Figurações ambivalentes de uma infância possível no pós-abolição
em Raiz de um negro brasileiro, de Oswaldo de Camargo1
Ambivalent figurations of a possible childhood in the post abolition
in Raiz de um negro brasileiro, by Oswaldo de Camargo
Fernanda Silva e Sousa
Resumo
O artigo tem por objetivo analisar em Raiz de um negro brasileiro: esboço autobiográfico (2015), de Oswaldo de Camargo, a articulação entre infância e velhice a partir de um narrador marcado pela consciência das consequências de ser negro. Esse procedimento confere complexidade à experiência negra ao evidenciar as diferenças que a atravessam e permite um outro olhar sobre o pós-abolição, descobrindo uma infância possível, mas ambivalente, que dificulta a distinção entre reinvenção e sujeição.
PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia; Literatura afro-brasileira; Pós-abolição; Infância; Memória.
Abstract
The paper aims to analyze in Raiz de um negro brasileiro: esboço autobiográfico (2015), by Oswaldo de Camargo, which connects childhood and old age through a narrator characterized by the awareness of the consequences of being black. This procedure ascribes complexity to the black experience by showing the differences that cross it and allows a new look at the post-abolition, discovering a possible, but ambivalent childhood, which difficulties the distinction between reinvention and subjection.
KEYWORDS: Autobiography; Afro-Brazilian literature; Post-abolition; Childhood; Memory.
Introdução
Em um estudo sobre a literatura brasileira contemporânea que mapeou as características dos escritores e das personagens retratadas em 258 livros publicados por três grandes editoras brasileiras entre 1990 e 2004, foi obtido o resultado de que 93,9% dos autores das três editoras são brancos (DALCASTAGNÈ, 2012). O que chama ainda mais atenção é que 84,5% dos protagonistas e 86,9% dos narradores são brancos. Sintomaticamente, há um protagonismo negro apenas em 5,8% das obras e, como narrador, o negro aparece apenas em 2,7% das obras. Quanto à trama, 61,1% das personagens negras são assassinadas ao longo das narrativas e 20,4% ocupam a posição de bandido/contraventor.
Mais do que atestar o estado de um campo, os resultados ajudam a pensar em como escritores negros podem desafiar profundamente essa configuração em que “o que está representado ali não é o outro, mas o modo como nós queremos vê-lo” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 28). É o caso do livro Raiz de um negro brasileiro: esboço autobiográfico, de Oswaldo de Camargo, publicado em 2015, quando o escritor já tinha 79 anos. Com um gênero – a autobiografia – que envolve a reconstituição de um percurso biográfico no tempo, situado na fronteira entre literatura e história, Camargo reconstitui, através de um narrador em primeira pessoa, uma infância ainda marginalizada: a infância de uma criança negra no Brasil, especificamente a de um menino negro em Bragança Paulista, interior de São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940, figura que ainda tem sido confinada a uma série de estereótipos que o aproximam do marginal ou o concebem como uma criança abandonada, sem laços familiares (JOVINO, 2015). Na obra, entretanto, a partir da dicção do velho Oswaldo, o menino Oswaldo irrompe como alguém marcado por múltiplos afetos, sentimentos e práticas que parecem preencher o vazio pelo qual por muito tempo se viu a experiência negra no pós-abolição, reduzida à noção de marginalidade e anomia (WISSENBACH, 1998).
Reconstituir uma criança negra envolve recompor um sujeito que historicamente teve uma “infância encolhida”, pois essa etapa de vida era interrompida para entrar no mundo do trabalho durante a escravidão (MATTOSO, 1988, p. 55), assim como jogar luz nos espaços em que ela esteve presente e (re) existiu. Nesse sentido, Camargo faz de Raiz um livro que dimensiona a complexidade da experiência da população negra no Brasil ao explorar diferenças que são subsumidas à categoria “negro”, sociologicamente importante, mas que pode obliterar seu caráter multifacetado, uma vez que a categoria raça não é internamente homogênea. Seu livro possibilita, assim, olhar para o pós-abolição a partir de um foco outro: o da criança negra, entendendo que a infância também faz parte da experiência de ser negro.
