdutório, houve Marcos Alexandre, houve a equipe de pesquisadores do literafro, houve Leda Maria Martins e tantas outras e outros que se colocaram a pensar e a produzir, na UFMG e em diversos espaços institucionais, as culturas negras no Brasil, mas se trata de uma anterioridade presente no hoje, que trança as vozes, as histórias e os saberes de cada um(a) de nós.

A literatura comparada surge no século XIX segurando, com uma mão, os tomos de história das literaturas nacionais europeias, com a outra, as propostas de ciência comparada que apareciam nos diversos campos disciplinares, das ciências naturais à gramática. Nesse contexto, as noções de “fonte”, “modelo”, “origem”, “influência”, “evolução” fizeram parte do vocabulário dos estudos que buscavam rastrear os saques, empréstimos e débitos ao texto primeiro, anterior, pelo texto segundo, posterior, sintetizados por essa frase de Benedetto Croce, “a literatura comparada busca as ideias ou temas literários e acompanha os acontecimentos, as alterações, as agregações, os desenvolvimentos e as influências recíprocas entre as diferentes literaturas”. É sabida a origem etnocêntrica do comparatismo literário, praticado com o intuito de identificar o “tesouro” em comum da Europa, “a comunidade de origens, o parentesco inicial e sempre latente dos grupos arianos” (Fernand Baldensperger). O pesquisador comparatista, pressuposto bilíngue, precisaria se colocar “acima” das particularidades nacionais para alcançar horizontalmente esse substrato comum. Diante dessas escolhas metodológicas – também políticas e ideológicas – que organizaram o campo dos estudos literários, poderia a cosmopercepção do tempo vivenciada em contextos afro-diaspóricos produzir outras formas de comparatismo? Se “em tudo que fazemos, expressamos o que somos, o que nos pulsiona, o que nos forma”, como nossos “conhecimentos culturais incorporados, saberes de várias ordens” afetam o exercício da literatura comparada?

LM: Um dos grandes méritos do próprio Programa de Literatura Comparada da UFMG, que foi sempre um programa inovador, revolucionário até. Desde o seu início, ele se abre em relação à possibilidade de incluir conhecimentos e epistêmicos que não faziam parte da hegemonia dos saberes ocidentais. É claro, hegemonia que resiste, não é? Ela não se entrega tão facilmente, mas o próprio Marcos Alexandre vai se lembrar que uma das linhas mais antigas que foram criadas no programa foi de Literatura e Expressões da Alteridade, e o grande propósito daquela linha era justamente a inclusividade da diversidade e da diversidade epistêmica. Há décadas, esse trabalho de incorporar outras possibilidades de saberes tem sido feito na universidade brasileira, sejam os advindos de questões ligadas a etnias, gênero, sexualidade etc. Nesse sentido, essa linha de pesquisa no próprio programa da UFMG foi muitíssimo bem-sucedida, porque trazia como mote toda essa reflexão sobre aquilo que, até então, não era incorporado nos sistemas curriculares disciplinares e de pensamento das universidades brasileiras.

Isso se dá no campo da literatura comparada e das literaturas de línguas africanas. Há um momento dos anos 90 em que explode por todo o Brasil essa necessidade de incluir esses outros aportes de produção literária e de possibilidades teóricas, conceituais e metodológicas no instrumental teórico-metodológico não apenas das literaturas comparadas, mas também das literaturas brasileiras e das literaturas ditas nacionais. Esse trabalho não se esgotou ainda, nós temos que lembrar que a própria universidade brasileira resiste muito, de fato, à incorporação desses saberes. É muito interessante que nas últimas décadas, desde que a população negra e a população indígena têm tido mais acesso à universidade, o papel dos alunos têm sido fundamental. O corpo discente tem cumprido esse papel de forma absolutamente exemplar, ao exigir nos cursos epistemologias não hegemônicas, dentre elas há que dizem respeito a etnias, aos saberes indígenas, saberes negros, à questão de gênero, à questão de sexualidade e de várias outras questões.

