Relendo a literatura brasileira contemporânea
do ponto de vista da Poética da Ausência

 

Zilá Bernd*

Luiz Ruffato publicou em 2004 a antologia 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Reccord) e, em 2005, pela mesma editora, +30 mulheres que estão fazendo a nova Literatura Brasileira. Verifica-se em ambas as antologias a ausência de escritoras afro-brasileiras. A presente reflexão visa, do ponto de vista da Poética da ausência, concebida por Fernando Catroga (2009), apontar essa e outras rasuras da historiografia literária brasileira, assinalando o trabalho de representificação exercido por escritoras afro-brasileiras. Em inúmeras publicações elas buscam tornar visível sua presença no cenário da Literatura Brasileira, em obras que lidam com a “matéria da ausência”, inventariando ausências e reconhecendo a herança de seus ancestrais que estiveram na impossibilidade de transmitir seus patrimônios culturais. Suas escrituras desbaratam, assim, os emaranhados fios da memória afro-brasileira, rasurada desde a chegada dos navios negreiros ao Brasil.

Dans ce qui s´est effacé

Chaque Trace épelle

Chaque Trace appelle

(Chamoiseau, 2016)1

Introdução

O que entendemos por “Poética da ausência”? Segundo Venturini, a poética da ausência pode ser definida como “o modo de tornar presente o que não existe mais” (Venturini, 2017, p. 139).

Em La matière de l´absence, Patrick Chamoiseau (2016, p.51), chama a atenção para a falta fundadora (le manque fondateur), para falar sobre o que considera “apagamento estruturante” que resiste a tal ponto que todos, inclusive artistas e escritores, acabam por assumir o apagamento, ou seja, a ausência, o desaparecimento de informações e de dados sobre determinado povo, etnia, ou narrativa que corresponda ao interesse dos detentores do poder em ocultar. Aquilo que deixou de ser nomeado é assumido como inexistente. A memória da escravidão no Brasil, assim em outros países, foi rasurada, apagada e depois recontada de diferentes modos, a ponto dos próprios descendentes de escravos tentarem apagar os traços da negritude em suas consciências e até em seus cabelos, na tentativa de tornar invisíveis as marcas do passado e da condição de escravos de seus ancestrais as quais eram percebidas como estigmas:

Primeiro o ferro marca

A violência nas costas

Depois o ferro alisa

A vergonha nos cabelos

(Cuti, Ferro, in Batuque de Tocaia, 1982)

Só recentemente, a partir dos anos 1980, emergem na literatura as vozes que representam a tomada de consciência de ser negros e da importância de tornar visível sua história. A urgência em preencher as lacunas e recontar do ponto de vista negro a história da escravidão no Brasil vai permitir aos negros “jogar o ferro fora” para “quebrar os elos dessa corrente de desesperos” (Cuti, 1982).

Apesar de vozes pioneiras como as de Maria Firmina dos Reis, que escreveu o romance Úrsula, em 1859, e Ruth Guimarães, mulher negra que publicou a saga do sertão “do avesso”, como afirma o escritor José de Sousa Martins, da Academia Paulista de Letras, será somente a partir dos anos 1980 que uma consciência negra dilacerada começa a despontar no panorama da Literatura Brasileira. As vozes primeiras como as já citadas, assim como a de Luiz Gama e seus poemas satíricos publicados em pleno período escravagista, a de Cruz Souza que representa o limiar de uma consciência do racismo, ou Solano Trindade que cria o teatro Experimental do Negro em 1945, permanecerão na invisibilidade. Mesmo publicações posteriores de poemas exprimindo uma consciência trágica da escravidão e do racismo como as de Eduardo de Oliveira, Domício Proença Filho e Oswaldo de Camargo se perdem nos descaminhos e nas ausências da historiografia literária brasileira.

