Por um conceito de literatura afro-brasileira1
Eduardo de Assis Duarte *
No alvorecer do século XXI, a literatura afro-brasileira passa por um momento rico em realizações e descobertas, que propiciam a ampliação de seu corpus, na prosa e na poesia, paralelamente ao debate em prol de sua consolidação acadêmica enquanto campo específico de produção literária – distinto, porém em permanente diálogo com a literatura brasileira tout court. Enquanto muitos ainda indagam se a literatura afro-brasileira realmente existe, a cada dia a pesquisa nos aponta para o vigor dessa escrita: ela tanto é contemporânea, quanto se estende a Domingos Caldas Barbosa, em pleno século XVIII; tanto é realizada nos grandes centros, com dezenas de poetas e ficcionistas, quanto se espraia pelas literaturas regionais. Nesse caso, revela-nos, por exemplo, um escritor do porte do maranhense José do Nascimento Moraes, autor, entre outros, do romance Vencidos e degenerados (1915), cuja ação tem início em 13 de maio de 1888 e se estende pelas décadas seguintes a fim de narrar a permanência da mentalidade derivada da escravidão. Enfim, essa literatura não só existe como se faz presente nos tempos e espaços históricos de nossa constituição enquanto povo; não só existe como é múltipla e diversa.
Desde a década de 1980, a produção de escritores que assumem seu pertencimento enquanto sujeitos vinculados a uma etnicidade afrodescendente cresce em volume e começa a ocupar espaço na cena cultural, ao mesmo tempo em que as demandas do movimento negro se ampliam e adquirem visibilidade institucional. Desde então, cresce da mesma forma, mas não na mesma intensidade, a reflexão acadêmica voltada para esses escritos, que, ao longo do século XX, foram objeto quase que exclusivo de pesquisadores estrangeiros como Bastide, Sayers, Rabassa e Brookshaw, entre outros.
Para tanto, contribuiu enormemente o trabalho seminal de poetas e prosadores de organizações como o Quilombhoje, de São Paulo, a que se somaram grupos de escritores de Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras capitais. E, a partir de intensa busca pela ampliação de seu horizonte recepcional, a literatura afro-brasileira adquire legitimidade crescente, tanto nos cursos de graduação e pós-graduação e nas listas dos vestibulares de universidades públicas e privadas, quanto no meio editorial. A série Cadernos Negros ultrapassou três décadas de publicação ininterrupta e um romance voltado para o resgate da história não-oficial dos escravizados e suas formas de resistência, como o “épico” Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves (1970), foi publicado por uma editora de grande porte e, em seguida, consagrado vencedor do Prêmio Casa de las Américas.
Não há dúvida de que, por um lado, a ampliação da chamada classe média negra, com um número crescente de profissionais com formação superior buscando lugar no mercado de trabalho e no universo do consumo; e, por outro, a instituição de mecanismos como a lei 10.639/2003 ou as ações afirmativas, vêm contribuindo para a construção de um ambiente favorável a uma presença mais significativa das artes marcadas pelo pertencimento étnico afrodescendente. Tais constatações escapam, para muitos, aos propósitos de uma crítica propriamente literária e também, admito, aos objetivos deste artigo. Menciono-as apenas como pano de fundo e para lembrar que, ampliados o público e a demanda, ampliam-se igualmente as responsabilidades dos agentes que atuam nos espaços voltados para a pesquisa e produção do conhecimento, em especial nas instituições de ensino superior.
O momento é, pois, propício à construção de operadores teóricos com eficácia suficiente para ampliar a reflexão crítica e dotá-la de instrumentos mais precisos de atuação. Nesse sentido, cabe avaliar o “estado da arte” de dois desses instrumentos, a saber, os conceitos de literatura negra e de literatura afro-brasileira.
A publicação dos Cadernos contribui em muito para a configuração discursiva de um conceito de literatura negra. A série vem mantendo, desde 1978, uma produção marcada predominantemente pelo protesto contra o racismo, tanto na prosa quanto na poesia, na linha da tradição militante vinculada ao movimento negro, como demonstra Florentina da Silva Souza (2005). E, ao lado dessa perspectiva, sobressai o tema do negro, enquanto individualidade e coletividade, inserção social e memória cultural. E, também, a busca de um público afrodescendente, a partir da formalização de uma linguagem que denuncia o estereótipo como agente discursivo da discriminação. A propósito, Ironides Rodrigues, um dos mais destacados intelectuais da geração anterior ao Quilombhoje, declara em depoimento a Luiza Lobo:
A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça dentro do significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem: religião, sociedade, racismo. Ele tem que se assumir como negro (Apud LOBO, 2007, p. 266).