Então esse afetamento, de afetar, no sentido de incidir no sistema, é o que tem feito várias pessoas e vários grupos com muitas dificuldades ainda hoje nas universidades brasileiras, em todas as áreas, não só da literatura comparada. Agora, estou como visitante no Programa de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e lá também temos vários grupos que buscam trazer outras epistemologias, que não as ocidentais, como tão pertinentes e tão ricas e tão expressivas e tão relevantes e importantes quanto o acervo ocidental de pensamento. Eu diria que esse movimento na literatura comparada se dá também nos estudos das literaturas brasileira, francesa, inglesa, assim como em várias outras áreas de conhecimento, por exemplo, a História, Antropologia, Psicologia, Antropologia, Arquitetura e a Música. Estamos lidando com um movimento que não terminou, de alçar esses pensamentos, essas epistemologias, para elasticizar, expandir os cânones. A ideia não é eliminar o cânone europeu ocidental, mas é acrescê-lo de outras fontes, de outras possibilidades de pensamento e, de fato, nesse sentido, incidir não apenas na universidade. No nosso caso, a universidade, é um dos lugares mais privilegiados de produção de conhecimento no nosso país, e isto tem sido feito, não podemos descansar achando que já chegamos. Ainda estamos em processo, porque as universidades resistem. Os saberes hegemônicos resistem à entrada dos saberes que advêm de outras fontes de conhecimento. A UFMG e o Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários foram extremamente importantes nesse sentido.

Vale lembrar aqui um dos vestibulares, nos anos 90, em que a coordenação colocou Carolina Maria de Jesus como livro do vestibular, fato que teve uma repercussão imensa em todo o Brasil. Isso é um trabalho de décadas, que também não começou conosco. Todo esse trabalho de tentativa de alçamento das contribuições, no caso negras ou indígenas, no âmbito da formação brasileira e, portanto, da construção dos saberes no Brasil tem sido feito há décadas, há muito mais tempo do que nós muitas vezes reconhecemos. São coisas de séculos. Não apenas de reinstalação, tradução, transcriação desses saberes no Brasil e a sua importância na formação brasileira e no caso da universidade de postulação da necessidade de que, se queremos de fato conhecer a cultura brasileira, o povo brasileiro, a sociedade brasileira e as artes brasileiras, dentre elas as literaturas, temos que obrigatoriamente trazer como suporte teórico para a leitura desse amplo, rico, dinâmico, complexo acervo de saberes que muitas vezes as universidades ainda ignoram. Os saberes se oferecem a nós como possibilidade de pensamento. São sempre travessias em processos de rasurar, muitas vezes, os sistemas hegemônicos.

HJ: Um dos grandes temas das poéticas e críticas do século XX foi a relação com o passado, mesmo quando dele se desejava renunciar. Os múltiplos modernismos se confrontaram com o peso da biblioteca, do museu e do arquivo ocidentais, criando estratégias de reinterpretação da arte e da literatura anterior, chegando, em alguns casos, a sentenciar que “tudo já foi dito”. A crítica literária produziu imagens teóricas bastante conhecidas para tratar da relação do escritor latino-americano com o texto literário europeu, algumas delas, “entre-lugar”, “entre-dois”, “mirada estrábica” e “torcicolo cultural”. Em Performances do tempo espiralar, a partir de uma rica pletora de saberes e vivências – indissociáveis – das Áfricas transladadas para as Américas, você apresenta esta cosmovisão do tempo: “movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro, como experiências ontológica e cosmológica que têm como princípio básico do corpo não o repouso, como em Aristóteles, mas, sim, o movimento”. Se considerarmos, com Édouard Glissant, a diáspora como experiência do abismo que é o contato com a diferença, mas no qual “toda identidade se desdobra numa relação com o Outro”, de que maneira a nossa relação com o tempo espiralar – nos terreiros, nos rosários, nas encruzilhadas de onde partimos – está presente em nossas percepções do que não é produzido em contextos afro-centrados. Fazendo uma dobradinha García-Canclini & Martins, nós, negros, no contexto da diáspora e em certos espaços institucionais, estamos entrando e saindo do tempo espiralar?