Embora contundentes tais poemas permaneceram invisíveis para a Literatura Brasileira como instituição que deixa sistematicamente de inclui-los nos compêndios de história da literatura brasileira e nas principais antologias que têm funcionado muitas vezes como mecanismos de exclusão. Como se percebe, serão precisos mais de 100 anos da Abolição da escravatura no Brasil para que se inicie, através da emergente literatura negra ou afro-brasileira, o processo de representificação - através de diferentes linguagens - dessas ausências. Reescrevendo a história a partir da visada dos que foram até então invisibilizados, esse importante conjunto de poetas, aos quais vieram somar-se os componentes do Grupo Quilombhoje – que produzem coletâneas anuais, os Cadernos Negros que chegaram, em 2019, à 42a edição – permanecerá, contudo, ausente do ensino da literatura nas escolas, fora da maioria das bibliotecas e dos catálogos das grandes editoras, passando só muito recentemente – já no século XXI – a receber prêmios e indicações para academias literárias.

Um mapa de ausências

Uma das poucas teóricas e professoras de literatura brasileira a empreender a representificação dessas ausências no Brasil, é Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília. Em seu livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012), ela comprova tais ausências, através de longa pesquisa que se constituiu de questionários e quantificações minuciosas. Partindo da afirmação de Antonio Candido: “Nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, e não outra, que nos exprime” (1964, p. 10), a pesquisadora argumenta:

Nos exprime não apenas pelo que nos diz, mas também por aquilo sobre o qual cala. Os silêncios da narrativa contemporânea, quando conseguimos percebê-los, são reveladores do que há de mais injusto e opressivo em nossa estrutura social. (Dalcastagnè, 2012, e-book, p. 3936)

Em artigo intitulado “Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na L.B.” (2008), a autora já se preocupava em apontar que “a invisibilidade dos negros e os estereótipos a eles associados não são problemas exclusivos da literatura: estudos sobre jornalismo, telenovela e cinema, apresentam dados similares” (2008, p. 97). Embora obras substantivas tenham sido publicadas nas últimas décadas, como as de Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo, 1992); Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997); Ferréz (Ninguém é inocente, 2006); Conceição Evaristo (Ponciá Vicêncio, 2003), Ana Maria Gonçalves (Um defeito de cor, 2006), Na minha pele (Lázaro Ramos, 2017), convidando os leitores a vestirem outra pele, ainda não foram transpostas as barreiras existentes em nossa sociedade, para se enxergar a diversidade cultural, social e racial como riqueza e positividade.

Escritores e escritoras que animam a assim chamada literatura negra ou afro-brasileira estão ausentes das principais antologias como 35 melhores Contos do Rio Grande do Sul (Maria da Glória Bordini, 2003); 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Luiz Ruffato, 2004); 30 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Luiz Ruffato, 2005); Os melhores contos brasileiros de todos os tempos (Flávio Moreira da Costa, 2009), para citar apenas algumas das mais conhecidas.

Por outro lado, o número de publicações de autores afro-brasileiras vem crescendo continuamente tanto em quantidade quanto em qualidade e refinamento escritural. Excluídos das antologias chanceladas por editoras de âmbito nacional, escritores afro-brasileiros assumiram a tarefa de organização de suas próprias antologias como Cadernos negros 42, contos afro-brasileiros, de 2019, apresentando 41 autores, em volume de 342 páginas, e Olhos de azeviche. Dez escritoras negras estão renovando a literatura brasileira (contos e crônicas), publicado pela editora Malê, em 2017.

Se em algumas destas antologias como as 42 publicadas pelo grupo Quilombhoje desde os 1970, predominam as temáticas de denúncia do preconceito e dos episódios de racismo vividos por seus autores, várias publicações vêm se destacando por ampliar seu espectro temático abrangendo questões relativas a gênero, abusos sexuais, marginalização social, desigualdades, ecologia, enfrentamento, resiliência, enfim todos os temas que povoam a literatura de todos os tempos como o amor, a amizade, as paixões, os sonhos, a vida, a violência e a morte.