Ao longo de sua existência, os Cadernos Negros pouco se distanciaram desta postura incisiva – que se transformou em sua marca registrada –, e que termina por afastá-los de uma linha menos empenhada em termos de militância, como, por exemplo, a dos poetas Edimilson de Almeida Pereira (1963) e Ronald Augusto (1961), de prosadores como Muniz Sodré (1942), Nei Lopes (1942), Joel Rufino dos Santos (1941-2015) ou, no campo da escrita infantojuvenil, Júlio Emílio Braz (1959), Rogério Andrade Barbosa (1947), o próprio Joel Rufino dos Santos, além de Heloisa Pires de Lima (1955), para citarmos alguns contemporâneos
Por outro lado, se retrocedermos nossas observações à primeira metade do século XX, não poderemos descartar a tradição do negrismo modernista2, de que são exemplos Jorge de Lima (1893-1953), Raul Bopp (1898-1984), Menotti Del Pichia (1892-1988), Cassiano Ricardo (1895-1974) ou os escritores do grupo mineiro “Leite Criôlo”, entre outros. E, nesse caso, não teremos como compará-los à escrita de Cuti (1951), Miriam Alves (1952) ou Conceição Evaristo (1946): o que existiria de semelhante, sob qualquer ângulo de abordagem, entre Ponciá Vicêncio e a "Nega Fulô"? O ponto de vista que conduz a perspectiva dos Poemas negros, de Jorge de Lima é bem outro, externo e folclórico, na linha do que Oswald de Andrade (1890-1954) cognominou de “macumba para turistas”. E, por mais que Urucungo, de Raul Bopp, se aproprie de ritmos e entonações oriundas de uma oralidade afro-brasileira, não há como negar que a literatura negra desses autores é outra.
Na linha do legado modernista, Benedita Gouveia Damasceno (1988) também confere ao conceito um sentido distinto e, até mesmo, oposto ao praticado pelo Quilombhoje: um sentido marcado pelo reducionismo temático, sem levar em conta o pertencimento étnico e a perspectiva autoral. Para Damasceno, o “menos importante” é a “cor do autor” (1988, p. 13), o que a faz incluir Jorge de Lima, Ascenso Ferreira (1895-1965) e Raul Bopp entre os poetas estudados. Em geral, esta tem sido uma tendência em nossa crítica do século XX e a supremacia do critério temático demonstra mais uma vez a força da herança modernista na cultura brasileira. Embora reconheça as divergências e dificuldades para o estabelecimento de uma “estética negra”, já que “não existe uma ‘estética branca’” (1988, p. 13), ao final conclui Benedita Damasceno que “há sensíveis diferenças entre a poesia negra escrita por afro- brasileiros e a escrita por brancos” (1988, p. 125).
Cioso das limitações do critério temático, Domício Proença Filho busca uma solução conciliatória entre as duas vertentes e propõe um duplo sentido para o termo:
À luz dessas observações, será negra, em sentido restrito, uma literatura feita por negros ou descendentes assumidos de negros, e, como tal, reveladora de visões de mundo, de ideologias e de modos de realização que, por força de condições atávicas, sociais e históricas, se caracteriza por uma certa especificidade, ligada a um intuito claro de singularização cultural.
Lato sensu, será a arte literária feita por quem quer que seja, desde que reveladora de dimensões peculiares aos negros ou aos descendentes de negros (PROENÇA FILHO, 1988, p. 78, grifos do autor).
O crítico retoma sua reflexão em escrito posterior, acrescentando que, no primeiro caso, tem-se “o negro como sujeito, numa atitude compromissada” e, no segundo, “a condição negra como objeto, numa visão distanciada.” Deste modo, o conceito comportaria tanto a “literatura do negro” quanto a “literatura sobre o negro.” (1997, p. 159). Tal dicotomia compromete a operacionalidade do conceito, uma vez que o faz abrigar tanto o texto empenhado em resgatar a dignidade social e cultural dos afrodescendentes quanto o seu oposto – a produção descompromissada, para ficarmos nos termos de Proença, voltada muitas vezes para o exotismo e a reprodução de estereótipos atrelados à semântica do preconceito.