LM: Nas transcriações e restituições dos saberes africanos nas Américas, temos que considerar, e isso tem sido negligenciado, que a África também civiliza as Américas com o acervo de saberes de várias áreas, não só das áreas artísticas, mas também na filosofia, na medicina, nas ciências em geral, nas tecnologias e também nas filosofias, nos modos de percepção dos Cosmos. Nesse sentido, muitas vezes, nós habitamos ambas as realidades. Habitamos os saberes que colonizaram, os saberes europeus, que foram hegemônicos, na própria narrativa desses saberes, porque eles habitam as escolas, as formações, como se fossem únicos, mas não são. É importante acentuar que, com estratégias as mais diversas de reimplantação dos saberes africanos, assim como dos saberes indígenas, todas as Américas são matizadas, estão civilizadas também pelo cruzamento de todos esses saberes. Saberes ocidentais com saberes africanos, com os saberes indígenas. Então não é uma questão de sair e entrar nesses saberes, mas como nós somos capazes enquanto seres de tradução que somos, ao não apenas habitar os saberes que se impuseram como hegemônicos, mas também incidir sobre eles e criar outros espaços e lugares e formas de pensar que reinstalam as cosmo-percepções e a ampla gama de acervo das culturas e dos povos negros que foram trazidos para as Américas. São modos diferentes de habitar as temporalidades, outros registros, outras formas de se pensar. Experimentar e vivenciar outras possibilidades de pensamento e de reflexão sobre o cosmos. Dentre eles, esse pensamento tão interessante e instigante que advém das epistemes negro-africanas. Essa ideia de que as temporalidades na verdade se movem e, com elas, os sujeitos que as habita.

Para quem participa das “n” manifestações, ou seja, do amplo aspecto dos terreiros, que são lugares, escolas de produção e de disseminação do conhecimento, nós temos esta capacidade de habitar concepções tão diferentes sobre o cosmos, sobre a vida humana, sobre a relação com as alteridades, no amplo sentido da palavra, sobre a própria natureza. No pensamento negro, não há distância entre o ser humano e os outros seres existentes que compõem a natureza. Uma ampla gama de pensamentos, de epistemes, de conhecimentos que foram transmitidos, revisados, transcriados no âmbito dos terreiros, no seu sentido mais amplo, todos esses lugares de resiliência e reimplantação dos saberes africanos. Não apenas de resistência, mas de resiliência. O que nos demonstram a própria fortaleza e o próprio poder desses saberes de eles mesmos se reinventarem, se restaurarem no sentido das transformações que lhes permitiram não apenas sobreviver, mas incidir e formar o tecido cultural brasileiro, a sociedade brasileira e os pensamentos que nos regem.

Trata-se de existir essa possibilidade de habitarmos essas instâncias de produção de conhecimento e as atravessarmos, não é? Os povos negros, assim como os povos indígenas, são por excelência tradutores, pois estão sempre produzindo a partir dos cruzamentos forçados, muitas vezes com outros povos, outras culturas. Estão sempre produzindo meios próprios de trânsito de conhecimentos tão diversos que nos formam. Nesse sentido, somos verdadeiros produtores de semiose constantemente, por isso que os saberes negros são muito marcados pelo princípio do movimento, da necessidade da transição, da necessidade da transformação.

HJ: Na literatura contemporânea, pode-se observar o interesse de poetas, ficcionistas e dramaturgos pelos acervos e fontes documentais, no contexto do que muitos chamam de “giro documental” ou “guinada arquivística” das artes. Obras como Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, Esta árvore dourada que supomos, de Nei Lopes, ou Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz, fazem da materialidade de documentos – reais ou imaginários – elementos do processo ficcional, o que também podemos identificar em formas contemporâneas da dramaturgia. Personagens desengavetando correspondências, cartas, manuscritos, objetos em arquivos e coleções pessoais ou institucionais. Como você avalia a relação das poéticas negras contemporâneas com as materialidades dos arquivos?