A materialidade da ausência

De acordo com Patrick Chamoiseau, os conteurs do Caribe francófono consideram-se capazes de vencer a morte através de sua arte de contar, pois assim conseguem “transmutar o vazio aparente que a morte suscita em espaço de vida” (2016, p. 32)2. De onde podemos depreender a importância da voz e da escrita que podem fazer com que o invisível e o impronunciável emerjam sob a forma de narrativas que serão contadas e transmitidas de geração em geração. O autor martiniquenho, considera que o maior desafio para os escritores das regiões submetidas ao sistema escravocrata não é apenas o de negar a falta ou assumi-la, mas o de fazer dela “um imenso horizonte” (p. 51)3, recriando “pequenas gêneses”. Note-se aqui a visão de Chamoiseau relativa à representação: trata-se de uma forma de representação capaz de desencadear processos de criação, permitindo a emergência de novas entidades, novos horizontes.

Assim, na visão do poeta e escritor francófono do Caribe, não são os monumentos materiais, nem as estelas, nem as estátuas, nem a visão europeia registrada nos primeiros compêndios de História que nos representam, mas os vestígios memoriais que são ao mesmo tempo individuais e coletivos, sejam eles ligados à nossa comunidade ou trans-comunitários os quais testemunham vivências e um passado onde predominaram injustiças e discriminações. “Enquanto o monumento testemunha sempre a força memorial dominante enraizada e vertical” (Chamoiseau, 1993), para os descendentes de escravos, são as lembranças da senzala e dos quilombos, os tambores e as religiosidades, as artes de fazer de origem africana, assim como a língua crioula ainda viva na região do Caribe, que se constituem em Traces-mémoires (vestígios memoriais), ou seja, monumentos imateriais dignos de preservação como quaisquer outros patrimônios materiais.

Moi créole américain, je chante les histoires contre l´Histoire.

Je chante les mémoires contre la Mémoire.

Je chante les Traces-Mémoires contre le Monument.4

Se já neste texto de 1993 “Contre les statues: les traces-mémoires”, Chamoiseau salientava a importância dos traços (vestígios, rastros) memoriais, em seu livro de 2016 (La matière de l´absence), o autor retoma o conceito salientando que, apesar de frágeis e incertos, os traços-memória são poderosos na medida em que há a possibilidade de serem evocados e ressignificados no presente. Das ruínas, das faltas fundamentais, pode emergir nas senzalas através da música, da dança, da religiosidade e do som dos tambores uma consciência de si que, na contemporaneidade, irá aflorar através da literatura afro-americana. O autor nos lembra da tradição milenar no Benin, país da África ocidental de língua francesa e antigo reino de Daomé, onde, antes de enviarem os escravos para as Américas, os faziam girar nove vezes em torno de uma árvore ancestral, conhecida como a árvore do esquecimento. Esperava-se que com esta prática os escravos perdessem a memória de sua origem e não guardassem nem transmitissem suas memórias e seus rancores às futuras gerações. Talvez essa estratégia tenha funcionado por um período já que até hoje tão pouco sabemos da história africana. Contudo, o esquecimento imposto embora, deixando marcas indeléveis na memória dos africanos chegados ao Novo Mundo na condição de escravos, não é definitivo, já que não é possível decidir sobre o apagamento de memórias: os traços remanescentes subsistiram e o som dos tambores africanos foram ouvidos nas Américas. A sonoridade dos tambores dá início às representificações do passado no presente, dando origem ao que hoje chamamos de literaturas afro-americanas e afro-brasileiras, que se constituem como formas da poética da ausência, ou seja, como formas de representação da continuidade memorial.

Sans vêtements, sans armes, sans valises, sans ustensiles, sans bibliothèques, sans le moindre instrument, ils n´étaient porteurs que de Traces. (Chamoiseau, 2016, p. 150).5

Hoje, passados os tempos de (re)fundação dessa poética feita de ausências e traços reatualizados no presente, inaugura-se o que Édouard Glissant chama de Poética da Relação, ou seja, a rememoração do passado associada a estratégias relacionais com o Outro na diversidade das culturas americanas.