Os trabalhos de Zilá Bernd (1987, 1988) compartilham com o posicionamento conciliador de Proença Filho. Seu livro Introdução à literatura negra analisa tanto o discurso “do negro” quanto “sobre o negro” e aborda as poesias de Castro Alves (1847-1871) e Jorge de Lima, a fim de ressaltar suas diferenças em relação a Luiz Gama (1830-1882) e Lino Guedes (1896-1951). Com isto, emprega o critério temático ao mesmo tempo em que o relativiza. Centrado na poesia, o estudo estabelece as “leis fundamentais” da literatura negra, a saber: a “reversão dos valores”, com o estabelecimento de uma “nova ordem simbólica” oposta aos sentidos hegemônicos; a “construção da epopeia negra”; e, sobretudo, a “emergência de um eu enunciador”:
A montagem da poesia negra faz-se a partir da (re)conquista da posição de sujeito da enunciação, fato que viabiliza a re-escritura da História do ponto de vista do negro. Edificando-se como espaço privilegiado da manifestação da subjetividade, o poema negro reflete o trânsito da alienação à conscientização.
Assim, a proposta do eu lírico não se limita à reivindicação de um mero reconhecimento, mas amplifica-se, correspondendo a um ato de reapropriação de um espaço existencial que lhe seja próprio (BERND, 1988, p. 77, grifos da autora).
Bernd não se atém à cor da pele do escritor, mas à enunciação do pertencimento. Em seguida, detalha com propriedade o alargamento da voz individual rumo à identificação com a comunidade, momento em o “eu-que-se-quer-negro” se encontra com o “nós coletivo”. (Ibid., p. 77). Sem discordar da pertinência do reconhecimento dessa voz, cumpre ressaltar sua circunscrição ao texto poético, o que relativiza em muito sua aplicabilidade quanto ao discurso ficcional, dada a complexidade que envolve a instância do narrador e dadas as múltiplas possibilidades de disfarce do autor empírico. Já para Luiza Lobo, “esta definição parece implicar que qualquer pessoa poderia se identificar existencialmente com a condição de afrodescendente – o que de modo algum é verdadeiro no atual estágio sociocultural em que nos encontramos, pelo menos no Brasil.” (2007, p. 328). Lobo defende que o conceito não deve incluir a produção de autores brancos, e, juntamente com Brookshaw (1983), entende ser tal literatura apenas aquela “escrita por negros”.
Como se pode constatar, a questão é controversa e como tal tem se mantido nas reflexões e debates levados a cabo nas últimas décadas. Mas tem-se, ainda, um outro agravante, formulado pelo segmento de sentido que diz respeito ao texto negro como sinônimo de narrativa detetivesca de mistério e suspense, na linha do roman noir da indústria editorial. No Brasil, tal vertente faz sucesso com Rubem Fonseca (1925) e outros, chegando-se mesmo ao estabelecimento de nuances diferenciadoras entre os conceitos de romance negro e romance policial. Vejamos a propósito a definição dada por Peter Winner, o personagem escritor do Romance negro, de Rubem Fonseca:
“acabamos de dizer que o romance negro se caracteriza pela existência de um crime, com uma vítima que se sabe logo quem é; e um criminoso, desconhecido; e um detetive, que afinal descobre a identidade desse criminoso. Assim, não existe o crime perfeito, não é verdade?” (FONSECA: 1992, p. 151, aspas do autor).
No conto, em que o protagonista é um famoso escritor de histórias policiais, a pontificar num evento reunindo outros autores do gênero, Fonseca entrelaça ação e metalinguagem para esboçar a genealogia do roman noir desde o século XVIII, passando por Edgar Alan Poe e outros fundadores: “roman noir, novela negra, kriminal roman, romance policial, romance de mistério ou que nome possua, teve suas regras simples estabelecidas por Poe ao publicar Os crimes, nessa mesma revista que temos à nossa frente”. (Ibid., p. 161). Ao que complementa o escritor fictício de Fonseca: “um crítico afirmava que meus livros, com seu conteúdo de violência, corrupção, conflitos sociais, miséria, crime e loucura, podiam ser considerados verdadeiros textos do romance negro (...)” (Ibid., p. 164).
