Maria Firmina dos Reis:
inquietações de uma intelectual negra a frente de seu tempo

 

 

Glauciane Santos*

 

A obra Maria Firmina dos Reis, vida literária (2022), de Luciana Diogo, editada pela Editora Malê, é mais um resultado de pesquisa que se tornou acessível para nós, público leitor interessado na fortuna crítica e trajetória da escritora Maria Firmina dos Reis. A autora deste recente lançamento é doutoranda em Literatura Brasileira pela USP; também é criadora do site Memorial de Maria Firmina dos Reis, que reúne online a biografia, obras, textos críticos, artigos e outros sobre a escritora; ela também é editora da Revista Firminas, esta última voltada para produção da intelectualidade de mulheres negras.

O livro da autora inicia-se com uma apresentação que nos aponta que "Maria Firmina instaura um espaço para a enunciação do sujeito negro silenciado, reivindicando o lugar da escrita como direito de tomar lugar na própria vida e de poder contar a própria história (p. 11,)." O presente estudo não deseja mostrar a autora somente como percursora romancista negra brasileira, certamente esta fora uma das primeiras escritoras mulheres do país, seu único romance "revela aquilo que ficou oculto e soterrado nos escombros e espólios da História oficial brasileira (p. 12)". O trabalho primoroso da ensaísta sobre Maria Firmina dos Reis divide-se em seis capítulos distribuídos em um total de 177 páginas, eles são nomeados em: Trajetória; Úrsula; Gupeva; A Escrava, Cantos à beira-mar eálbum: o diário de Maria Firmina dos Reis. Além destas explanações, a obra conta com os itens relacionados às Referências e aos Agradecimentos feitos pela pesquisadora. 

Em Trajetória, um pouco sobre a vida da escritora Maria Firmina é descrita, sabemos que nascera livre, especificamente em 11 de outubro de 1825, em um período que infelizmente a escravidão ainda existia, era filha de Leonor Felipa dos Reis e João Pedro Esteves. Sobre sua mãe, há registros que apontam que esta era filha do português Baltazar José dos Reis, pai de Francisco Sotero dos Reis (jornalista, poeta, professor e escritor brasileiro do século XIX). Além disso, há constatações que Baltazar negociou e alforriou sua avó materna, isso explica a condição de negra liberta, da primeira romancista negra brasileira do período.

A figura da avó materna Engrácia como configuração central da família de Maria Firmina é notável, seus três filhos: Leonor, Henriqueta e Martiniano foram alfabetizados, eles sabiam ler e escrever, um acontecimento para o período, já que não era comum uma mulher ou homem negro serem letrados. Em relação a isto, Diogo (2022) retoma os estudos de Agenor Gomes, estudioso de Firmina, que apontará a possibilidade de Sotero do Reis, possível tio da escritora, “ter contribuído para o ingresso dos seus parentes mais pobres na escola (p.17)”.

Um marco importante no percurso de Maria Firmina foi a nomeação desta ao magistério público em 11 de agosto de 1847 em Guimarães, cidade localizada no interior do Maranhão, região onde a autora nasceu. Um fato curioso sobre este acontecimento merece destaque: para ser aprovada no concurso, a autora teria que ter 25 anos, ela tinha 22 anos, devido a isto, entrou com “um processo para alterar a data de seu nascimento para comprovar que, à época, ela contava idade mínima requerida (p.18)”.

Ainda sobre este primeiro capítulo em que a trajetória da escritora é ressaltada, vemos que ele se subdivide em três partes. A primeira parte nos contará A história de uma família negra letrada brasileira no século XIX; A trajetória de Maria Firmina pela imprensa; Maria Firmina dos Reis – Uma Mulher Pré-abolicionista; A família e a obra – Pedidos oferecidos; Arqueologia Literária – O trabalho com as fontes de pesquisa; O que os arquivos contam sobre as trajetórias sociais dos filhos afetivos de Maria Firmina dos Reis. O segundo destaque é uma emocionante carta direcionada à memória de Maria Firmina, esta nos revela as intenções da articulista da presente obra, como ocorreu o encontro e conexão com a autora pesquisada. A terceira e última parte intitula-se Contornando o invisível – um retrato possível de Maria Firmina dos Reis, nesta há inúmeras tentativas “de conformar a imagem de uma mulher importante, detentora de capital cultural, às expectativas de se encontrar tais atributos, essencialmente, na imagem de uma mulher branca (p.64)”.

No tocante à terceira parte, é preciso ressaltar que na atualidade as percepções imagéticas de Maria Firmina dos Reis enquanto mulher negra têm sido amplamente discutidas e representadas, conforme sua herança racial, deslizes nada ingênuos ainda ocorrem, no entanto é possível constatar mudanças. Em um rápido passeio nas obras da autora na livraria online maranhense AMEI, constatamos esta mudança, nela há vários títulos sobre a escritora em que as capas trazem imagens de sua herança ancestral africana, anos atrás isso não era possível vislumbrar.