A força de representifcação

O trabalho da representação ou da representificação pode ocorrer, portanto, na dimensão de deixar emergir, tornando presente ou materializando o que “não existe mais”, mas também na dimensão criativa da representação que desemboca na emergência de novas entidades, novos horizontes. Em filosofia, o conceito de representificação remete a « rendre de nouveau présent à la conscience un élément absent ou présent, mais caché»6.

Em Os passos do homem como restolho do mundo (2009), o historiador português Fernando Catroga consagra muitas laudas sobre a importância que tem para ele o conceito de “representificação”. Para o autor:

....só com o esquecimento irreversível a morte se transforma em definitivo nada, o diálogo com os signos da ausência é uma re-presentificação, mediante a qual, ao darem futuros ao passado, os vivos estão a afiançar um futuro para si próprios (2009, 7).7

Dessa forma, é o esquecimento e não a morte que transforma as pessoas e os acontecimentos em “definitivos nada”. Lembrar é, portanto, manter um diálogo com “os signos da ausência”, é a representificação do passado que garante não só a preservação da memória dos ausentes, como assegura nosso próprio futuro. Nesse sentido, é a metamemória, o terceiro tipo de memória segundo Joël Candau, sendo a primeira a proto-memória (que se confunde com o habitus), a segunda, a memória propriamente dita. A metamemória é a “representação que cada indivíduo faz de sua própria memória” (Candau, 2012, p. 23), remetendo, portanto, às “representações de pendor comemorativo que o indivíduo faz de um modo compartilhado” (Catroga, 2009, p. 11). Dessa forma, a recordação se torna prática representificadora quando são gerados enunciados que “ordenam o caos e a descontinuidade événementielle, doando sentido à vida dos indivíduos e dos grupos em que cada um se integra” (Catroga, 2009, p. 22).

Assim definido, pareceu-nos oportuna a aplicação de tal conceito à análise da literatura afro-brasileira contemporânea que tenta preencher os vazios e as ausências memoriais através do trabalho da memória, mostrando que os traços e as ruínas do passado podem ser representificados através de poemas, contos e outros tipos de narrativa, trazendo à tona e ressignificando no presente o que se tentou ocultar. Os escritores e escritoras afrodescendentes, ao selecionar as lembranças, mostram que o passado não prescreveu e que a literatura pode apontar novos caminhos no presente e projetar espaços de significação no futuro a partir das reminiscências do passado.

Os autores da literatura afro-brasileira na virada do século XXI encontram-se na difícil situação de representar o irrepresentável qual seja a manutenção na atualidade de manifestações de preconceito e racismo em relação à população negra no Brasil que ainda vive, em muitos casos, em situação de extrema vulnerabilidade, sendo a violência prática corrente até mesmo em relação a crianças e mulheres.

Tomemos alguns exemplos da recente antologia Olhos de azeviche; dez escritoras negras renovando a literatura brasileira (2017). Quem acompanha a negro-literatura, expressão utilizada por Fernanda Felisberto que faz a apresentação da antologia, sabe que, desde seus primórdios nos anos 1980, com o surgimento dos Cadernos negros do grupo paulistano Quilombhoje, mulheres sempre participaram das antologias de poemas e contos. É surpreendente, entretanto, encontrar uma antologia composta unicamente por mulheres, embora a participação feminina, como já mencionamos, tenha surgido desde o início dos anos oitenta, sem contar o trabalho das precursoras dos séculos XIX, como Maria Firmina dos Reis, e do início do século XX, como Ruth Guimarães, seguidas por Carolina Maria de Jesus e Ana Maria Gonçalves. Vozes vibrantes, portanto, precedem as dez mulheres que compõem a antologia Olhos de azeviche cujas autoras dão seguimento à afirmação da consciência negra e à transmissão memorial de suas ancestrais.

