Poetas em primeira pessoa –
dando visibilidade à escrita de autoria negro-feminina
Patrícia Anunciada de Oliveira1
desistir é coragem difícil
somos programados
para tentar
deslizando aos barrancos
a pele das pernas
esfolada
os pulsos marcados
pelos rosários
é preferível morrer
sorrateiramente
em gorduras
açúcares
refluxos
pedras nos órgãos
no peito
mas desistir
essa é uma coragem
que todos
não temos
Jarid Arraes
“Fábula”
2021
Esta antologia é aberta pelo emblemático poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo. Nesse poema aparecem vozes de mulheres de diferentes gerações (bisavó, avó, mãe e filha), cada qual ecoando algo diferente. A voz da bisavó ecoa “lamentos de uma infância perdida”, a da avó, “obediência aos brancos-donos de tudo”, a da mãe, “revolta”, a voz do eu-lírico ecoa “versos perplexos com rimas de sangue e fome”, e a da filha recolhe todas essas vozes, ecoando “vida-liberdade”. Esse processo reflete a tomada de voz, a apropriação da escrita como uma forma de resistência a sistemas de opressão como o patriarcado, o racismo e toda espécie de preconceito e estereótipos.
Jarid explica que em 2019 abriu uma chamada pública para escritoras negras enviarem seus contos e poemas para comporem uma antologia, independentemente de essas autoras já terem sido publicadas ou não. Como a grande maioria dos textos enviados foi poema, ela optou por publicar exclusivamente poemas. Seu objetivo com o livro era refletir a diversidade estética e temática do universo de escritoras negras e mostrar a existência dessas autoras, que ainda lutam para ter visibilidade em um mercado editorial que ainda exclui muitas delas.
Somos agraciados com esta antologia, que apresenta diversas escritoras do Brasil afora. Alguns dos poemas são acompanhados de ilustrações e todos são iniciados pelo nome da autora, sua cidade e estado. São autoras de todas as regiões do país e de diversos estilos literários.
Dentre os variados temas aparece com grande recorrência o corpo da mulher negra como um corpo digno de respeito, de beleza, de admiração, diferentemente da forma estereotipada como esse corpo geralmente é apresentado na literatura e na mídia. A negritude é exaltada ao longo da grande maioria dos poemas.
Dentre os temas aparece a solidão da mulher negra, o amor que muitas vezes não chega a essa mulher, reflexo do racismo fundante da sociedade brasileira. A ancestralidade encontra um grande eco e as vozes dos ancestrais são reverenciadas. Aparecem também a desigualdade de oportunidades entre brancos e negros na sociedade brasileira, a denúncia do genocídio de jovens negros, do encarceramento em massa, a falsa meritocracia que embasa discursos racistas.
Temas como direito ao corpo, aborto, orgasmo, amor heterossexual e homoafetivo, maternidade, gozo como ato revolucionário, entrega, memória, medo, resistência ao silenciamento imposto e à submissão, denúncia da violência doméstica também aparecem com grande recorrência ao longo dos poemas.
Há também uma reflexão sobre o processo de escrita. No poema “mãos que escreveram primeiro”, de Carina Castro, lemos:
toda vez que me faço fio no papel
a terra reverbera
subterraneidades
inscritas na pedra
com os dedos trançados
o ontem e o hoje abrem caminhos na ponta afiada (p. 26).
Esse trecho nos mostra a potência da escrita dessas mulheres negras que se expressam por meio da escrita e falam de um universo plural que lhes é próprio. Essa escrita reverbera, traz o passado, o presente, questiona, analisa a realidade social em que essas mulheres estão inseridas. No poema “Todas as cores de preta”, de Jéssica Regina, podemos observar como o lugar da escrita se torna o lugar da autoafirmação:
Gritaram! Gritei!
Briguei! Calaram.
Não me calaram.
Não calarão.
Não apagarão
O negro em preto e branco
Sou preta
Sou negra de todas as cores.
De todos os tons
Sou todas as cores.
Sou todas as pretas. (p. 59).
Ao longo desta antologia nos deparamos com a pluralidade de ser mulher negra, com sua luta para falar, para existir, para questionar um padrão que é socialmente imposto e que tenta cercear a mulher negra da fala e do ato.
Jarid Arraes dá voz a essas escritoras negras que bradam contra o racismo, o patriarcado, contra o apagamento de suas origens étnico-raciais. Os textos são marcados por uma voz poética que fala contra um discurso hegemônico que destitui o corpo negro de beleza, de intelectualidade. São recolhidas diversas vozes que revelam como a escrita pulsa na mão dessas escritoras de diferentes gerações e regiões do país, que não aceitam serem excluídas da cena literária, garantindo seu direito de fala, de grito, de denúncia.
São Paulo, dezembro de 2021
Referência
ARRAES, Jarid (Org.). Poetas negras brasileiras: uma antologia. São Paulo: Editora de Cultura, 2021.
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1 Patrícia Anunciada de Oliveira é graduada em Letras pela PUC-SP, Mestre em Literatura pela UNIFESP e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP.