Escravidão em Pauta: Uma Análise das Crônicas de Machado de Assis e Lima Barreto que Apresentam A Figura do Negro na Sociedade Brasileira

Giovana Chiquim

Machado de Assis e Lima Barreto foram autores bastante conscientes das condições de produção da época em que viviam e, inclusive, tinham uma visão bem nítida do seu público leitor. Esses escritores fizeram parte de uma geração de literatos que encontrava nos jornais um espaço mais acessível para a divulgação de seus escritos, já que naquela época a edição de livros era restrita. Ambos compreendiam que o folhetim, “pedaço de página por onde a literatura penetrou fundo no jornal” (Arrigucci, 1987, p. 57), era observado pelo público como um meio de entretenimento e talvez como acesso de algum conhecimento. O folhetim nasceu na França no início do século XIX e foi rapidamente incorporado pela imprensa brasileira. Era publicado em tiras, no rodapé da primeira página do jornal. O conteúdo estava relacionado a comentários culturais sobre livros, filmes e peças de teatros, romance publicados em episódios, piadas e até mesmo receitas de cozinha. Desta forma, os textos de Machado de Assis e Lima Barreto divulgados nos folhetins não eram dirigidos para a crítica literária, mas para alcançar o leitor comum – homens e mulheres que formavam uma classe burguesa ascendente durante o período oitocentista, no tocante a Machado, e à sociedade capitalista da primeira fase do Brasil republicano, no que diz respeito a Lima Barreto.

Entre todos os gêneros literários percorridos pelos dois autores e publicados no folhetim, a crônica se destaca por ser uma forma de literatura que joga luz em um fragmento da realidade. Uma combinação de texto jornalístico e literário, a crônica pode ser ficcional, mas mesmo a partir de personagens inventados, seu objetivo é retratar uma cena do cotidiano comum. Mais do que os contos e romances, ela chama a atenção do público para temas menos candentes (já que os assuntos emergenciais são explorados pelo jornalista de ofício), mas que fazem parte do nosso dia-a-dia. De forma leve e sutil, o cronista consegue tocar fundo nas mazelas sociais e levar o público à reflexão.

As crônicas dos dois autores que serão analisadas no decorrer desse artigo relatam a situação do negro em um dado momento da nossa história e revelam as imbricações entre a literatura e a sociedade. Por isso, entendemos que esses textos são primordiais para aqueles que estudam a produção literária como um processo cultural interligado às outras esferas sociais.

A produção machadiana é objeto de pesquisa de críticos literários brasileiros e estrangeiros. Contundo, Jonh Gledson salienta que “é espantoso como se tem estudado pouco o jornalismo de Machado” (1986, p. 115). Sobre a produção de Lima Barreto, o mesmo fato se repete. Zélia Nolasco Freire (2005) relaciona aproximadamente uma centena de referências bibliográficas sobre a obra do autor, na qual se evidencia a preferência dos teóricos pelos textos ficcionais.

Apesar de seu vasto potencial de pesquisa acadêmica, não existem muitos estudos direcionados para o grande acervo de crônicas de Lima Barreto – que teve a professora Beatriz Resende de Castro como uma das precursoras entre os pesquisadores que se dedicam a essa temática. Desta forma, as observações de Gledson e de Freire justificam a importância desse trabalho.

Mas antes de nos debruçarmos sobre as crônicas de Lima Barreto e de Machado de Assis, faremos uma breve ‘digressão’, necessária para contextualizar o leitor desse artigo no universo dos dois autores em questão e também para inscrever tais escritores no ‘panteão’ da literatura afrodescendente no Brasil.

Filho de um operário mulato e de uma imigrante açoriana, Machado de Assis herdou a pele escura dos avós afro-brasileiros. Nascido em 1839, o escritor máximo da nossa literatura testemunhou a assinatura da Lei Áurea (1888) e a transição do regime imperial para o republicano. Essa sociedade burguesa, inspirada no modelo europeu, era a linha mestra dos escritos machadianos.

Em todos os gêneros literários (romance, contos, crônicas, ensaios, artigos e peças teatrais), os enredos e os personagens complexos criados por Machado, principalmente em seus romances, mascaram as críticas sociais, que são a tônica de toda sua obra. Ao dar voz a um defunto, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), por exemplo, o escritor utiliza a força da imprensa (antes de ser publicado em livro, os capítulos do romance foram divulgados em jornal um ano antes) para realizar um compêndio de denúncias contra o espírito localista e atrasado do Brasil oitocentista, especialmente no que se refere à escravidão. Em um contexto mundial e local de transformações (em que o pensamento colonial e absolutista deveria ser substituído por ideais de liberdade) o tráfico negreiro e a monocultura de exportação ainda eram a engrenagem da sociedade brasileira.

No romance inaugural da escola realista na literatura brasileira, Machado cria um narrador-protagonista aos moldes da sociedade da época. Nas reminiscências da infância, Brás Cubas revela o tratamento dado aos negros pelos brancos: “...um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza do tacho, (...) fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce por pirraça” (Assis, 1994, p. 32).

Deste modo, as teses que relatam que o escritor, “numa prova de sua branquitude de inspiração, ficando à margem e pouco se importando com os movimentos sociais de seu tempo” (Rodrigues, 1997, p. 256), ignorou sua negritude e o cenário brasileiro de seu tempo, não se confirma. Os traços afrodescendentes, sua contrariedade em relação à escravidão, bem como outros questionamentos políticos afloram em seus textos, sobretudo nas crônicas, como observaremos adiante.