Há, assim, uma articulação entre a reelaboração de suas impressões na infância e a perspectiva de um narrador idoso que apresenta “memórias subterrâneas” (POLLAK, 1989, p. 5), ou seja, que passaram ao largo do que se constituiu como memória oficial. Nesse contexto, a literatura assume um lugar privilegiado de memória, pois ela “pode penetrar nas falhas e desvãos da história e da memória”, na “tentativa de colmatar os não-ditos da história” (BERND, 2013, p. 47). É construída, então, uma espécie de “memória habitada” (ASSMAN, 2011, p. 146), isto é, contingente e corporificada, que ganha força na narração da criança negra que fora, uma figura sem grande protagonismo e presença no cânone literário brasileiro, uma vez que esta é marcada pela ausência de representação da maternidade da mulher negra (EVARISTO, 2005).
Na busca pela raiz, uma infância ambivalente e possível
Raiz de um negro brasileiro: esboço autobiográfico é um título que anuncia explicitamente a identidade racial do escritor, uma vez que “um negro brasileiro não é igual a qualquer homem, cidadão do Brasil” (SILVA, 2015, p. 12), mas, ao longo do livro, essa identidade é tratada como um dado orgânico e não como um referente que precisa ser constantemente reiterado, como se “negro” fosse seu segundo nome (MBEMBE, 2014). Em outras palavras, o tratamento literário em Raiz da experiência de ser negro brasileiro envolve um trabalho com uma amálgama de sentidos, questões, dilemas e práticas que prescinde de uma reiteração contínua da identidade, uma vez que se desvela, em cada capítulo, as especificidades dessa experiência sem um tom de denúncia, mas com lacunas, questionamentos, incertezas. Há, além disso, um sujeito que se ancora no universo simbólico e experiencial da população negra e pobre no pós-abolição, em que a cor negra das pessoas descritas está pressuposta.
Em resposta a sua própria constatação de que “Negros têm um péssimo hábito: morrem cedo e não deixam memórias” (SILVA, 2015, p. 11), Oswaldo de Camargo escreveu seu “esboço autobiográfico”, que se configura também como esboço de uma coletividade que inventava e improvisava formas de sobrevivência nas primeiras décadas do século XX no interior de São Paulo, formando “um mosaico não de identidades negras fixas feito essências, mas identificações em processo, com suas nuances e contradições” (DUARTE, 2018). Esse esboço está dividido em 32 capítulos curtos, todos intitulados de maneira um tanto lacunar, marcados por palavras comuns e sem uma ligação explícita com o pertencimento racial do narrador, como “Presença”, “Berço”, “Laços”, “Temores”, “Bexigas”, “Catolicismo”, “Transvios”, “Mangas”, “Sinhazinha Félix”, “Mãe-Pai”, “Aonde?”, para citar alguns.
Os capítulos formam, assim, uma estrutura caleidoscópica, como pequenos fragmentos em torno de momentos de sua infância que podem ser justapostos e lidos de forma não linear, mas que espelham uma mesma perspectiva: a de um negro brasileiro. Além disso, os títulos escolhidos parecem promover um deslocamento semântico e simbólico quanto a termos historicamente utilizados para descrever a existência da população negra, como morte, violência, abandono, promiscuidade, criminalidade, alcoolismo, encarceramento, tristeza, pobreza, desesperança, loucura, palavras que, a despeito de sua acuidade, podem soterrar, muitas vezes, outras dimensões da vida.
Quanto ao subtítulo – esboço autobiográfico –, é possível observar a incorporação da noção de “esboço” à própria forma do livro, com a fragmentação dos capítulos, opondo-se, assim, a discursos totalizantes ao conferir aos rastros de sua infância, de sua cidade e de seus familiares um papel significativo na rememoração. Há também uma sutil contradição, haja visto que “raiz” remete a uma espécie de origem que pode ser recuperada, mas que, na obra, se expressa em um “esboço autobiográfico” na medida em que a experiência da escravidão e suas consequências no pós-abolição tornam a reconstituição de uma genealogia familiar negra uma tarefa quase impossível, em razão dos silêncios, apagamentos e distorções do arquivo (WISSENBACH, 2002), além das próprias rupturas, mortes e afastamentos em um período em que a população negra estava mais vulnerável ao desemprego e à exploração. Por isso, seu livro de memórias não poderia ter outra forma que não a de um “esboço”, incorporando a necessidade e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de contar de forma precisa uma história que não seria apenas dele, mas também uma história coletiva (SILVA, 2015).
Para fins de análise, serão escolhidos alguns capítulos de Raiz, entendendo-os como parte de uma experiência cuja representação é composta por rastros, fragmentos e lampejos de uma realidade que se afigura como um amontoado de escombros (GILROY, 2002). Por debaixo dos escombros, contudo, é possível imaginar uma criança negra e um idoso negro que se levantam e parecem dar as mãos no gesto de buscar a raiz de um negro brasileiro. É o que se pode encontrar na abertura do livro, com o capítulo “Presença”, reproduzido abaixo na íntegra:
Sou um negro brasileiro.
Quando nasci, era mais fácil para meu país prever a via pela qual transitariam corpo e sombra de um recém-nascido preto, e até pôr-se à espreita, observando o seu trajeto, quase sempre pouco interessante ou mesmo enfadonho, de tão repetitivo: “Será, entre os demais, um brasileiro comum, nada soerguido acima do chão que recolheu suas primeiras pegadas; a pretidão que o realça – o seu mais notado emblema – não se enveredará por caminhos imprevisíveis.”
No geral, era assim no meu tempo de nascimento.
A Pátria sabia a segurança que era ter, no futuro, sobre seu solo, tal matiz de negro brasileiro, pois o inesperado é terrível, ameaça o construído, corrói obras a que se chegou com esforço até demasiado. Então, neste sentido, semelhante condição significava a garantia de antiga e apaziguante tranquilidade. Foi esta a minha situação e a da maioria dos meus companheiros.
Era como se existisse um corredor pelo qual, cinco decênios após a Abolição, transitássemos em silêncio. Uns tentavam, sem êxito, atravessá-lo; outros se acostumavam às lambidas das sombras que nele moravam desde séculos; havia os que findavam sem acrescentar um grito à sua fala urdida com humildade e desencanto; outros, uns poucos, ensaiavam a possibilidade de frestas pelas quais espiasse um fio de parca luz escorrendo para dentro daquela antiga escuridão. Era cômodo para meu país conter no seu solo tal presença de negro brasileiro.
Não falo não de todos os negros do meu tempo, falo de inúmeros; suponho a maioria.
Gostaria de conhecer a história dos que não percorreram esse corredor opaco e borrado de silêncios. Quem sabe eu seria obrigado a beijar a mão da Pátria e rogar perdão pelo engano ou quase estorvo que lhe trouxe ante a face, impelido por pensamentos e conclusão equivocados.
Fato é que sou um negro brasileiro, e nada vejo que me detenha diante das consequências imprevistas dessa simples constatação, pois nódoas e algum brilho meu se encontram em todo o canto; meu odor ou fedor ainda são sentidos em muitas estradas por onde passou e passa até hoje muita gente como eu (CAMARGO, 2015, p. 21-2).
Destaca-se, primeiramente, a disposição do texto, em que a afirmação “Sou um negro brasileiro” aparece na forma de um período único, como se essa declaração falasse por si e tivesse uma ressonância superior a qualquer grande explicação, surgindo como anúncio e reafirmação da própria existência. Em seguida, o narrador passa do presente (“Sou”) para o passado, fazendo referência à quando nasceu e era um “recém-nascido preto”, “corpo e sombra”, e descrevendo aquilo que seria seu andar, como se o andar cambaleante da criança que está aprendendo a caminhar seria o mesmo que o acompanharia durante toda a sua vida. A inocente imagem de um recém-nascido preto é, além disso, revestida por um discurso eloquente e profético, que parece ser de uma “Pátria” que se sentia segura ao não ver futuro naquela criança, pois ela não fazia parte do futuro do país que idealizava o branqueamento da população (SKIDMORE, 1976).
Ser um negro brasileiro é, por isso, enfrentar a “pretidão” que se transforma em um emblema da existência, uma sentença de que por “caminhos imprevisíveis” esse sujeito não passaria, uma vez que caberia a ele percorrer um corredor escuro de silêncios, onde não há luz que o faça escapar da própria escuridão. Não se trata, porém, de um corredor feito apenas para esse negro brasileiro, mas também para muitos como ele, “a maioria”, ele supõe, em que a Pátria é uma adversária e, ao mesmo tempo, uma mãe de quem se esperava o mínimo de reconhecimento.