LM: Essa veia de produção é muito fértil, eu acho maravilhosa. Esse viés não é novo, nem na área literária, de pegar esse suporte, desses paratextos e trazê-los como elemento de criação ficcional, poética, dramatúrgica, nas artes visuais. Já há algumas décadas tem sido feito no âmbito da literatura, no caso particular da escritura negra e também da dramaturgia e das artes visuais é um procedimento que, nessa linhagem de acesso a registos, é muito fértil e muito potente.

Quando a gente lê, por exemplo, Um defeito de cor, este é um dos procedimentos de acesso à memória, em particular à memória da mulher negra. O livro todo é uma escrita de muitos vieses e que nos leva por vários caminhos de acesso à memória dessas mulheres negras, ficcionalizando ou as colocando também como suporte e um dos instrumentos na construção da própria ficção. Sempre tenho dito que alçar a inscrição pelas oralituras, pelos modos de inscrição oral, modos de inscrição da oralidade, não exclui a necessidade também do domínio da letra escrita. Não se trata nunca, no meu modo de pensar, de exclusões. O domínio da letra escrita é necessário e também dos suportes digitais. Ou seja, nós temos que, tal qual Calibã, ser competentes em tudo que se apresenta e que nos fornece meios de escrever, seja ficcionalmente, seja em termos históricos, a nossa história, a nossa memória.

Sempre tenho reafirmado que o domínio dos meios de produção tem que estar nos nossos horizontes, sejam eles quais forem. A potência de revelação da literatura escrita negra é muito fértil, muito rica. Ela nos oferece meios, os mais maravilhosos, de acesso a essa nossa história, inclusive à história da nossa presença na literatura escrita brasileira.

HJ: Nestas duas últimas perguntas, gostaria de convidá-la a uma seara um pouco menos teórica, mas nem por isso desimportante, que podem, de alguma forma, nos aproximar de Leda Maria Martins não apenas pela via da notória intelectual carioca-mineira. O que tem despertado o seu interesse, dentro ou fora da linguagem literária, entre as produções recentes?

Sou uma leitora que tem os meus pontos de volta. Não me prendo especificamente ao que se produz na atualidade, que é muito fértil, como eu disse. Nesses últimos meses, estou tentando reler coisas que já li antes, seja da literatura brasileira, da literatura de outros países, poesia que eu gosto muito. Particularmente tenho me interessado muito, porque tem a ver também, querendo ou não, com os meus projetos de pesquisa, em relação às artes visuais, particularmente as artes visuais negras, como essa memória, inclusive estética, e esses repertórios estéticos são acessados pelas artes visuais atuais. Faz parte de um projeto que é pensar nesta construção da imagem do negro nas artes ocidentais e como as próprias artes negras transformam essas imagens e propõem outros modos de acesso, seja como artista e mais particularmente nas suas obras.

Fiz um trabalho recente, por ser parte da Comissão de Notório Saber, a qual outorga o título ao António Moreira, um multiartista, com pintura, escultura, performance etc. Revisitei a obra dele e ficamos muito impressionados – eu e toda a equipe – com a grandeza, o alcance e a qualidade estética e como ele acessa todo esse repertório da ancestralidade nas suas obras. Também, recentemente, fui a Nova Iorque, a convite do MoMA, para falar das relações entre artes e espiritualidade nas artes brasileiras e fiz um recorte bem contemporâneo para pensar não necessariamente a espiritualidade no sentido mais convencional, mas a relação entre as artes e o sagrado do ponto de vista da gnose negra e apresentei esse trabalho que já, de certa maneira, está dentro dessa nova perspectiva de pesquisa. Eu sou uma pessoa que adora ler sobre história, antropologia, filosofia, literatura, dramaturgia, artes em geral.