Assim, já por esse pequeno sumário da questão, pode-se deduzir que, da militância e celebração identitária ao negrismo descomprometido e tendente ao exótico, passando por escritos distantes tanto de uma postura como de outra, literatura negra são muitas, o que, no mínimo, enfraquece e limita a eficácia do conceito enquanto operador teórico e crítico. E isto sem entrar na cadeia semântica do adjetivo que, desde as páginas da Bíblia, carrega em praticamente todas as línguas faladas no ocidente as marcas de negatividade, inferioridade, pecado, morte e todo tipo de sortilégio, como já apontado por Brookshaw (1983), dentre outros.
Já o termo afro-brasileiro, por sua própria configuração semântica, remete ao tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde a chegada dos primeiros africanos. Processo de hibridação étnica e linguística, religiosa e cultural. De acordo com um pensamento conservador, poder-se-ia dizer que afro-brasileiros são também todos os que provêm ou pertencem a famílias mais antigas, cuja genealogia remonta ao período anterior aos grandes fluxos migratórios ocorridos desde o século XIX. E como este, outros reparos poderiam ser arrolados, dado o caráter não-essencialista do termo. Para Luís Silva, (Cuti), ele funciona como elemento atenuador que diluiria o sentido político de afirmação identitária contido na palavra negro. É certo que, por abraçarem toda a gama de variações fenotípicas inerentes à mestiçagem, termos como afro-brasileiro ou afrodescendente trazem em si o risco de assumirem sentido homólogo ao do signo “pardo”, tão presente nas estatísticas do IBGE, quanto execrado pelos fundamentalistas do orgulho racial traduzido no slogan “100% negro”.
Deixando de lado polêmicas de fundo sociológico, político ou antropológico, também é certo que não há, sobretudo no Brasil, uma literatura 100% negra, tomada aqui a palavra como sinônimo de africana. Nem a África é uma só, como nos demonstra Apiah (1997), nem o romance, o conto ou o poema são construções provindas unicamente do Atlântico Negro. Num universo cultural como o nosso – onde verdadeiras constelações discursivas, localizadas tanto regionalmente, quanto no que Nora denomina “lugares de memória”, se dispõem ao constante reprocessamento –, insistir num viés essencialista pode gerar mais polêmicas do que operadores teórico-críticos eficientes para o trabalho pedagógico de formar leitores.
A discussão envolve outras variantes. Luiza Lobo confere um perfil mais incisivo ao conceito:
Poderíamos definir literatura afro-brasileira como a produção literária de afrodescendentes que se assumem ideologicamente como tal, utilizando um sujeito de enunciação próprio. Portanto, ela se distinguiria, de imediato, da produção literária de autores brancos a respeito do negro, seja enquanto objeto, seja enquanto tema ou personagem estereotipado (folclore, exotismo, regionalismo). (LOBO: 2007, p. 315).
A definição articula o sujeito de enunciação proposto por Bernd com a exigência de pertencimento e compromisso ideológico formulada por Ironides Rodrigues. E prossegue: “Para arrancar a literatura negra do reduto reducionista da literatura em geral que a trata como tema folclórico, exótico, ou como estereótipo, é preciso que ela seja, necessariamente, uma literatura afro-brasileira” (Ibid., p. 331).