A nação, por sua vez, tem voz e consciência, mesmo sendo um substantivo abstrato, e parece ter mais força e concretude do que o próprio narrador, “corpo e sombra”, que se vale de uma linguagem metafórica que busca conferir alguma dignidade e beleza às tentativas de muitos negros brasileiros de transitar por caminhos imprevisíveis, acompanhada por uma contundência e precisão na frase que não deixa de expressar a crueldade, apesar de não dizê-la diretamente (DUARTE, 2018). A violência e a marginalização que marcam o pós-abolição aparecem de forma cifrada, como algo indizível, de modo que são as escolhas lexicais e metafóricas que conseguem projetar uma sensação de emparedamento que não se desvincula de um corpo negro que é visto como uma “figura em excesso”, sendo o “exemplo total deste ser-outro, fortemente trabalhado pelo vazio, e cujo negativo acabava por penetrar todos os momentos da existência – a morte do dia, a destruição e o perigo, a inominável noite do mundo” (MBEMBE, 2014, p. 28).
Nota-se, assim, uma relação entre negro e escuridão, negro e invisibilidade, negro e sombra, elementos que parecem se contaminar mutuamente e dificultar uma visão sobre si próprio para além da cor em um mundo em que o branco figura como belo, íntegro, puro e se assume como condição de ser humano (FANON, 2008). Porém, no último parágrafo, ao afirmar a sua consciência sobre ser negro, o narrador irrompe como a raiz de uma árvore em um solo aparentemente infértil para seu tipo, um sujeito que reitera o fato de ser um negro brasileiro e assume a necessidade do embate com as “as consequências imprevistas dessa simples constatação”, em que o esboço autobiográfico se estabelece como uma tentativa de enfrentar esses efeitos, que exige um resgate da infância.
O menino Oswaldo, aliás, emerge de forma significativa nos capítulos “Sentinelas”, “Bexigas” e “Temores”, que oferecem um quadro ambivalente de uma infância possível para uma criança negra no interior de São Paulo. Em “Sentinelas”, o narrador rememora:
Fui, quando criança na fazenda da Sinhazinha, apenas um quase bichinho, solto junto aos brejos e à barroca onde as crianças se divertiam, amassando barro, arranhando o ar com a sua aguda gritaria, saindo à pega de rãs, preás e outros bichos que frequentam terra úmida, assistindo ao coito de porcos e cavalos e, aos cinco anos, brincando sem decência com menininha no paiol que ficava não longe do antigo casarão.
Cafezais, mangueiral e mata cerrada amedrontadoramente escura na entrada da fazenda são sentinelas postadas na minha memória, com presença – estou certo – até o meu último dia (CAMARGO, 2015, p. 30).
Em “Temores”, ele se lembra do seu espírito desbravador na época da Segunda Guerra Mundial, em que passeava livremente nos limites entre uma estação de trem e outra da cidade de Bragança:
No dentro de mim, nostalgia sempre, até hoje, por jamais ter visto o que existia após essa estação [Estrada de Ferro Bragantina]. Três paradas ferroviárias, descobri mais tarde: Guapripocaba, Curitibanos, Bandeirantes. Pai e mãe nunca me levaram.
Desbravava, sim, a cidade, ninguém me detinha porque, afinal, eu não existia e, consequência, ninguém me notava. Mas já conhecia o medo, mesmo o terror (CAMARGO, 2015, p. 50).
Em “Bexigas”, o narrador relata o período da vida em que sua família quase se tornou indigente, passando, em função disso, a fazer chouriço para vender. Para isso, o menino Oswaldo ia ao matadouro junto com o seu pai para pegar os restos dos animais. Perto do abatedouro, havia uma extensão de terra, onde
após a lavagem dos buchos dos bois, deitavam todo estrume, que continuava morno durante um bom tempo. Ali podiam também ser encontradas bexigas daqueles animais, ótimas para encher, virando um bom divertimento. Infladas, cabia bastante ar dentro delas, e, estourando, eram um festival de barulho.
Para pegar bexigas, entrava no cimentado e seguia, atolando os pés até a canela no estrume ainda morno, o que achava bem aprazível, pois oferecia uma quentura muito gostosa.
Bragança era uma cidade fria demais, famosa de fria.