HJ: Leda Maria Martins, “tudo já foi dito”?

No âmbito do pensamento negro, nós celebramos a longevidade, estamos sempre celebrando os cabelos brancos, os índices, como o acúmulo de conhecimento, mas não necessariamente como plenitude. Vamos pensar no Rei Lear, de Shakespeare. Rei Lear ficou mais velho, mas não necessariamente mais sábio. Pelo contrário. Era na velhice que ele faz aquele tanto de bobagem e causa a ruína de si mesmo e dos outros.

Sobre muitas civilizações ainda há tanto para ser dito e escrito, e eu realmente acho que não tem como se chegar num ponto e dizer que tudo já foi dito, porque o mundo está nos convocando a pensá-lo de novo e que a gente se repense a partir do que se apresenta. Há décadas de produção de pensamento que contesta essa ideia de universal, de hegemonia. No âmbito mesmo das intelectuais negras, só pra citar duas, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, mas poderíamos recuar. Em relação às intelectuais e aos povos, às culturas ditas subalternas e subalternos, nunca fomos, não é? Sempre houve uma geração de pensamento contestatória, transformadora.

Uma outra grande prepotência é achar que tudo se faz agora e que se descobre o mundo. É agora que se descobre o papel dos negros na intelectualidade brasileira, é agora que se transforma. Esquece nesses 500 anos dos negros nas Américas o próprio papel dos negros como questionadores, seja da colonização da escravidão, seja das condições precárias de cidadania. Não é porque agora se dá mais realce a essa produção, isso também é mérito nosso. Não cai do céu. Não é que de repente o negro começou a escrever, de repente, o negro começou a aparecer. De repente, o negro começou a produzir. As novas gerações se integram na longa trajetória de produção de conhecimento, muitos deles conhecimentos contestatórios, inclusive, e de postulação de novo de várias outras vias, inclusive estéticas.

Poderia dizer que muita coisa me afeta. Então, neste momento, o que me afeta são as guerras. O Ocidente louva tanto a razão, no entanto, todas as guerras só trazem um sofrimento extremo. Ainda que os meios de comunicação só se atenham às guerras que interessam ao ocidente. Nós também experimentamos uma guerra interna, com tantas mortes causadas pelo país afora. A miséria me afeta muito também. Sempre fico pensando que a nossa espécie é um equívoco. A nossa espécie é um grande equívoco. Apesar de todas as qualidades que aportam na espécie humana, ainda estamos longe de ser uma espécie que venha a utilizar toda a sua competência, todos os seus recursos em benefício uns dos outros e do próprio planeta. Nós somos o planeta e nós somos um elemento destrutivo do nosso próprio entorno, em todos os sentidos.

Quantas guerras, quantas mortes. Quer dizer, morte parece ser o sinônimo deste ocaso da modernidade, não é? Só nos resta a esperança de que outras percepções de mundo, outros modos de pensar, vivenciar, experimentar o mundo tenham ainda lugar para que a gente possa sonhar a transformação da nossa própria espécie.

                                 (In: Em Tese. Poéticas da relação: a literatura comparada no contexto da diáspora negra nas Américas).

 

* Henrique Júlio Vieira é Mestre em Literatura e Cultura pela UFBA. Doutorando em Letras: Estudos Literários na UFMG.

** Marcos Antônio Alexandre é Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor da Faculdade de Letras desta Instituição. Pesquisador do CNPq.

 


PUBLICAÇÕES

Obra Individual

Cantigas de Amares. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1983. (Poesia).

O moderno teatro de Qorpo-Santo. Belo Horizonte: UFMG; Mariana: UFOP, 1991. (Ensaio).

A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Ensaio).

Afrografias da memória. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 2021. (Ensaio).

Os dias anônimos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. (Poesia).

Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. (Ensaio).

Antologias

Solstício. Revista de Artes e Letras Afro-Americanas e Africanas, v. 18, november 4, p. 871, 1031, 1995.

Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Organização de Eduardo de Assis Duarte. 1ª Reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, vol. 3, Contemporaneidade.

Artigos

Uma coreografia ritual: as trilhas dos Orixás em Sortilégio. In: Callaloo. Revista de Artes e Letras Afro-Americanas e Africanas, v. 18, november 4. Organização de Leda Maria Martins et alii . Baltimore: Johns Hopkins University Press, Universidade de Virgínia, 1995.

Gestures of Memory, Transplanting Black African Networks. In: Brazil and the Discovery of America: Narrative, Fiction and History. Organização de  Bernard Mcquirk e Solange Ribeiro de Oliveira. England: Edwin Meller Press, 1995.

Narrativas orais fundadoras. In: Nações/narrações: Nossas Estórias e Histórias. Organização de Rita Terezinha Schmidt. Porto Alegre: ABEA, 1997.

Escrever o outro. In: Lugares Críticos. Organização Glaucia Renate Gonçalves e  Graciela Ravetti. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 1998.

Voices of black feminine corpus in contemporary Brazilian Literature. In: The winds of change: transforming voices of women. Miami: Florida University Press, 1998.

A oralitura da memória. In: Brasil afro-brasileiro. Organização de  Maria Nazareth Soares Fonseca. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Arabescos do corpo feminino. In: Gênero e representação na Literatura brasileira. Organização de Constância Lima Duarte et alii. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002.

Performances do tempo espiralar. In:  Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Organização de Graciela Ravetti e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG; Poslit, 2002.

Encenando a memória social: Yuyachkani (Tradução do texto de autoria de Diana Taylor). In: Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Organização de Graciela Ravetti e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG; Poslit, 2002.

Black Presence in Brazilian Literature: from the colonial period to the twentieth century. In: Literary Cultures of Latin America: a comparative history. Organização de Mario J. Valdés e Djelal Kadir. Oxford - Inglaterra: Oxford University Press, 2004.

A fina lâmina da palavra. In: A história do negro no Brasil. Organização de Kabenguele Munanga. Brasília: MINC/CNPq/Editora da UnB, 2004.

A fina lâmina da palavra. In: O eixo e a roda, vol. 15, jul. – dez. 2007. Belo Horizonte: Faculdade de letras da UFMG.

Performances of spiral time. In: Performing religion in the Americas: media, politics and devotional practices of te Twenty-first century. Organização de Alyshia Gálvez. Londres: Seagull Books, 2007.

Lavrar a palavra: uma breve reflexão sobre a literatura afro-brasileira. In: Um tigre na floresta de signos. Organização de Edimilson de Almeida Pereira. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.

Performing Time, Performing Blackness: Africa and blackness in Brazilian "Congados". In: (Re)Considering Blackness in Contemporay Afro-Brazilian (Con)Texts. Organização de Antonio Tillis. New York: Peter Lang Publishing, 2011.

La Oralitura de la Memoria. In: Nuestra América Negra - Territorios y voces de la Interculturalidad afrodesciendente. Organização de Inés Pérez-Wilke e Flor Márquez. Caracas: Centro de Estudios Sociales y Culturales/Universidad Bolivariana de Venezuela, 2012.

Solano Trindade. In: Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Organização de Eduardo de Assis Duarte. 1ª Reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, vol. 1, Precursores.

A fina lâmina da palavra. In: Literatura e Afrodescêndencia no Brasil: antologia crítica. Organização de Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca. 1ª Reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: SEPPIR, 2014, vol. IV, História, teoria, polêmica.


TEXTOS

 

CRÍTICA

Leda Martins: escrituras e evocações - Guilherme Diniz

O gesto, o corpo e a voz: rituais congadeiros no Reinado do Rosário de Jatobá – Giovanna S. Pinheiro

Composições e ritornelos: Performances do corpo no tempo espiralar – Giovanna S. Pinheiro


FONTES DE CONSULTA

FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lana. Leda Maria Martins. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. 1° Reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, vol. 3, Contemporaneidade.


LINKS 

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