É inegável que a afro-brasilidade, aplicada à produção literária enquanto requisito de autoria e marca de origem, configura-se como perturbador suplemento de sentido aposto ao conceito de literatura brasileira, sobretudo àquele que a coloca como “ramo” da portuguesa. Mas tão relevante quanto o “sujeito de enunciação próprio”, em que um eu lírico ou um narrador se autoproclama negro ou afrodescendente, é o ponto de vista adotado. Um bom exemplo pode estar na produção de autores do século XIX remanescentes de africanos, submetidos à hegemonia do embranquecimento como vacina contra a morte social. E, ainda, submetidos a um pensamento científico que praticamente os proibia de se declararem negros ou mulatos, a exemplo de Maria Firmina dos Reis (1822-1917). Autores impelidos a uma negrícia ou negrura abafadas e tendo na literatura uma forma de expressão do retorno do recalcado, como no caso de Machado de Assis (1839-1908). Em ambos, não há uma voz autoral que se assuma negra, como no texto do “Orfeu de Carapinha” Luiz Gama. Daí a dificuldade de enquadrar “Pai contra mãe” ou Úrsula (1859) como literatura negra, e não apenas devido à sobrecarga de sentidos políticos ou folclóricos agregados ao conceito. Todavia, os escritos de ambos – e são inúmeros os exemplos – não podem ser classificados como dotados de um ponto de vista externo ou descomprometido. O texto machadiano fala por si, e assim como em Firmina, explicita um olhar não-branco e não-racista. Nem um nem outro devem, portanto, serem enquadrados como negrismo ou literatura sobre o negro. Deste modo, tão relevante ou mais que a explicitação da origem autoral é o lugar a partir do qual o autor expressa sua visão de mundo.
Nesse contexto, vejo no conceito de literatura afro-brasileira uma formulação mais elástica (e mais produtiva), a abarcar tanto a assunção explícita de um sujeito étnico – que se faz presente numa série que vai de Luiz Gama a Cuti, passando pelo “negro ou mulato, como queiram”, de Lima Barreto (1881-1922) –, quanto o dissimulado lugar de enunciação que abriga Caldas Barbosa, Machado, Firmina, Cruz e Sousa (1861-1898), Patrocínio (1853-1905), Paula Brito (1809-1861), Gonçalves Crespo (1846-1886) e tantos mais. Por isto mesmo, inscreve-se como um operador capacitado a abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias tendências existentes na demarcação discursiva do campo identitário afrodescendente em sua expressão literária.
Acredito, pois, na maior pertinência do conceito de literatura afro-brasileira, presente em nossos estudos literários desde o livro pioneiro de Roger Bastide (1943), com os equívocos, é certo, que aquele momento não permitia a ele superar, em especial no tocante a Cruz e Sousa. E também presente nas reflexões de Moema Augel e, mais enfaticamente, de Luiza Lobo (1993, 2007). Adotado, enfim, por praticamente todos os que lidam com a questão nos dias de hoje, inclusive pelos próprios autores do Quilombhoje, seja nos subtítulos dos Cadernos Negros, seja no próprio volume teórico-crítico lançado pelo grupo, em 1985, com o título de Reflexões sobre a literatura afro-brasileira.
Nesse contexto, seria relevante atentar para as reflexões do poeta e crítico Edimilson de Almeida Pereira, que aponta o risco dos critérios étnico e temático funcionarem como “censura prévia” aos autores. Sua preocupação se aproxima daquela manifestada por Proença Filho quanto ao “risco terminológico” (1988, p. 77) implícito à expressão, que poderia confinar ainda mais essa escritura ao gueto, afastando-a, consequentemente, das instâncias de canonização. De sua parte, Pereira defende a adoção de um “critério pluralista”, a partir de uma “orientação dialética”, que “possa demonstrar a literatura afro-brasileira como uma das faces da literatura brasileira – esta mesma sendo percebida como uma unidade constituída de diversidades” (1995, p. 1035-6). O crítico inverte a conhecida postulação de Afrânio Coutinho e considera a literatura brasileira como constituinte de uma “tradição fraturada” típica de países que passaram pelo processo de colonização. É, portanto, no âmbito dessa expressão historicamente múltipla e desprovida de unidade que se abre espaço para a configuração do discurso literário afrodescendente em seus diversos matizes.
Em resumo, que elementos distinguiriam essa literatura? Para além das discussões conceituais, alguns identificadores podem ser destacados: uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afro-brasileiros; construções lingüísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e começo.
Alertando para o fato de que se trata de um conceito em construção, passamos a examinar mais detidamente cada um desses elementos.
A Temática
Riram dos nossos valores
Apagaram os nossos sonhos
Pisaram a nossa dignidade
Sufocaram a nossa voz
Nos transformaram em uma ilha
Cercada de mentiras por todos os lados.