Nesse sentido, a obra de Machado de Assis se irmana ao cerne da literatura produzida por Lima Barreto, nascido em 13 de maio de 1881, um ano fecundo para a literatura brasileira – como já dissemos anteriormente, foi nesse ano que Machado publicou Memórias Póstumas, além da publicação de O Mulato, por Aluízio Azevedo, um marco da literatura naturalista no Brasil. Lima Barreto era filho de pai e mãe negros nascidos escravos e assim como Machado, transgrediu sua origem humilde e se tornou um jornalista e escritor reconhecido. Suas obras resgatam o fim do período imperial no Brasil, as remotas lembranças da Abolição da Escravatura (que aconteceu no dia em que ele completou sete anos, no mesmo dia do seu nascimento) e o preconceito vivido pelos negros mesmo após o ‘fim’ da escravidão.

Os episódios vividos por Lima na infância e as dificuldades que enfrentou na vida adulta devido à pobreza e a sua condição étnica exerceram influência sobre a visão crítica do escritor. O racismo sempre foi ‘uma pedra no caminho’ do autor desde os tempos de escola, em que o menino Afonso Henriques Lima Barreto era um sujeito retraído e isolado, por conta de sua cor. Na faculdade, “sofria constantes reprovações injustas e experimentava frontalemnte a discriminação racial. Seu sentimento de revolta, suas atitudes pessimistas e seu complexo de inferioridade aumentam” (Prado, 1980, p. 4), levando o autor ao alcoolismo ainda na juventude.

Como observou Antonio Houaiss (1956), Lima Barreto sempre se caracterizou por uma atitude de rebeldia. Apesar de acusado de praticar incorreções e mau gosto, o escritor sempre soube fazer uso abrangente da linguagem para a comunicação militante de sua arte. De fato, na obra de Lima Barreto é difícil estabelecer limites entre o intelectual profundamente consciente das questões políticas e sociais e a estitística de sua literatura, que insistia em não adotar estilo algum; entre o jornalista sem piedade e temor, que de forma mordaz mostrava o lado grotesto dos homens, e o mulato sensível, que enchia as páginas de seu diário íntimo de angústias, vergonha e ressentimentos sobre as armaguras de sua vida, “tão parecida ainda com a senzala, e que o chicote disciplinador de outrora ficou transformado na dureza da pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia” (apud Candido, 1987, p. 46).

E é nesse ponto que os dois célebres escritores afrodescendentes se comportam de maneira distinta. Lima Barreto foi um autor essencialmente partidário. Na visão dele, a literatura era uma maneira de levar ao homem comum a mensagem de sua libertação e estimular a sociedade a lutar até que todos os direitos fundamentais do homem fossem reconhecidos. Wilson Martins (1955) afirma que, ser ‘militante’, de acordo com Lima Barreto, significava revelar o ‘real’ em detrimento do ‘bonito’. O escritor era um negro que falava de negros e sentia na pele a situação sociológica de sua raça. Em toda sua vida, foi incapaz de ocultar seus vestígios afrodescendentes para qualquer efeito prático e imediato.

Por outro lado, Machado escolheu outro caminho. Perspicaz, a figura do negro sempre fez parte de seus escritos, mas de forma que o escritor não entrasse em um confronto direto com a burguesia do século XIX. Mesmo adotando essa medida defensiva, quando falava de negros, Machado humanizava sua raça, como em uma crônica publicada em A Semana em que apresentou o escravo como um ser dotado de intelecto e não apenas de atributos físicos, animalizado, que os proprietários de terras aproveitavam somente para serviços braçais: “Há quem pense, transpirando; eu, quando transpiro, não penso. Deixo essa função ao meu criado, que, do princípio ao fim do ano, pensa sempre” (fonte: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/semana.html).

Contudo, reconhecendo que era um homem negro na cidade letrada dos brancos, Machado não produziu uma literatura essencialmente panfletária para expressar os sofrimentos da classe negra, oprimida. Machado sabia que também precisava falar de brancos nas suas obras para conseguir expressar suas ideias junto à classe dominante. A presença do branco em suas narrativas não foi premeditada para esconder suas raízes, mas para conquistar a confiança do leitor. Fazia parte da tática de Machado desenvolver personagens com a visão do mundo do homem daquele tempo e, no mesmo momento, criticar esse comportamento de forma oculta, como podemos observar nessa frase de Memórias Póstumas: “Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem” (1994, p. 21).

Apenas os leitores mais argutos são capazes de perceber que, em uma única frase, como essa citada acima, Machado era capaz de apresentar o retrato da sociedade oitocentista, completamente esvaziada de senso crítico.

Dessa forma, não podemos confundir os valores dos personagens ficcionais de Machado de Assis com os ideiais do próprio autor, que não foi um abolicionista apenas com a pena nas mãos. Quando trabalhava como funcionário público do Ministério da Agricultura, o cidadão Machado de Assis se empenhou para que a Lei do Ventre Livre fosse cumprida, levando para o Tribunal os casos de filhos de escravos que ainda não tivessem sido libertos, garantindo a eles os mesmos direitos civis do homem branco, como aponta Raimundo Magalhães Junior (1957).