Vale destacar que Firmina nestas primeiras impressões revela-se “uma intelectual à frente de seu tempo (p.20)”, enquanto mulher negra, filha, educadora, romancista, poeta, novelista e musicista, a autora mostra-se atenta aos ideais humanistas e estéticos no desenvolvimento de sua escrita, o embate ao colonialismo e a escravidão estarão presente em seu fazer literário, nota-se que houve um duplo epistemicídio aos seus registros literários, o primeiro por ser mulher e o segundo por ser negra.

Relativamente a isso Machado de Assis, no texto Instinto de Nacionalidade (1873), nos dirá que “o que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (ASSIS, 1873)”, quanto a isso, a máxima dialoga profundamente com as intenções de Maria Firmina no que tange à sua prática literária e a seu posicionamento político abolicionista, o único impeditivo à circulação editorial desta no século XIX, como ressaltamos anteriormente.

É interessante destacar dois importantes pesquisadores que serão citados em alguns momentos por Diogo (2022) nesta obra: Agenor Gomes e Nascimento de Morais Filho (escritor, poeta, ensaísta e folclorista maranhense), ambos estudiosos de Maria Firmina dos Reis. Eles foram percussores nos estudos sobre a vida e obra da autora.

O segundo capítulo, cujo título é Úrsula, inicia-se com a exposição de um fragmento do romance de mesmo nome publicado em 1859, o trecho referido é a passagem que o jovem negro Túlio juntamente com a preta Susana avistam Tancredo. Luciana Diogo registra que esta citação inicial faz referência “às primeiras personagens negras da história do romance brasileiro que narram as suas vidas em primeira pessoa, representando desejos, projetos e revelando subjetividades (p. 68)”. Ressaltamos três subdivisões nesta sessão. A primeira intitula-se A primeira resenha de Úrsula na imprensa maranhense de 1857. Esta se desdobra em: Lendo a resenha de 1857 e As campanhas de subscrição e as reedições de Úrsula. A segunda chama-se Úrsula e a construção da subjetividade da personagem literária. A terceira denomina-se Úrsula e “a tempestade” num ponto negro – diálogo com Gonçalves Dias. A partir desta contextualização desejamos nos ater àquilo que julgamos instigante, pois cremos que algumas informações já são de conhecimento do público leitor.

Salientamos que em 2019, como discorre Diogo (2022), “o livro Úrsula (1859) completou 160 anos. Esse romance ficou esquecido por quase um século, até que Nascimento de Morais Filho resgatou sua história dos porões da biblioteca pública Benedito Leite, em São Luís (pp. 69-70).” Seis edições da obra foram publicadas: 1859, 1975, 1988, 2004, 2008 e 2009. Posteriormente “entre 2017 a 2022, foram publicadas 22 novas edições (p. 71)”.

De acordo com a autora da presente obra crítica analisada, um aspecto curioso sobre o romance relaciona-se aos anúncios publicados para divulgá-lo entre 1860 e 1862, totalizam 50. A ideia é refletirmos sobre o feito de Maria Firmina ter conseguido fazer uma divulgação substancial mesmo com tão poucos recursos. Somando-se a isso veremos no capítulo fragmentos de resenhas que foram publicadas no período, estas ressaltarão o processo de composição e criação artística de Maria Firmina. Sobre isso é relevante considerar as afirmações de Diogo,

(...) podemos pensar que Maria Firmina, que era uma leitora das obras de sua época, contava com esses modelos, para seguir, ou recusar, de forma a trabalhar para inserir – intencionalmente – no contexto de uma tradição literária mais ampla, e ajustar certos elementos e certos procedimentos em sua configuração artística particular (DIOGO, 2022, p. 85).

Com relação ao fragmento citado, algumas obras literárias são referidas, crendo na possibilidade de elas terem influenciado Maria Firmina em seu processo de criação: A Cabana do Pai Tomás (1852), de Harriet Stowe e a leitura ampla dos românticos do período, dentre estes Gonçalves Dias. De acordo com Diogo (2022), foi estratégico para época a escritora fazer uso das engrenagens estéticas do romantismo e inseri-las em seu projeto intelectual/literário, dessa maneira, ter a liberdade de analisar a sociedade, aprofundar-se em reflexões relacionadas aos negros escravizados no período colonial brasileiro. Os personagens secundários do romance, todos negros, iluminam a narrativa com seu protagonismo e subjetividade, o amor pueril de Úrsula e Tancredo será o pretexto da autora para fisgar os leitores oitocentistas.

No terceiro capítulo nomeado Gupeva, apontamos que não se trata de uma análise crítica aprofundada sobre o conto/novela publicado em 1861, a ênfase é sobre a contribuição da autora “ao indianismo brasileiro contestando a tese de que a colonização indígena no Brasil tenha acontecido de forma harmônica e ressaltando os efeitos violentos da mestiçagem, distanciando-se, assim, da posição de José de Alencar (p.117)”. Chamamos atenção para ausência da autora nas obras nacionais História Concisa da Literatura Brasileira (2006), de Alfredo Bosi, e Formação da Literatura Brasileira (2013), de Antonio Candido. Possivelmente algumas das obras de Maria Firmina dialogaria perfeitamente com os escritos literários de autores figurados ao romantismo brasileiro do século XIX, cabe ressaltar a ausências nestas duas obras de autores negros e autoras negras, são pouquíssimos, quase inexistem.