Carlos de Assumpção
O tema é um dos fatores que ajuda a configurar o pertencimento de um texto à literatura afro-brasileira. Para Octavio Ianni, trata-se de abordar não só o sujeito afrodescendente, no plano do indivíduo, mas como “universo humano, social, cultural e artístico de que se nutre essa literatura” (1988, p. 209). Assim, pode contemplar o resgate da história do povo negro na diáspora brasileira, passando pela denúncia da escravização e de suas consequências, ou ir à glorificação de heróis como Zumbi dos Palmares. A denúncia da escravatura já está no citado Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, em Motta Coqueiro (1877), de José do Patrocínio, na obra de Cruz e Sousa e em alguns romances, contos e crônicas de Machado de Assis, bem como em outros autores dos séculos XIX e XX. Por sua vez, os feitos gloriosos dos quilombolas estão presentes tanto no Canto dos Palmares (1961), de Solano Trindade (1908-1974), quanto no Dionísio esfacelado (1984), de Domício Proença Filho (1936). E ainda em diversos outros textos empenhados em reconstituir a memória de lutas dos que não se submeteram ao cativeiro, como a obra de Oliveira Silveira (1941-2009) e a biografia romanceada do líder palmarino, de Joel Rufino dos Santos. Tais escritos polemizam com o discurso colonial que, conforme salienta Fanon (1983), trabalha pelo apagamento de toda história, cultura e civilização existentes para aquém ou além dos limites da sociedade branca dominante
A temática afro-brasileira abarca ainda as tradições culturais ou religiosas transplantadas para o novo mundo, destacando a riqueza dos mitos, lendas e de todo um imaginário circunscrito quase sempre à oralidade. Autores como Mestre Didi (1917-2013), com seus Contos crioulos da Bahia (1976), ou Mãe Beata de Yemonjá (1931-2017), com as narrativas presentes em Caroço de dendê (2002) e Histórias que minha avó contava (2004), figuram nessa linha de recuperação de uma multifacetada memória ancestral. Além disso, elementos rituais e religiosos são presença constante em inúmeros autores. Exus e Pombas-Giras povoam Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins (1958), enquanto os Orikis transportados pelo Atlântico Negro fazem-se presentes na poesia de Edimilson de Almeida Pereira e tantos mais. Já a peça Sortilégio (1957), de Abdias Nascimento (1914-2011), traz para o palco não apenas o terreiro e o peji como cenário, mas o culto afro-brasileiro e a memória ancestral como fundamentos do processo de identificação do personagem negro, um dos pontos fulcrais da trama. E, para além da temática propriamente religiosa, observa-se a recorrência de textos em que se celebram vínculos com a ancestralidade africana, como em “Elo”, de Oliveira Silveira: “Aqui meu umbigo túmido / receptor de seiva / neste lado do mar, / nesta longe placenta. / E África lá está / na outra extremidade do cordão” (Roteiro dos tantãs, p. 3).
Outra vertente dessa diversidade temática situa-se na história contemporânea e busca trazer ao leitor os dramas vividos na modernidade brasileira, com suas ilhas de prosperidade cercadas de miséria e exclusão. De Lima Barreto e Nascimento Moraes a Carolina Maria de Jesus; de Lino Guedes, Adão Ventura (1939-2004) e Oswaldo de Camargo (1936) a Eduardo de Oliveira (1926-2012), passando pelos poetas e ficcionistas reunidos na série Cadernos Negros, muitos são os que debruçam sobre o estigma do 14 de maio de 1888 – o longo day after da abolição, que se prolonga pelas décadas seguintes e chega ao século XXI. Como decorrência desse processo, surgem nos textos o subúrbio, a favela, a crítica ao preconceito e ao branqueamento, a marginalidade, a prisão. E figuras como Di Lixão, Ana Davenga, Natalina, Duzu-Querença, personagens dos contos de Conceição Evaristo, como a empregada Maria, linchada pelos passageiros de um ônibus urbano após escapar de assalto em que estes são vítimas, simplesmente por ser ex-companheira de um dos bandidos.