Sou hoje grato aos bois e às vacas que, antes de serem abatidos, iam mugir no matadouro de Bragança. Graças a eles, fruí muitas vezes aquele mimo de quentura que rebatia, pelo menos nos pés, a frialdade brava de minha cidade (CAMARGO, 2015, p. 53).
A natureza que possibilita momentos de diversão e de escape à condição de pobreza e de invisibilidade também apresenta elementos repressivos, como os cafezais, o mangueiral e a mata cerrada, soldados de uma fazenda que figurava como um “branco soberbo e indiferente” (CAMARGO, 2015, p. 24) para uma criança negra que não existia e que se perde e se confunde em meio a uma “mata cerrada amedrontadoramente escura”, como parece ser sua própria existência. Assim, sua aproximação com a natureza e com os animais, embrenhando-se em meio ao estrume para brincar com as bexigas dos bichos mortos, onde sentia uma “quentura” que aliviava o frio da cidade, é reveladora de que “a vida sob o signo da raça sempre se faz equivaler à vida num jardim zoológico” (MBEMBE, 2017, p. 220). Ser negro implica, então, a experimentação de condições de vida que se assemelham a dos animais, uma vez que o negro seria um protótipo de homem, carne, bicho, fóssil, monstro, apartado de uma humanidade em comum (MBEMBE, 2014) e que ocupa uma zona de não-ser (FANON, 2008).
Não é, portanto, por acaso o sentimento de acolhimento em meios aos bichos por parte de alguém que, além de invisível, é animalizado. Diante disso, o narrador agradece aos animais por rebaterem pelo menos nos pés a “frialdade brava” de Bragança e despertarem uma sensação de conforto quando criança, mas que, no presente, sabe ser ilusória, pois reconhece que o estrume era incapaz de aquecer o resto do seu corpo negro, refém de sua própria aparição (FANON, 2008), que continua a passar frio e a viver com o medo e o terror que menciona em “Temores”. Se a população negra se encontra na lata de lixo da sociedade brasileira (GONZALEZ, 2018), atenuar a frieza da indiferença social com o estrume dos animais, que oferece o “mimo de quentura”, explicita o rebaixamento humano que o racismo produz na experiência de ser negro, configurando-se como uma forma extrema de improvisar um momento de conforto em meio à marginalização.
Considerações finais
Raiz de um negro brasileiro narra, dessa maneira, um tempo “em que boa porção do povo preto apenas se disfarçava de gente” (CAMARGO, 2015, p. 63). Há figurações de momentos que são vividos pelo menino Oswaldo como algo da ordem da liberdade e que traduzem uma infância possível em meio às adversidades no pós-abolição, mas ambivalente, pois se confunde com o próprio abandono social, a invisibilidade e o rebaixamento de sua condição humana. Diante disso, uma das consequências da experiência de ser negro brasileiro que emerge da obra é a necessidade de improvisar e reinventar formas de vida, de escape, de sobrevivência que não estão desarticuladas da própria opressão, uma vez que são gestadas em meio ao e a partir do precário.
Nesse caso, observa-se que o trajeto da criança negra “quase sempre enfadonho ou pouco interessante” (CAMARGO, 2015, p. 21) é transformado ao ser narrado em primeira pessoa, em um processo em que a subjetividade ocupa um papel de protagonista na recuperação da infância a partir da velhice e desmente a profecia da nação quanto ao seu nascimento quando vidas negras ainda são tão precocemente interrompidas tanto na literatura quanto na vida real. Revela-se, então, uma infância ambivalentemente possível, pois “as crianças negras estão presentes não apenas pelo que lhes faltam (ou dizem-lhes faltar) e sofrem, mas também por aquilo que são” (NUNES, 2016, p. 383).
Nota
1. Artigo originalmente publicado na revista Crioula, cf. SOUSA, Fernanda Silva e. Figurações ambivalentes de uma infância possível no pós-abolição em Raiz de um negro brasileiro de Oswaldo de Camargo. Revista Crioula, v. 1, n. 23, pp. 141-153. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169.crioula.2019.156881>. Acesso em 20 jan. 2023.
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* Fernanda Silva e Souza é professora, Graduada em Letras (USP), tradutora, Mestre e Doutoranda Teoria Literária e Literatura Comparada (USP).