Se nas antologias anteriores do grupo Quilombhoje, as narrativas se constroem muito próximas aos referentes do passado escravocrata dos ancestrais e da denúncia de situações de discriminação e de racismo explícito sofrido pelas narradoras, em Olhos de azeviche, observamos narrativas de dor, violência e exclusão, mas com um diferencial importante: mulheres negras e não negras são vítimas de violência, opressão e adversidades de todo tipo. Crianças abandonadas, violência policial, situações abusivas são denunciadas, mas o que articula a narrativa é a importância da expressão das subjetividades das autoras e de seu empoderamento enquanto mulheres na sociedade brasileira atual.

Em um dos contos de autoria de Cidinha da Silva, há uma enfática menção à permanência do racismo no Brasil onde, até mesmo em cidades como Salvador (Bahia), com elevado percentual de população de ascendência afro, manifestações de racismo são registradas: “Soterópolis continua linda e os resquícios da escravidão, vivíssimos como sempre estiveram” (2017, p. 32). Representificar é trazer à presença do leitor a representação da catástrofe que foi a escravidão no Brasil e nas Américas, regime sob o qual foram eliminados, só na travessia para o Brasil cerca de 2,5 milhões de africanos, dos 12 milhões embarcados nos tumbeiros7, em um dos maiores genocídios já praticados no planeta. Como admitir que seus descendentes continuem em pleno século XXI a sofrer discriminação? Essa parece ser a pergunta que as dez autoras dos contos incluídos em Olhos de Azeviche tentam responder.

Já os dois contos de Conceição Evaristo, Os Amores de Kimbá (p. 39-46) e Di Lixão (p. 35-37), correspondem à representação da vida como beco-sem-saída, ou com uma única saída que é a morte: no primeiro caso por suicídio e no segundo por abandono. Essa desesperança de personagens negros mas também de personagens brancos nos leva a pensar em um certo impasse da representação ou em um profundo pessimismo em relação à situação do negro na sociedade brasileira, tributária ainda da “era das catástrofes” como pode ser considerado o longo período de escravidão que durou mais de 300 anos em nosso país, sem mencionar a herança trágica da escravidão que foi o preconceito e o estigma da cor da pele.

Podemos citar aqui o pensamento de Arthur Nestrovski e Márcio Selligmann-Silva, que organizaram o coletivo Catástrofe e representação (2000), no qual vários autores refletem sobre a dificuldade de representação depois da Shoah (catástrofe, em hebraico). Podemos estabelecer um paralelismo entre a Shoah e a escravidão negra no Brasil, já que os crimes cometidos sob a égide do período escravista podem igualmente receber tal denominação:

A consciência da catástrofe modifica nosso modo de perceber e representar, mas também de nos contrapor ao mundo. A exposição rotineira à violência talvez nos obrigue a aceitar, agora, a ampliação dos meios, e acatar o excesso como instrumento de sensibilização. [ ]

Representar ou não representar: essa é uma entre outras questões antigas, que retornam com acento próprio na era da catástrofe. Representar ou não representar: isto não altera, afinal, a consciência do que precisa ser dito. “O irrepresentável existe”8 (Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000, p. 11).

Miriam Alves cujos contos encerram a antologia, apresenta igualmente situações chocantes para o leitor: duas mulheres negras com relacionamento homossexual são selvagemente atacadas por policiais que, além de estuprá-las, as agridem verbalmente quando elas já se encontram desfalecidas no chão: “Suas negras nojentas, sapatas filhas da puta, não gostaram? Vão reclamar no inferno” (2017, p. 137). Resta às vítimas compartilhar “angústias e revoltas” já que, como bem sabem, o processo sem testemunhas resultará em nada. “A vida continua”, é a frase final do conto (p. 137).