Por mais de quarenta anos, entre 1859 e 1900, Machado de Assis exerceu regularmente a função de cronista em vários veículos fluminenses, como O Espellho, Diário do Rio de Janeiro, Semana Ilustrada, O Futuro, Ilustração Brasileira, O Cruzeiro e Gazeta de Notícias e desempenhou papel fundamental na formação do jornalismo brasileiro, inclusive como crítico da própria imprensa

• Machado pode ser comparado, guardadas as proporções, ao ‘semiólogo’ do nosso tempo. Na visão dele, o jornal funcionava como um medicamento em conta-gotas, que usado em doses diárias, poderia curar a sociedade da alienação. Nas palavras de Machado de Assis,

a primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os membros do corpo social.

Assim, o operário que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá encontrar ao lado do pão do corpo, aquele fácil espírito, hóstia social da comunhão pública (“A reforma pelo jornal”, 23/10/1859).

Nessa mesma crônica da qual extraímos a citação acima, o escritor descreve o jornalista como um herói 1 em busca da verdade, que tinha uma ‘missão’ repleta de responsabilidade social. Nos pensamentos de Machado era preciso legitimar a imprensa como uma atividade vital, pois caberia a ela reformar a sociedade oitocentista, que se encontrava no abismo do analfabetismo e da escravidão – mesmo depois da Abolição. E incorporado à esfera jornalística que encontramos a figura do cronista, que realizava uma função política preponderante, já que a crônica funciona como uma espécie de tribuna ampliada das diversas correntes de ideias. É como se o cronista fosse o “orador” do jornal, pois o gênero permite ao autor fazer um pronunciamento em relação ao fato, diferente do jornalista que escreve a notícia, um formato de texto que reclama a exatidão das informações, sem a interpretação dos acontecimentos.

No entanto, apesar de ocupar um espaço privilegiado, de maior liberdade de expressão, o cronista não pretende impressionar e sim atuar como um interlocutor sincero e caseiro. Sem ter o compromisso de se dirigir à posteridade, já que é fugaz, como o jornalismo, a mensagem do cronista é envolta de premência e carnalidade. Um escrever despretencioso para as arcádias literárias, mas que se importa com o destinatário.

As ambiguidades do gênero não terminam por aí. A crônica aparenta gratuidade na superfície, porém, possui uma profundidade de espírito. Trata do comezinho e adota uma linguagem coloquial, mas convence porque sua seriedade é lúdica. E pode ser até mesmo comparada a um estilista, uma vez que o gênero tem seu lado de mercadoria (já que é um produto da comunicação de massa) e outra face artística, emprestada do discurso literário.

A ambivalência da crônica foi percebida por Machado de Assis, que definiu o folhetinista (como eram conhecidos os cronistas passadistas) como “a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consociado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como polos heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal” (apud Coutinho, 1986, p. 121). Traduzindo a metáfora machadiana, a crônica, que na época do escritor era similar ao que a imprensa inglesa chamava de essay (um ensaio informal, pessoal, familiar), é uma porção de literatura – designada por ele como o fútil e o frívolo, para atenuar o sabor ‘forte’ das notícias – que o escritor considerava o útil e o sério.

Machado sabia que a matéria jornalística era o prato principal da imprensa e que, nesse banquete, a crônica é a “castanha gelada, a laranja, o cálice de Chartreuse, uma coisa leve, para adoçar a boca e rebater o jantar” (Assis, in: O Cruzeiro, 14 de julho de 1878). Todavia, o escritor apropria-se dessa leveza do folhetinista para tratar de assuntos de peso, “metendo-lhes o jocoso” (“Balas de Estalo”, 26/09/1884) apenas como uma máscara para disfarçar o tom crítico do texto. Se eles não entenderem de imediato, tanto melhor 2 . “Conto com isso, diz, para gozar de um pouco da sua estupefação, um dos raros e últimos prazeres de escritor” (apud Cardoso, 1992, p. 139). Em outra crônica, Machado novamente zomba do comportamento alheio de seus leitores em relação aos problemas da sociedade do século XIX, ao comparar o gênero como uma bala: Doce, alegre, dissolve-se rápido. Mas açúcar vicia, dizem.

Crônica vem de Cronos, Deus devorador. Nada lhe escapa.

Quando se busca a bala, resta quando muito, o papel, no chão, descartado. A crônica-bala, sem pretensões nutritivas, nunca foi artigo de primeira necessidade. Só aos alfabetizados se permite esse luxo suplementar (apud Cardoso, 1992, p. 142).

Uma crônica em especial, que fala da libertação de um escravo dias antes da abolição, ilustra essa afirmação feita por Machado sobre o significado real embutido em seus textos jornalísticos. Os “alfabetizados” identificados pelo escritor não são todos aqueles cidadãos que cumprem bem a tarefa de ler e escrever, mas uma minoria dotada da capacidade de entender o que está nas entrelinhas, isto é, relacionar fatos reais com uma história inventada pelo cronista como um pretexto, apenas para levar uma mensagem aos seus leitores.

Para escrever a crônica que analisaremos a seguir, Machado recorreu à ficção e emprestou a sátira e a ironia de seu personagem Brás Cubas para construir o caráter de um senhor de escravos que resolve conceder a liberdade a um dos seus ‘molecotes’, dias antes da assinatura da Lei Áurea: “Por isso digo e juro, se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote, que tinha pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888).

