A escrita de Esperança Garcia, eco das vozes de mulheres negras escravizadas

Eliane Debus
José Carlos Debus

http://www.pallaseditora.com.br/admin/_m2brupload/produtos/240/433_max.jpgO livro para infância Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta (Pallas, 2012) é de autoria da escritora afro-brasileira Sonia Rosa, nascida em 1959 no Rio de Janeiro – com uma produção literária que é contributo para a educação das relações étnico raciais - e da ilustradora carioca Luciana J. Hees, que morou por 10 anos em Moçambique e tem no seu portifólio várias ilustrações de livros de temática africana e afro-brasileira.

A narrativa do livro tem como mote uma carta do século XVII, datada de 06 de setembro de 1770, endereçada pela negra escravizada Esperança Garcia ao governador da capitania do Maranhão (Maranhão e Piauí pertenciam a mesma capitania), Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, documento recuperado pelo pesquisador e historiador Luiz Mott em 1979 no Arquivo Público do Piauí.

Segundo o pesquisador Luiz Mott em entrevista a Joca Oeiras, Portal do Sertão, em 2006, reproduzida no blog Overmundo:

Salvo erro, é a segunda carta mais antiga até agora conhecida no Brasil manuscrita e assinada por uma escrava negra, e que
revela não só os sofrimentos a que estavam condenados os cativos, como o fato de já nos meados do Século XVIII haver
mulheres negras alfabetizadas e suficientemente "politizadas" para reivindicar seus direitos e denunciar às autoridades
os desmandos de prepostos mais violentos (MOTT, 2015).

A carta a seguir reproduzida, em sua versão original e atualizada, colaboram para a compreensão dos dados históricos e dos caminhos seguidos por Sonia Rosa na construção da narrativa:

 

Quadro 1

Carta original

Carta atualizada

 

Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q. 

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia 

 

 

 

 

Eu sou uma escrava de V.Sa. administração de Capitão Antônio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia"

 

 

Como pode se ler na carta transcrita acima, Esperança Garcia denuncia corajosamente os maus tratos sofridos pelos negros, em particular as mulheres negras pelas mãos do capitão Antonio Vieira de Couto, então inspetor de Nazaré, denominado hoje Nazaré do Piauí.

Para além, dos dados factuais presentes na narrativa de Sonia Rosa (em particular o excerto da carta) o recurso de ficcionalidade faz o leitor se aproximar um pouco da vida daquelas mulheres que, nos idos do século XVIII, ousaram (re)clamar por seus direitos.

Desse modo, o livro de Sonia Rosa, como ela própria afirma em paratexto busca difundir pelo Brasil o feito, já conhecido dos Piauienses, de Esperança Garcia, “Essa mulher, assim como a esperança por uma vida melhor nunca, nunca pode morrer nos nossos corações” (ROSA, 2012, s.p)

A opção pela narrativa em primeira pessoa dá a cadência rítmica do texto em que a voz de Esperança Garcia se anuncia. A personagem facto-ficcional apresenta de imediato o seu drama: a separação do marido e dos filhos mais velhos. Não reclama do trabalho constante, pois na fazenda dos jesuítas trabalhava sem descanso, mas todos estavam juntos, agora, na fazenda do Capitão Antonio Vieira de Conto sofre maus tratos e se vê somente com os filhos menores, situações da maioria das mulheres negras escravizadas que com ela estavam.

Nasce daí, como já explicitado, a escrita da carta. Uma carta particular que traz o desejo de um coletivo. Na narrativa Esperança, espera. Espera a resposta da carta, espera unir-se novamente aos seus, espera uma vida de liberdade, espera uma vida melhor. Esperança, espera!!!

No jogo e entrecruzamento entre o que é real e o que é ficcional se consolida a escrita de Sonia Rosa ao compor a narrativa de Quando escrava Esperança Garcia escreveu uma carta.

 

Referências

MOTT, Luiz. http://www.overmundo.com.br/overblog/luiz-mott-cidadao-piauiense. Acesso em 31 de agosto de 2015.

ROSA, Sonia. Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta. Il. Luciana J. Hees. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

SOUZA, Elio Ferreira de. A carta da escrava ‘Esperança Garcia’ de Nazaré do Piauí: uma narrativa de testemunho precursora da literatura afro-brasileira. Disponível em www.letras.ufmg.br/literafro. Acessado em maio de 2018.


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