Caminhos yninterruptos

 

Fernando Moura*

 

 

Consciente de como a memória e as lembranças originais são elementos definidores de nossas vidas, e de que a própria história se faz de trajetórias bifurcadas e contingentes, que levam a jornadas emocionalmente saturadas e vertiginosas, a poeta, escritora e jornalista paulistana Esmeralda Ribeiro abre caminhos e nos guia com seus Poemas Ynacabados (Feminas, 2023), volume estruturado e ramificado em 50 construções de pura intensidade.

São textos cinzelados por meditações ora formais, ora em rezas livres e elevadas, ora em mantras poéticos, que amplificam temas essenciais: as tradições religiosas afro-brasileiras, os movimentos negros de resistência política e difusão cultural, os discursos sobre a emergência climática, a autonomia e autoestima feminina, o feminicídio, o autoconhecimento, o fazer literário e a memória.

 

A leitura se inicia pela capa, a partir do título, que nos exige atenção, propósito e certo nomadismo imaginativo. Afastamo-nos das obviedades e nos encontramos (ou nos perdemos) nas múltiplas possibilidades do intrigante "Y", ramificado, que substitui o "I", feito de linha reta e fina, direto, simples e agudo. A presença do "Y" evoca as encruzilhadas, lugar essencial para as religiões de matriz africana, especialmente no culto a Exu, importante orixá com uma mitologia enredada e profunda.

As encruzilhadas são lugares de encontros, passagens, intersecções e separações, impregnadas de possibilidades. Ali, o mal iminente pode surgir dependendo da direção escolhida, trazendo infortúnio às vezes fulminante. É a geografia do risco e do mal possível, mas também do êxito e da recompensa, colhidos quando há compromisso com Exu, guardião das estradas, que aguarda a cada segunda-feira suas oferendas. Exu preza pelo movimento. Reverenciá-lo é mobilizar-se para entender os momentos decisivos que exigem atos de escolha, e de como a vida é um centro gravitacional inexorável de decisões a serem tomadas ininterruptamente. Exu está por toda parte.

Além do título, impresso em letras brancas sobre um fundo alaranjado intenso, quase espesso, semelhante ao ocaso, mas aqui, estático e perpétuo, há outros elementos cumulativos, saturando a capa de sentido. São as ilustrações assinadas pela artista paulistana May Solimar, que trazem em primeiro plano o rosto de uma mulher negra, deitado na horizontal, cujo topo foi coroado com uma pequena begônia cerosa e vermelha.


A fisionomia sugere alguém se concentrando em seus próprios conteúdos inconscientes. São feições que revelam a determinação da voz poética em conhecer seus próprios limites para deles retirar a paz necessária e seguir em direção às incontornáveis encruzilhadas. Endosso essa afirmação a partir de “Firmeza”, sétimo poema da terceira e última seção do volume intitulada de “Arte-Final”,

 

 

 

quem quer calçar minhas sandálias?

Não são douradas

não são sapatinhos de Cinderela

são sandálias gastas pelas andanças

 

sandálias que soterram segredos

jamais revelados

 

sandálias calçadas por pés

de uma mulher negra

quiçá um dia será uma princesa

em Hollywood

 

sandálias que se arrastam

pelo chão de terra e barro

quando em solo fértil

tem fartura a mesa

 

sandálias que repousam

os pés de uma mulher negra

entre tantas tarefas

ajudam a escrever poemas

canções e até contar estórias

sandálias que protegem nossos pés

 

sandálias empoeiradas

velhas ou novas

podem tropeçar, até cair,

mas continuaremos de pé

que nossos inimigos

vejam-nos de

coluna ereta e de pé.