No entanto, a abordagem das condições passadas e presentes de existência dos afrodescendentes no Brasil não pode ser considerada obrigatória, nem se transformar numa camisa de força para o autor, o que redundaria em visível empobrecimento. Por outro lado, nada impede que a matéria ou o assunto negro estejam presentes da escrita dos brancos. Desde as primeiras manifestações das vanguardas estéticas do século XX, uma forte tendência negrista parte das apropriações cubistas do imaginário africano e se estende a outras artes e outros países, em especial no modernismo brasileiro. Dessa postura decorrem textos hoje considerados clássicos. Deste modo, a adoção da temática afro não deve ser considerada isoladamente e, sim, em sua interação com outros fatores como autoria e o ponto de vista.
A Autoria
Há o tema do negro e há a vida do negro…
Mas uma coisa é o negro-tema, outra o negro vida.
Alberto Guerreiro Ramos
Conforme já visto, a instância da autoria é das mais controversas, pois implica a consideração de fatores biográficos ou fenotípicos, com todas as dificuldades daí decorrentes e, ainda, a defesa feita por alguns estudiosos de uma literatura afro-brasileira de autoria branca. No primeiro caso, há que atentar para a abertura implícita ao sentido da expressão afro-brasileiro, a fim de abarcar as identidades compósitas oriundas do processo miscigenador. No segundo, corre-se o risco de reduzir essa produção ao negrismo, entendido como utilização, por quem quer que seja, de assuntos atinentes aos negros. Superando-se o reducionismo temático e vendo-se a questão de outra perspectiva, pode-se, por exemplo, reler Castro Alves e concluir que, apesar do epíteto de “poeta dos escravos”, sua obra não se enquadra na literatura afro-brasileira.
No extremo oposto ao negrismo, existem autores que, apesar de afrodescendentes, não reivindicam para si tal condição, nem a incluem em seu projeto literário, a exemplo de Marilene Felinto e tantos outros.3 Isto nos indica a necessidade de evitar também a redução sociológica, que, no limite, levaria a interpretar o texto a partir de fatores externos a ele, como a cor da pele ou a condição social do escritor. No caso presente, é preciso compreender a autoria não como um dado “exterior”, mas como uma constante discursiva integrada à materialidade da construção literária. Por esta via se descobrem ângulos novos tanto na poesia de Cruz e Souza quanto na obra de Machado de Assis, em especial, nas crônicas publicadas sob pseudônimo.
No caso do poeta catarinense, um acesso, por ligeiro que seja, a dados de sua biografia, indicará a existência de outras possibilidades de interpretação distintas daquela obsessão pela branquitude que muitos enxergam como dominante em seu projeto poético. A confissão angustiada presente no “Emparedado” explicita não ser Cruz e Sousa um “negro de alma branca”, apesar da formação europeizante que recebeu e do refinado conhecimento que possuía da poesia e da cultura ocidentais. O emparedamento a que está submetido pelo fato histórico da escravização, reforçado pelos estigmas com que são rebaixados os de pele escura mesmo após o término formal do regime, repercute em seus escritos construindo novas possibilidades de leitura. Como no caso de Machado e tantos outros, há que se levar também em conta a produção jornalística do poeta, inclusive no que tem de confessional, para conhecer seu profundo desprezo pela elite que fazia do trabalho escravizado fonte de lucro e poder. A partir de então, ter-se-á uma dimensão mais ampla do conjunto da obra.
A instância da autoria como fundamento para a existência da literatura afro-brasileira decorre da relevância dada à interação entre escritura e experiência, que inúmeros autores fazem questão de destacar, seja enquanto compromisso identitário e comunitário, seja no tocante à sua própria formação de artistas da palavra. No primeiro caso, saltam aos olhos os impulsos coletivistas que levam diferentes autores a quererem ser a voz e a consciência da comunidade.4 Nesse contexto, recupera-se a tradição africana dos griots. Guardiães do saber ancestral circunscrito à oralidade, bem como dos usos e costumes das nações que deram origem à população afrodescendente no Brasil, os griots são referência para intelectuais militantes como Abdias Nascimento, Solano Trindade, Carlos de Assumpção (1927), Cuti e tantos mais.