Observamos nesses contos a noção de que a realidade atual no Brasil para os negros – e também para muitos não-negros é vivida como catástrofe. Em seu livro sobre a escravidão, Laurentino Gomes afirma ter sido a escravidão “uma tragédia humanitária de proporções gigantescas” (2019, p. 34). Ainda segundo o ator, essa foi a experiência “mais determinante da história brasileira” (p.34), de sorte que os reflexos dessa verdadeira barbárie de humilhações e sevícias sofridas pelos negros se reflete em sua descendência até os dias de hoje. A capacidade de representificar através da arte literária todo o sofrimento e todas as injustiças cometidas contra os negros, revela a imensa capacidade de resiliência dos autores afro-brasileiros bem como uma dimensão criativa da representação.

Concluindo

A memória é a via régia do inenarrável: é ela que permite, enfim, a entrada do “real” nas palavras, para além da simples higiene ou apagamento.

Nestrovski, Artur. 2000, p. 187.

Preencher as lacunas, reviver o não dito e desmascarar o que foi contado do ponto de vista dos escravocratas, tem sido tarefa da literatura afro-brasileira, embora estejam poetas e escritores bem conscientes de estarem revelando apenas a ponta do iceberg. A Poética da Ausência opera em dois níveis: no da rememoração involuntária e no da evocação consciente que Walter Benjamin definiu como reminiscência. Dito de outra forma, verificamos nos contos analisados o trabalho da reminiscência, ou seja, a procura ativa e consciente de lembranças, e da rememoração, espontânea e involuntária, como a do narrador de Em busca do tempo perdido, para quem as lembranças chegam ao presente como flashes do passado, normalmente estimuladas sensorialmente por cheiros, gostos, sons, emoções etc.

Os dois exercícios são praticados pelos autores/as da literatura afro-brasileira: as memórias podem aflorar espontaneamente através de processos associativos, mas também podem ser buscadas de modo consciente para que sejam representificadas, pois correm o risco de desaparecer ao longo do tempo. Daí a necessidade de registrar, escrever individualmente, escrever em antologias, em livros, jornais e revistas. Lembrando uma vez mais Fernando Catroga: a prática re-presentificadora deve ser não somente a imaginação mas também a “enunciação que ordena o caos e a descontinuidade do événementiel (acontecimento), doando sentido à vida dos indivíduos e dos grupos em que cada um se integra” (2009, p. 22).

O título do livro de Catroga: Os passos do homem como restolho do tempo é significativo na medido em que “restolho” aponta para os resíduos deixados no campo após a colheita. Assim, poderíamos depreender que o sentido do título remete à constituição do humano através de fragmentos ínfimos de temporalidades que devem ser reunidas para fazerem sentido. Como sabemos desde os ensinamentos de Maurice Halbwachs, memória e tempo estão interligados:

Como uma sociedade, qualquer que seja ela, poderia existir, subsistir, tomar consciência de si mesma, se não abrangesse com um olhar um conjunto de acontecimentos presentes e passados, se não tivesse a faculdade de retroceder no fluxo do tempo e repassar ininterruptamente os vestígios que deixou de si mesma? Sociedades religiosas, políticas, econômicas, famílias, grupos de amigos, relacionamentos e até reuniões efêmeras num salão, numa sala de espetáculos, na rua – todas imobilizam o tempo a sua maneira ou impõem a seus membros a ilusão de que pelo menos por algum tempo, num mundo que está sempre mudando, certas zonas adquiriram uma estabilidade e um equilíbrio relativo e nada de essencial nelas se transformou por um período mais ou menos longo.(Halbwachs, 2003, p. 156).

Se tempo e memória têm que ser pensados juntos, a memória exige algo mais do que pensar o tempo somente como linha cronológica. Gilles Deleuze pensa o tempo não como linha (Cronos), mas como “emaranhado de fios, como labirinto”. Nesse sentido, poderíamos interpretar o título de Catroga como o movimento - os passos do homem - no emaranhado de fios de suas múltiplas memórias.