(p. 65)

Mas, como fica claro nos versos de Ribeiro, a face é também de quem reconhece a instabilidade como uma verdade e não se deixa persuadir a negá-la, evitando assim as armadilhas de falsas representações da realidade ou do desconhecimento de si mesma. O caráter pragmático dessa disciplina espiritual se expressa no primeiro poema inominado que abre a segunda seção do volume, intitulada “Estesias”, palavra derivada do grego aisthesis, que significa a reação humana diante de sensações (PRIBERAM, 2024):

 

gruda e solta

aglutina

gruda

e, às vezes, nos machuca

substantivo masculino

será que por isso gruda

e, ao mesmo tempo, machuca

você não é importante

nem essencial na vida das pessoas

dá para viver longe de você

e se quiser, nem chegar perto

você é só um substantivo masculino

gruda

e, às vezes, nos machuca

muitas vezes as folhas

são suas vítimas

enfim, podemos optar

por ter você em nossas vidas

quando gruda

ao mesmo tempo, machuca

enfim você não significa nada

em nossas vidas

só pensamentos de uma poeta

(p. 23)

Ainda sobre a capa, notamos outra begônia cerosa, ampliada e posicionada logo atrás do rosto e à frente de um círculo amarelo, maior que as outras duas figuras. A composição do alinhamento entre esses três elementos atua de maneira sutil sobre nossa percepção. Por meio destes códigos simbólicos compreendemos que a dimensão relacionada à conexão, a coexistência, a interação e a harmonia são primordiais entre as formas de vida. Em outras palavras, a síntese se volta para algo fundamental: a sobrevivência na Terra está intrinsecamente ligada ao reconhecimento de que todos os seres vivos formam uma rede única, contínua, interconectada e interdependente. Assim afirma “Natureza viva”, segundo poema da primeira seção do livro, “Garatujas”, termo usado para se referir aos primeiros rabiscos pueris, tentativas frustradas de compor imagens, saindo de forma imprecisa, ou mesmo uma escrita desordenada:

 

natureza está morta

derrubam árvores sem pedir agô

quando viva fora aniquilada

quem cuida vê em silêncio

a floresta tem guardiões

depois água, chuva, lama se unem

arrastam tudo, todos e todas

quem conseguir se salvar, se salvou

outras naturezas viram mortas

mexem nas florestas, em jardins, em matas

sem pedir licença, sem pedir agô

nas terras do senhor não

permitem ocupações, mas

na floresta esses senhores

devastam as matas ditas de ninguém

entram sem pedir licença, sem pedir agô

não deixa a natureza em fúria

porque de bela, uma floresta furiosa

se transforma na nossa inimiga

mostrando suas normas rígidas

quando modificadas

tudo é fatal, vem o temporal

e decreto o juízo final.

(p. 17)

A sabedoria evidente nas linhas de “Natureza viva” contrasta com o título da seção em que o poema está inserido, “Garatujas”, lido como rabiscos intuitivos. Apesar do título da seção sugerir algo imaturo, o poema revela uma consciência poética guiada por um conhecimento profundamente racional, sociológico e político. Nesse sentido, podemos inferir que há uma voz ancestral em harmonia com a voz da poeta e, concomitante com o meio ambiente, que se abstém de qualquer atividade contrária à natureza. Esmeralda Ribeiro, assim como Ossain, o orixá senhor das folhas, recebeu o segredo da natureza. Não apenas de Olodumaré, mas também das interações dinâmicas e, por vezes, catastróficas entre a humanidade e o meio natural.

Essa proximidade declarada entre o microcosmo individual e o macrocosmo do universo pode ser interpretada como uma reflexão sobre algo que está simultaneamente dentro e fora de nós, além disso, demonstra os riscos decorrentes de ignorarmos esses vínculos. É uma ponderação biofílica, isto é, sobre nossa afinidade natural com as diversas formas de vida; sobre a pulsação humana sincronizada com os movimentos do planeta (arrisco dizer que a contracapa é o reflexo pictórico dessa hipótese); sobre a conexão intrínseca entre nós e a vastidão impessoal do universo ou entre nós e a microbiodiversidade, congênita, incontornável, incorporada naturalmente.