Já que estava tendo prejuízo mesmo, já que não teria mais um servo que lhe servisse de graça, o benfeitor resolveu oferecer um jantar, pois entendeu que “perdido por mil, perdido por mil e quinhentos” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888). Durante o banquete regado a champanha para cinco amigos, propôs um brinde e declarou que, seguindo os ensinamentos de Jesus, iria conceder a liberdade a um escravo, o Pancrácio, e fez o seguinte comentário: “a nação inteira deveria acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888).

Nessas linhas Machado começa a empregar a ironia aos moldes de Brás Cubas. Com muita sutileza, o escritor usa a voz do personagem e recorre às leis cristãs para crucificar o comportamento dos senhores que tomavam posse de outros seres humanos e submetiam esses homens a condições desumanas.

Mais do que mostrar um bom exemplo de alguém que libertara um escravo por livre e espontânea vontade, a intenção principal do autor nesses escritos era denunciar nossos antepassados, que se diziam cristãos mesmo contrariando os ensinamentos bíblicos de igualdade dos homens perante a Deus. Em uma crônica publicada em 21/01/1885, Machado afirma que o jornalista tinha um “ofício certamente pesado, pois obriga a ter “ideias”, como essas em que ele adota uma linguagem irônica para “nada menos, que produzir a maior revolução do século” (Assis, 21/01/1885).

De acordo com Beth Braith, uma estudiosa no campo da análise do discurso, é possível “flagrar a ironia como categoria estruturadora do texto, cuja forma de construção denuncia um ponto de vista, uma argumentação indireta” (1996, p.

16). Além desta, outra função do discurso irônico é apontada por Linda Hutcheon e também pode explicar porque a adoção dessa figura da linguagem é frequente na obra de Machado. Conforme a teórica, a ironia é “um instrumento poderoso ou até mesmo uma arma na luta contra uma autoridade dominante – que diz-se, a ironia trabalha para destruir” (Hutcheon, 2000, p. 50).

Essa crônica ainda apresenta um riquíssimo debate sobre outras questões que circundavam a Abolição. Na continuidade, o escravo invade o banquete e abraça os pés do seu senhor. Um dos amigos, que o narrador acreditava ser seu sobrinho, “pegou outra taça e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888). O anfitrião agradeceu com outro discurso e entregou a Pancrácio a carta de alforria. “Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888).

O benfeitor explica que recebeu muitos cartões com congratulações pelo ato de libertar um escravo. Os detalhes da narrativa, como nessa frase em que o narrador relata que acreditava que o seu retrato estava sendo pintado a óleo, como forma de homenageá-lo, apenas parecem casuais, mas são carregados de significados e nos mostram que cada frase machadiana “é de fato sempre faceira: exige que nós a olhemos antes de ver o que ela mostra” (Melquior, 1994, p. 7). Novamente, Machado utiliza o discurso irônico e cria um “mini enredo” que apresenta uma inversão dos valores da sociedade oitocentista: a libertação de um escravo é comemorada e observada como uma ação notável, quando na realidade, a prática da alforria associada a um ato de caridade era motivo de vergonha e não de orgulho para a burguesia.

No dia seguinte ao banquete, o senhor chamou Pancrácio para lhe dizer que ele era livre, que tinha adquirido o direito de ir para onde quisesse. Entretanto, caso decidisse ficar em sua casa, que já era conhecida, teria um ordenado. O ‘ex-escravo’ não conteve sua empolgação e antes mesmo do senhor acabar de falar, já pronunciou que permaneceria ali. O narrador continuou explicando que o salário era pequeno, “uns seis mil-réis, mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888). Ao que Pancrácio respondeu: “Eu vaio um galo, sim senhô” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888). A resposta do rapaz mostra o desprezo que os escravos recebiam e como estavam acostumados com isso.

Talvez, o próprio senhor, ao dizer que ele tinha mais valor do que uma ‘galinha’, estivesse querendo dizer que ele tinha o valor de um ser humano, mas o próprio escravo, tão habituado à rejeição, se comparou ao mesmo animal, apenas alterando seu sexo, porque esse era tratamento que ele recebia regularmente. O patrão aproveitou a ingenuidade de Pancrácio e sugeriu que ele tinha razão, e por isso, receberia seis mil réis e prometeu que no fim de um ano, se ele cumprisse bem com suas obrigações, poderia contar com oito. Deve ter se arrependido de ter inflacionado tanto o salário, pois completou na sequência: “oito ou sete” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888).

Nesse trecho Machado faz uma sátira sobre a dificuldade da inserção do negro na sociedade após a escravidão e mostra que a Abolição, de certa forma, foi ilusória, um ato hipócrita. O valor que os escravos passaram a receber era tão miserável, que não lhes dava qualquer condição de sobrevivência fora da casa dos senhores, onde eles continuavam a viver ainda no regime da escravidão – já que prestavam quase de graça os mesmo serviços. Para se ter uma ideia, Gledson (1990, p. 63, nota 4) relata que uma camisa comum custava três mil- réis, enquanto o aluguel de uma casa capaz de comportar uma família, com dois quartos, cozinha e quintal, era de 35 mil réis, o que mostra que o pagamento de seis mil réis sugerido pelo patrão de Pancrácio era apenas simbólico.

No próximo parágrafo, o escritor comprova que a escravidão persistia mesmo após a libertação dos escravos a partir do comportamento do narrador. O benfeitor contou que Pancrácio acatou todas as condições propostas por ele.