No que diz respeito ao quarto capítulo, nomeado A Escrava, evidencia-se a natureza do conto, Luciana Diogo afirma que Maria Firmina trata a escravidão como “um grande mal”, pois, além de atentar ao declínio econômico dos países que a praticam, o processo motiva graves problemas raciais e humanos. Nesse sentido, percebe-se pelo olhar de Diogo que Firmina “assume uma postura claramente política (p. 125)”. Outro assunto relevante a que a articulista se debruçará é sobre a “questão da liberdade”, “à ideia da liberdade como a prática da própria vontade, por parte do indivíduo (p. 126)”, esta premissa é debatida no decorrer de seu texto com reflexões dignas de um debruçar profundo. Salientamos que a narrativa mencionada “situa o lugar da mulher no mundo político e cultural. O conto trata da questão da maternidade da mulher negra escravizada, centrando na separação de mãe efilho, além de discutir a questão da alforria, da escravização e da liberdade (p.128)”.

Em Cantos à beira-mar, a ensaísta nos brinda com dados a respeito do livro de poesia de Maria Firmina dos Reis, publicado oficialmente em 1871. Neste capítulo ela dialoga com o estudioso Juliano Nascimento. Este, citado pela autora, aponta que “Cantos à beira-mar é um livro de sentimentos, ligado ao intimismo ultrarromântico, que tem como característica principal o fato de realizar a apropriação de elementos fundamentais da estética romântica e de suas concepções ideológicas (p.148)”. Nestas poesias as mulheres são representadas “concretamente”, não são abstrações ou idealizações do feminino, surpreendente para o período romântico.

Luciana Diogo esclarece que a temática negra no fazer poético de Maria Firmina é quase ausente, já “a exaltação da terra e o nacionalismo”, “homenagem a pessoas ilustres”, “critica da opressão patriarcal sobre as mulheres” e o “indianismo” é evidente nos poemas.

No que concerne ao último capítulo, identificado como álbum: o diário de Maria Firmina dos Reis, datado entre os períodos de 1853 a 1903, este compreenderá fragmentos de manuscritos autobiográficos da escritora. Nele percebe-se que contexto familiar de Maria Firmina é demarcado pela presença feminina: a avó, a irmã, a prima; estas últimas, suas únicas amigas na infância e juventude.

Luciana Diogo nos revela, a partir da observação dos diários, um perfil tímido e melancólico de Firmina. A romancista transparece grande angústia e preocupação com a vida, além disso, “a escritora expressa, em seus registros, intenções suicidas e desejo de morte (p. 159)”. Os manuscritos dimensionam os sentimentos mais íntimos de Maria Firmina, imaginamos sua inquietude: era moderna para o seu tempo, vivendo em um ambiente profundamente hostil e atrasado no século XIX, ainda mais para uma mulher negra, seus desejos de morte talvez fossem mais um grito exacerbado pela concretização da plena liberdade de seus pares e de si própria, pois, mesmo alforriada, ainda havia as limitações da engrenagem escravocrata, política e cultural do período no Brasil.

A autora finaliza seu estudo apontando as referências aludidas no decorrer de todos os capítulos ao final, agradece a todos que contribuíram com a presente pesquisa.

Em síntese recomendo a todos a leitura deste trabalho elucidativo sobre Maria Firmina dos Reis, os leitores recentes e os antigos da escritora se deleitarão com a força pungente de sua história pessoal e literária. Comparo a presente obra inicialmente a um complexo jogo de quebra cabeças cujas peças são representadas metaforicamente por cada capítulo apresentado, todos se comunicam e conectam-se ao final, ainda que esteticamente estejam organizados por instrumentos diversos, tais como a vida da escritora (conto, poesia, romance e diário). É perceptível que Luciana Diogo propositalmente arquitetou nos presentear simbolicamente com a imagem de proximidade obtida ao final da leitura deste estudo.

Referência

ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28 - 34: Instinto de nacionalidade. (1ª ed. 1873).

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2013.

 

DIOGO, Luciana. Maria Firmina dos Reis: vida literária. Rio de Janeiro: Malê, 2022.
GOMES, Agenor. 
Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil. Prefácio de Luiza Lobo. Posfácio de José E. Neto. São Luís: AML, 2022.

STOWE, Harriet Beecher. A cabana do Pai Tomás. Barueri, SP: Amarilys, 2016.

 

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* Glauciane Santos é professora, graduada em Letras, Mestre em Estudos Literários pela UFMG, doutoranda em Estudos Literários pela UFMG. Participa do grupo de pesquisa “Afrodescendências na literatura brasileira”, desta mesma Instituição

 

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