Em “Begônia”, a autora personifica e explora essa visão de entrelaçamento íntimo, mas agora estre ela própria e as nuances, essências, sutilezas e peculiaridades da delicada e robusta flor que adorna a capa do livro. Ao detalhar suas características, ela irradia uma perspectiva de unidade e interconexão centrada nas qualidades que ambas mutuamente compartilham, ou que deveriam compartilhar. Com uma visão humanista e comunitária, a poeta nos diz:

São do mundo

como deveríamos ser todos nós

gostamos de viver em espaços limitados

solitária

contraditória, porque se for preciso

também sabe viver em grupo

gosta de sombra

sem holofotes

sem tempestade

não é sombra de ninguém, mas

gosta de penumbra sobre si

quer viver quieta e sem luz

nesse mundo quem a traduz?

Begônia!

(p. 18)

 

Ressoa de Poemas ynacabados a presença contínua de uma voz feminina que se manifesta de diferentes maneiras: às vezes como um choro que ecoa outros lamentos femininos, abundantes e intensos, que se avolumam e se multiplicam em uma enchente avassaladora de lágrimas incessantes; outras vezes como a voz que denuncia vários acontecimentos terríveis, estabelecidos sobre um pano de fundo caótico, porém previsível. É o espetáculo grotesco do racismo, encenado e celebrado violentamente pela sardônica e paradoxal sociedade brasileira, que se traduz como a raiz de todo esse mal, espalhada e reconhecida pela autora como a gênese dos sofrimentos confessados em seus poemas. É sua luta permanente, que por vezes a coloca diante de sua própria impotência, mas sem deixar-se imobilizar em um torpor catatônico. Ao contrário, a voz poética faz-se afirmar um forte senso de proteção aos seus.

As linhas poéticas de Esmeralda Ribeiro também sugerem conflitos internos, derivados de dicotomias como liberdade e segurança, reconhecimento e validação. Esses conflitos se desenrolam em um mundo incerto, irregular e racista, que coisifica e desumaniza pessoas negras, reduzindo-as a números estatísticos, como declarado pelo décimo sétimo poema de “Estesias”. Um mundo em que a branquitude desqualifica, esburaca e esvazia as chances de artistas negros, que por vezes buscam nas criações estéticas formas de contornarem a macabra violência propagada sobre suas vidas. Para enfrentar essa estrutura implacável que colapsa e anula gerações, Esmeralda Ribeiro recorre a expressões e recursos comunicativos que valorizam o caráter oral do tecido poético, utilizando ritmos que destacam os apelos do texto e sequências metafóricas inspiradas em figuras do universo natural, em entidades cultuadas pelas tradições religiosas afro-brasileiras e pelas personagens que marcaram a história da intelectualidade militante e artística negra nacional e internacional, assim como seus familiares e amigos.

Seus poemas vêm em várias formas, mas em todos, mesmo naqueles em que se projeta uma força retaliativa, traço decisivo e necessário diante de eventos como a insuspeitada e brutal morte de Marielle Franco, lamentada e evocada em “Juro”, não se constata a mesma substância violenta e ciclópica que coloca em movimento o universo patriarcal e estruturalmente racista. A voz feminina que denuncia, reivindica e expõe suas urgências em Poemas ynacabados, é a expressão de quem está em luta constante pelo reconhecimento imemorial de seus ancestrais, de suas referências culturais, intelectuais e políticas. Embora confinada às linhas imaginativas de seus poemas, essa voz encontra ressonância na realidade. Trata-se de alguém que, através da literatura, nos faz lembrar, muitas vezes com temas inimagináveis para a produção literária contemporânea majoritária, que a produção artística oferece caminhos possíveis para exercitar o pensamento crítico, desafiar as narrativas dominantes, politizar debates sobre gênero e raça, e reconstruir a matéria subjetiva por quem é reiteradamente violentado.

 

Belo Horizonte, maio de 2024.

 

Referências

 

PRIBERAM, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: < https://dicionario.priberam.org/estesia>. Acesso em: 15/05/2024.

RIBEIRO, Esmeralda. Poemas ynacabados. São Paulo: Feminas, 2023. 106 p.

VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos orixás. 4. ed. Salvador: Corrupio, 1997. 96 p

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* Fernando Moura é Licenciando em Português pela Faculdade de Letras na Universidade Federal de Minas Gerais.

 

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