Claro, como poderia recusá-las se não tinha teto para morar e nem emprego para ao menos se alimentar? Conhecendo as dificuldades que teria na rua, o ex-escravo continuou se submetendo aos caprichos do seu antigo senhor e agora patrão: “Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco, que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade” (Assis, Gazeta de Notícias, 18/05/1888).

Mas para nossa surpresa, as ciladas dessa crônica ainda reservam uma armadilha mais perigosa para a ofensiva moral contra a sociedade oitocentista.

O nome ‘Pancrácio’ não foi escolhido por Machado de forma aleatória, pois o seu significado remete às condições daquele escravo, recém-liberto – que na verdade continuava sendo escravo. De acordo com Assis Duarte, o nome está vinculado ao campo semântico “ao substantivo grego pankrátion, que designava uma espécie de luta livre, considerada a modalidade mais violenta do atletismo grego, em que se permitia o uso de mãos e pés a fim de vencer o adversário (2007, p. 52, nota 28). O pesquisador também salienta que a fonética da palavra, em português, está em conformidade com o vocábulo ‘pancada’. E por último, e mais importante, o estudioso da literatura afro- brasileira revela que ‘Pancrácio’ era o nome de um dos primeiros mártires do catolicismo.

São Pancrácio é um dos santos mais queridos da Europa e apresenta seguidores também no Brasil. Diz a tradição que desde adolescente, ele era um senador muito respeitado em Roma e fazia parte da corte do Imperador Diocleciano. No ano de 304 a.C. a ordem era perseguir os cristãos, mas o senador ajudou a esconder os crentes e inclusive, ocultou sua própria fé. Certo dia, o membro do império recebeu uma carta de sua mãe e irmã que o incentivaram a assumir sua condição de cristão. A corte respondeu ao ato com a prisão e tortura a Pancrácio para que ele renegasse sua fé. Como o senador não cedeu aos martírios acabou decapitado.

O culto a São Pancrácio começou antes de sua morte, ainda quando ele se encontrava preso. A tumba onde foi enterrado se converteu em local de peregrinação e por esse motivo, o local se tornou sede de um santuário. O dia do santo é comemorado no dia 12 de maio – um dia antes da data em que aconteceu a abolição. São Pancrácio é considerado o Santo dos Trabalhadores e sua oração poderia muito bem se tornar a prece dos ex-escravos quando eles se tornaram livres e se viram sem emprego e sem condições de vida: “Glorioso São Pancrácio, alcançai-me Deus o trabalho honrado e suficiente para que minhas necessidades nessa vida temporal. Peço ainda saúde e força para cumprir o meu trabalho e através de ti confio que alcançarei a glória eterna, Amém” (fonte: www.cademeusanto.com.br/sao_pancracio.htm).

Todas essas revelações comprovam que a presença de pormenores no texto machadiano exige que o interlocutor use óculos tridimensionais para enxergar o outro plano dos fatos, que soam sem importância, e compreendê-los em sua essência. No entanto, em outras ocasiões, Machado alimentava suas crônicas com informações reais e privilegiava a linguagem direta, sem recorrer aos recursos dos jogos de palavras para revelar sua opinião. Na Semana Ilustrada, o jornalista comentava os episódios que haviam acontecido durante aquela semana e utilizava vários pseudônimos 3 , como “Dr. Semana, Lara, Sileno, Gil, etc., quando não assinava apenas M. ou M. de A.” (Magalhães, 1957, p. 160) em textos que “eram em favor da abolição” (Magalhães, 1957, p. 160). Nessas crônicas, o escritor se comportou “como vivaz jornalista”, nas palavras de Magalhães (1957, p. 160), e já abordava questões inerentes à escravidão antes mesmo do movimento abolicionista ganhar força.

Em uma nota enxuta, mais próxima ao formato jornalístico que ao discurso literário, Machado exalta o jornalista Dr. Peçanha Póvoa, “pelos seus brilhantes e enérgicos artigos publicados ultimamente nos Jornal do Commercio” (apud Duarte, 2005, p. 30). O colega de ofício havia prestado atenção em uma medida do Sr. Miguel Tavares “contra as mulheres que forçam as escravas à prostituição” (Apud Duarte, 2005, p. 30) e escrito textos sobre esses episódios que deleitaram o público. Machado fez questão de reconhecer a importância do trabalho de Peçanha Póvoa que, rapidamente, teceu reflexões sobre a prostituição no período colonial:

O Sr. Dr. Peçanha Póvoa é um caráter de boa têmpera; viu a fraqueza, a miséria ofendidas pela especulação, e saiu a campo, como o denodo que todos presenciamos, e esses artigos vinham adornados com flores literárias, estou certo de que ele não as procurou; elas lhe caíram naturalmente. O seu principal objetivo era a punição pública dos traficantes. Um bravo ao nosso denodado colega (Apud Assis, 2005, p. 30).

Eduardo de Assis Duarte explica que é sabido que durante a colonização do Brasil e “em grande medida, também ao longo do século XIX, a prostituição era exercida marjorotariamente por mulheres escravizadas, africanas, ou brasileiras, exploradas por senhores inescrupulosos” (2005, p. 30, nota 7).

É dessas relações sexuais entre senhores e escravas que decorre a miscigenação racial no Brasil. Essa questão é discutida por Darcy Ribeiro (1970) que explica que a maior parte das bandeiras paulistas do século XVII era composta por “brasilíndios”, filhos de colonos com indígenas, e por mulatos, que desde a nascença, raramente aceitos por seus pais brancos, tornavam-se escravos. De acordo com Freire, “a história social da casa-grande é a história íntima de quase todo o brasileiro: da sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo” (2006, p. 44).

Por ser dono dos escravos, o senhor de engenho sentia-se total responsável por eles e no direito de fazer o que quisesse. Isso incluía a utilização das negras como mero elemento sexual e para exclusiva satisfação do prazer pessoal. Caio Prado afirma que “a mulher escrava (...) não ultrapassará o nível primário e puramente animal do contato sexual, não se aproximando senão muito remotamente da esfera propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve de todo um complexo de emoções e sentimentos” (1971, p.

343).

Nesse sentido, além da violação física, a prostituição reproduz elementos de violência simbólica contra a mulher. Remonta desde essa época a imagem de sensualidade e erotismo em torno das negras e mulatas. E essa imagem de sexualidade exagerada colada ao corpo negro é explorada até hoje pelos meios de comunicação.

Nossa sociedade, aliás, é herdeira dos preconceitos contra a raça negra, fundados durante o regime escravocrata. A segregação não acabou com o fim da escravidão, como registram as crônicas de Lima Barreto escritas no século XX, quase trinta anos depois da assinatura da Lei Áurea. O pior, é que algumas temáticas abordadas por ele no século passado soam atuais, como é o caso da crônica “Macaquitos” (Careta, 23/10/1920), em que ele relata um episódio em que os brasileiros foram chamdados de “macacos” pela imprensa de Buenos Aires quando foram disputar um campeonato internacional de futebol no Chile.

Em 2005, quase um século mais tarde, tivemos o caso do jogador Grafite, também chamado de macaco por um jogador argentino, em jogo disputado pela Taça Libertadores da América. O atacante Grafite, que defendia o São Paulo à época, acusou o zagueiro Desábato, que atuava pelo Quilmes, de praticar racismo. O zagueiro argentino foi preso ainda no Morumbi, onde a partida estava sendo realizada, e ficou detido por dois dias em São Paulo.

Algum tempo depois Grafite retirou a acusação.

Nesse texto, Lima Barreto utiliza a reversão da linguagem e mostra outro sentido para o vocábulo “macaco”, que possui um tom pejorativo, relacionado a uma raça julgada como inferior, por estar relacionado a uma espécie menos evoluída:

Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos deve causar vergonha (apud Resende & Valença, 2004, p. 224).

De forma satírica, o escritor fala que cidadãos de outros países também são designados por animais, e que isso é motivo de orgulho, como deveria ser no Brasil. Os franceses, por exemplo, não se zangam por serem tratados de galo, uma ave que está bem longe da escala zoológica do macaco, um mamífero da ordem dos primatas. Deste modo, Lima Barreto segue na comparação do macaco com os outros animais a fim de neutralizar a ofensa.

Os russos se emblemam com os ursos brancos, que não são tão inteligentes quanto o macaco. A Prússia e a Áustria ostentam a águia nas suas bandeiras, sem se preocupar com a acepção pejorativa que tem essa ave carnívora. O unicórnio e o leopardo, dois animais não muito dignos, estão na insígnia da Inglaterra, enquanto a Bélgica guarda o leão em suas armas, um animal sem prétismo e carniceiro. O jornalista admite que o macaco também não tem muita utilidade, mas salienta que o animal “é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem”. Como podemos perceber, para rebater a injúria dos argentinos, Lima Barreto faz questão de enfatizar que o macaco se alimenta de frutas e que é capaz de conviver pacificamente com o homem, diferente de outros animais que ele citou como exemplos, de forma intencional, para mostrar que ser comparado a um macaco não era tão ruim assim.

Em outra crônica, escrita em 1921, Lima Barreto novamente recorre ao esporte mais popular em nosso país para criticar a sociedade no tocante à discriminação do negro. O título “Bendito Football” já é uma forma de ironizar o comportamento da sociedade brasileira daquela época, que venerava os jogadores, como se eles fossem cidadãos mais valorosos que os trabalhadores, realmente responsáveis pelo desenvolvimento da nação. Na primeira frase do texto, o literato já emprega um modo de expressão da língua em que há um contraste proposital entre o que se diz e o que se pensa: “Não há dúvida alguma que o football é uma insituição benemérita, cujo rol de serviço ao país vem sendo imenso e parece não querer ter fim” (Barreto,1961, p. 93)

Em seguida, Lima Barreto continua seu discurso irônico e diz que são tantos os serviços prestados por aquele esporte que os jornalistas poderiam encher várias colunas de revista falando sobre ele, caso os profissionais da imprensa tivessem bastante paciência. Mas isso não era preciso, bastava apenas enumerar alguns pontos principais. “Um dêles, se não o primordial, é ter trazido, para notoriedade das páginas jornalísticas e das festanças e regabofes dos Césares destas bandas, nomes de obscuros cavalheiros, doutôres ou não, (...) que, sem êle, não teriam destaque qualquer” (Barreto, 1961, p. 93).

Para obter a reação do leitor, o escritor apresenta outra serventia do futebol, que permitiu que outros trabalhores “de ofícios em que se exige grande fôrça muscular nas pernas e nos pés” (Barreto, 1961, p. 93), como o de caixeiros de bancos, funcionários públicos e de outras repartições comerciais, “realizassem as suas respectivas profissões com perfeição e segurança, de quem dispõe de poderosos “extensores”, “pediosos”, “perôneos”, “tíbias”, etc., etc” (Barreto, 1961, p. 93).