Na literatura do Quebec, Gaston Miron, escreveu um belíssimo conjunto de poemas intitulado L´Homme rapaillé (1970), que foi traduzido para o português por Flávio Aguiar como O homem restolhado. “Rapailler” significa igualmente reunir a palha dispersa no campo após a colheita e o poeta utilizou-se desta metáfora para conclamar os quebequenses a pensarem-se em termos de unidade em torno da língua francesa, juntando, unindo em um só conjunto, o que estava disperso.

Reunir o que está disperso, o que foi omitido, esquecido, apagado é também a função dos poetas que se inscrevem nesta linha da Poética da Ausência, empenhados em preencher os vazios, as ausências e as lacunas de sua História, contando histórias, restolhando traços-memória, recuperando rastros e pegadas no já tão longo caminho do negro nas Américas. O ato de representificar demanda uma valorização do que foi tirado do esquecimento e relaciona-se tanto com a atividade intencional da reminiscência como com a espontaneidade da rememoração, tornando presente o que se fez ausente.

A Poética da Ausência se realiza no que Maximilien Laroche chamou de “dupla cena da representação”. Para o autor, haitiano de origem e cidadão quebequense, a literatura haitiana se desenvolve em uma dupla cena de representação: uma exterior e oficial que se exprime em língua francesa, caracterizada pela dependência aos “modelos” dos antigos senhores; e outra interior e privada, escrita na língua crioula do Haiti, “caracterizada pela vontade de resistência à dominação externa” (1991, p. 22-23).

É possível estabelecer também no âmbito da literatura afro-brasileira uma dupla cena da representação: uma escritura voltada para a própria comunidade afro, com a intenção de preencher as ausências, deixando aflorar no texto as memórias subterrâneas, e outra voltada para o leitorado em geral, na tentativa de apontar a persistência do racismo e todas as suas múltiplas formas de expressão. Evidentemente que há um processo de intercomunicação dos dois cenários que faz com que resquícios da oralidade aflorem no texto, convocando à existência os saberes imemoriais de origem africana. A literatura afro-brasileira se constrói, assim, através da reinvindicação da herança, do assumir-se como herdeiros de um patrimônio cultural, cujos textos tentam desbaratar os emaranhados fios da memória afro-brasileira, rasurada desde a chegada dos navios negreiros ao Brasil.

 

Notas

No que foi apagado / cada traço (vestígio) soletra / cada traço (vestígio) chama.

2 Transmuter le vide apparent que suscite la mort en espace de vie!

3 Um immense horizon.

4 Eu, crioulo americano, canto as histórias contra a História. / Eu canto as memórias contra a Memória. / Eu canto os traços memoriais contra o Monumento. In: Contre les statues: les traces-mémoires (transcrição parcial) https://entreleslignesentrelesmots.blog/2020/06/21/patrick-chamoiseau-contre-les-statues-les-traces-memoires/

5 Sem vestimentas, sem armas, sem malas, sem utensílios, sem bibliotecas, sem o menor instrumento, eles portavam tão somente Traços (rastros memoriais).

6 https://www.cordial.fr/dictionnaire/definition/repr%C3%A9sentifier.php

7https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/04/070405_escravos_database_pu.shtml#:~:text=O%20mapeamento%20indica%20que%2012,chut%C3%B4metro'%22%2C%20diz%20Florentino.

8 A citação entre aspas é de Lyotard. La condition post-moderne. Paris: Minuit, 1979. APUD: Nestrovski e Seligmann-Silva, 200, p. 11).

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* Professora da Universidade LaSalle/Canoas-RS, Zilá Bernd é referência no campo dos estudos literários afro-brasileiros. Bolsista produtividade CNPq 1A, é autora, entre outros, de Negritude e literatura na América latina (1989), Poesia negra brasileira – antologia (1992), e de Antologia de Poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil (2011).

 

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