Além desses grandes serviços citados, Lima acrescentou que é preciso ressaltar um terceiro benefício conferido pelo esporte: ascender a rivalidade entre os bairros de uma cidade e até entre os Estados, graças ao “jogo de pontapés na bola” (Barreto, 1961, p. 93). O jornalista comprova que o futebol é um fator de dissensão da sociedade quando cita uma notícia publicada no Correio da Manhã, que informava que o “sacro colégio do Football” (Barreto, 1961, p. 94), havia se reunido secretamente para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires, em uma competição internacional, “campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro – homens de cor, enfim” (Barreto, 1961, p. 94).

O tom de escárnio é o fio condutor dessa narrativa, que critica o comportamento de todas as esferas sociais. Lima Barreto não poupa nem a Igreja e explica que a instiuição religiosa havia tido uma atitude semelhante quando não permitia que os negros se candidatassem ao sacerdócio, um processo batizado pelos religiosos de “puritate sanguinis. A seguir o jornalista comenta que as atividades sacerdotais são extraordinariamente diversas daquela praticada pelos jogadores, cuja função é “atirar bolas com os pés, de cá para lá” (Barreto, 1961, p. 94). A Igreja justifica que o sacerdote é o intermediário entre Deus e o homem e trata a raça negra com desonra quando proíbe que os negros exerçam esse papel. E qual seria a justificativa para proibir os negros de jogar futebol em competições internacionais? Lima Barreto coloca no texto que ele também não sabia o motivo, mas deixa claro que esse esporte era uma espécie de “vitrine” e que os governantes se envergohavam em mostrar os negros como parte integrante do país.

O espírito de zombaria do escritor se estende aos políticos, e em especial ao presidente da República, que naquela época era o senhor Epitácio Pessoa (o autor não escreve o nome do presidente e o trata na crônica como “Sua Excelência), que, segundo Lima Barreto, estava acostumado a resolver questões mais difícieis que essa, de decidir se os homens negros poderiam participar de um campeonato internacional de futebol, como determinar quais “sejam a côr das calças com que os convidados devem comparecer às recepções do palácio; as regras de precedência, que convém sejam observadas nos cumprimentos a pessoas reais e principesas” (Barreto, 1961, p. 95).

Como demonstram os exemplos apontados pelo jornalista, a conduta do presidente era um espelho da sociedade brasileira, completamente indiferente aos problemas sociais e políticos, que eram deixados de lado e preteridos por questões que não implicavam em nada com o progresso do país.

Realmente habituado a agir com firmeza em situações delicadas, que exigem muita competência, conhecimento e bom senso, o presidente “não teve dúvida em solucionar a grave questão” (Barreto, 1961, p. 95) e entendeu que “gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante estêrco humano” (Barreto, 1961, p. 95), que era como o afrodescendentes eram tratados: uma raça inferior, que envergonhava uma nação.

Além de um protesto contra as classes dominantes, a intenção do jornalista era provocar uma reflexão no público e mostrar que não existia argumentos para concordar com o comportamento do presidente e das demais esferas sociais em relação à exclusão do negro. Como os brancos, o negro deveria ter o direito de transitar livremente pelos campos de futebol, como jogador ou torcedor, e pelo altar da Igreja, como sacerdote ou fiel.

O texto de Lima Barreto ainda toca em outra questão importante. Aquela classe, renegada pelas autoridades, representava quase metade da população brasileira, o que, na opinião dele, deveria causar aos políticos desgosto e revolta. E a próxima estratégia usada pelo jornalista para derrotar os detratores dos negros, foi lembrá-los de que essa raça tinha uma serventia maior, e que sua importância não se restringia a prestação de serviços menores (pois em algumas profissões, como jogadores de futebol, por exemplo, o negro não tinha vez). Por serem grande parcela da população, o Brasil precisava do dinheiro do negro para fazer girar o regime capitalista. O branco entendia isso e sabia que o negro era necessário para sustentar o futebol nas arquibancadas, mas não para participar dele como protagonista. Quando fala sobre essa questão, Lima Barreto tira a máscara da ironia e ataca frontalmente os donos “da bola”: O que me admira, é que os impostos, de cujo produto se tiram as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas e seus tesoureiros infiéis, não tragam também a tisna, o estigma de origem pois uma grande parte dêles é paga pela gente de côr. Os futeboleiros não deviam aceitar dinheiro que tivesse tão malsinada origem. Aceitam-no, entretanto, cheios de satisfação. Não foi à toa que Vespesiano disse a seu filho Tito que o dinheiro não em cheiro (Barreto, 1961, p. 96).

O golpe de misericórdia aferido por Lima Barreto veio acompanhado de um remédio, elaborado pelo jornalista para resolver o problema dos governantes em relação àquela “raça inferior”. Era tudo muito simples. Bastava destinar ao futebol aquelas verbas que socorriam as populações pobres, flageladas. Desta forma, o futebol ficaria “mais rico e mais branco”, pois a gente de cor acabaria desaparecendo, “pela ação da malária, da opilação e outras moléstias” (Barreto, 1961, p. 96).

A grande diferença entre as crônicas de Lima Barreto e de Machado de Assis, é que o discurso do primeiro é carregado de rancor, algo que não transparece na literatura machadiana, apesar de sua relação estreita com a realidade brasileira. Se Machado desejava não ser entendido muitas vezes pelo branco, criticando a sociedade nas entrelinhas, Lima queria radicalizar por meio da linguagem.

Além de personalidades e histórias de vida diferentes, os dois escritores não fazem parte da mesma geração literária. Lima Barreto foi um precursor do Modernismo e seus textos são voltados para os problemas existenciais do indivíduo em face da sociedade. Embuído dos ideais modernistas, o escritor provoca um choque contra a tradição, ele é a “voz do inconformismo que aponta para uma ruptura com o passado” (Prado, 1989, p. 11), e se mostra favorável à renovação que viria a partir de 1922, ano de sua morte. Desde de seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), o autor revela “os primeiros sinais de revolta ante a submissão e à miseria” (Prado, 1989, p. 5). Sua vida foi marcada pelo sofrimento, que transparece em sua literatura. Além do alcoolismo e do desgosto, os delírios do pai louco se encarregaram de esgotar as forças de Lima Barreto, que faleceu precocemente aos 41 anos.

Ao contrário, Machado era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido, confortavelmente amparado por um cargo público e por um casamento feliz, que durou 35 anos. O escritor soube driblar as adversidades de sua cor e de sua saúde frágil (já que o escritor era gago e epilético) e levou uma vida tranquila se comparada à trajetória de Lima Barreto, que encontrou na literatura uma forma de extravasar suas mágoas. De um lado, Machado prioriza a arte literária e afirma: “não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas que a empobreçam” (apud Coutinho, 1997, p. 804). De outro lado, Lima Barreto delegava ao texto a função de um “autêntico carro de assalto que investe contra o mundo, ao invés de evitá-lo para fugir ao choque” (Prado, 1980, p. 100). Cada a um a sua maneira, os dois autores souberem levar para as páginas do jornal seus anseios, a fim de tocar os leitores, realmente capazes de operar uma mudança numa sociedade que os dois literatos julgavam como alienada e preconceituosa.

Referências:

ARRIGUCCI JR, Davi. Enigma e Comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Ática, 1994.

BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961.

BRAITH, Beth. A ironia em perspectiva polifônica. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996.

CANDIDO, Antonio. “Os olhos, a barca e o espelho”. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

COUTINHO, Afrânio & COUTINHO, Eduardo F. (Org). A Literatura no Brasil. 3 ed. ver a aum. Rio de Janeiro: José Olympio. Niterói: Ed. da UFF, 1986.

COUTINHO, Afrânio (org). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1997. v. 3., p. 801-809.

DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis Afro-descendente. 2 ed. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Pallas/ Crisálida, 2007.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo, Círculo do Livro S.A, 1933

GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Tradução de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

_____. Edição, Introdução e notas. In: Assis, Machado. Bons Dias! Crônicas 1888-1889. São Paulo: Hucitec,; Campinas:UNICAMP, 1990.

HOUAISS, Antônio. Prefácio de Vida Urbana, São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.

HUTCHEON, Linda. Teoria e Política da Ironia. Tradução de Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.

MAGALHÃES JR, Raimundo. Machado de Assis desconhecido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957.

MARTINS, Wilson. “Lima Barreto ou O Falso Boêmio”, in Província de São Paulo, 1955, p.118-120.

MELQUIOR, José Guilherme. “O romance carnavalesco de Machado”. Prefácio de Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Ática, 1994.

NOLASCO-FREIRE, Zélia. Lima Barreto: Imagem e Linguagem. São Paulo: Annablume,2005.

PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980.

_____. Lima Barreto: o crítico e a crise. São Paulo: Duas Cidades, 1989.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1971.

RESENDE, Beatriz & VALENÇA, Rachel. (Orgs). Lima Barreto: Toda Crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004.

RODRIGUES, Ironides. Introdução à Literatura Afro-brasileira. In Troth, número 1, Brasília:Gabinete do senador Abdias Nascimento, jan./abr. 1997, p. 255-266.

1 Machado cita na crônica “O jornal e o livro”, publicada em janeiro de 1859, que a imprensa era “a verdadeira república do pensamento”. A aura romântica machadiana conferia ao jornalista uma espécie de complexo que ‘Clark Kent’, tendo em vista que a missão desse profissional era reformar o mundo por meio das verdades publicadas nas páginas do jornal.

2 Como apresentamos ainda no começo desse trabalho, a crítica ao leitor burguês é uma constante na literatura machadiana. No papel de folhetinista, o escritor também menospreza a inteligência do público do jornal. Em um texto publicado em O Cruzeiro, em 14 de julho de 1878, ele relata que nas crônicas, “ninguém desce a buscar idéias graves nem observações de peso”, como se os leitores sentissem prazer apenas de ler textos para entreter, livres de debates sobre as mazelas sociais. Em outro momento, ele é mais enfático e chega a agredir o leitor “Alguns não me compreenderam (porque há muito burro neste mundo)”. (Gazeta de Notícias, de 11 de maio de 1888).

3 Raimundo Magalhães Junior (1956) e Eduardo de Assis Duarte (2005), explicam que o escritor muitas vezes escondia a autoria de suas crônicas com pseudônimos. A maioria dos jornalistas apelava para essa estratégia para se proteger da opressão do regime imperial. Funcionário público, o pseudônimo garantia à Machado o direito de criticar o poder, sem colocar em risco seu sustento.

 Texto para download