Por outro lado, a inscrição da experiência marcada por obstáculos de toda ordem tem sido uma constante na produção afrodescendente de diversos países. Traços autobiográficos marcam as páginas de inúmeros autores do passado e do presente, a entrelaçar a ficção e a poesia com o testemunho, numa linha que vem de Cruz e Sousa e Lima Barreto a Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Geni Guimarães (1947), entre outros. No momento, quem mais explicita o veio documental de sua obra é Conceição Evaristo, que reivindica para seus textos o estatuto de escrevivência: “na origem da minha escrita, ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas, contando em voz alta umas para as outras as suas mazelas, assim como suas alegrias” (Apud, ALEXANDRE , Org., 2007, p. 19). A exiguidade de espaço dos barracos da favela e a proximidade ente uns e outros estreita os caminhos dos becos e também das vidas que ali se cruzam, fixando tais experiências na memória da futura escritora:
E conclui:
A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos (Ibid., p. 21, grifo da autora).
Deste modo, a autoria há que estar conjugada intimamente ao ponto de vista. Literatura é discursividade e a cor da pele será importante enquanto inscrição textual de uma história própria ou coletiva.
O Ponto de Vista
À África
Às vezes te sinto como avó,
outras vezes te sinto como mãe.
Quando te sinto como neto
me sinto como sou.
Quando te sinto como filho
não estou me sentindo bem eu,
estou me sentindo aquele
que arrancaram de dentro de ti.
Oliveira Silveira
O ponto de vista adotado indica a visão de mundo autoral e o universo axiológico vigente no texto, ou seja, o conjunto de valores que fundamentam as opções até mesmo vocabulares presentes na representação. Diante disso, a ascendência africana ou a utilização do tema são insuficientes. É necessária ainda a assunção de uma perspectiva identificada à história, à cultura, logo à toda problemática inerente à vida e às condições de existência desse importante segmento da população. Em suas Trovas burlescas publicadas em 1859, Luiz Gama, autoproclamado “Orfeu de Carapinha”, explicita a afrodescendência de seus textos ao apelar à “musa da Guiné” e à “musa de azeviche” para, em seguida, promover uma impiedosa carnavalização das elites. Já em seu romance Úrsula, também de 1859, Maria Firmina dos Reis adota a mesma perspectiva ao colocar o escravo Túlio como referência moral do texto, chegando a afirmar, pela voz do narrador, que Tancredo, um dos brancos mais destacados na trama, possuía “sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro” (2004: p. 25). Mais adiante, faz seu texto falar pela voz de Mãe Suzana, velha cativa que detalha a vida livre na África, a captura pelos “bárbaros” traficantes europeus e o “cemitério” cotidiano do porão do navio negreiro. Numa época em que muitos sequer concediam aos negros a condição de seres humanos, o romance e a perspectiva afro-identificada da escritora soam como gestos revolucionários que a distinguem do restante da literatura brasileira da época.
Já o caso de Machado de Assis é emblemático. Menino pobre, nascido no Morro do Livramento, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira, jovem ainda ganha destaque no mundo das letras. Cronista, crítico literário, poeta e ficcionista, em nenhuma página de sua vasta obra se encontra qualquer referência a favor da escravatura ou da pretensa inferioridade de negros ou mestiços. Muito pelo contrário.
E, mesmo descartando a retórica panfletária, a ironia, por vezes sarcástica, e a verve carnavalizadora com que trata a classe senhorial dão bem a medida de sua visão de mundo. O lugar de onde fala é o dos oprimidos e este é um fator decisivo para incluir ao menos parte de sua obra no âmbito da afrobrasilidade. Apesar de fundador da Academia Brasileira de Letras e de ter sido canonizado como escritor branco, Machado escapa ao papel normalmente destinado aos homens livres na ordem escravocrata: o de ventríloquo e defensor das ideias hegemônicas, provenientes das elites senhoriais. E, conforme demonstra Chalhoub (2003), ao contrário da leitura de Schwarz (1977), a crítica machadiana não visa apenas ao “aprimoramento” do paternalismo, mas à sua denúncia.
Como funcionário do governo imperial, Machado ostenta uma postura irrepreensível ao propiciar a libertação de inúmeros cativos. E como escritor, adota em seus textos um ponto de vista coerente com seu procedimento de cidadão (Chalhoub, 2003). A acusação de omisso que muitos tentaram lhe impingir cai por terra diante das centenas de matérias abolicionistas publicadas pela Gazeta de Notícias, órgão do qual era sócio oculto. E mais: em suas crônicas, sempre que aborda o cativeiro, acrescenta elementos judicativos, que ora lamentam a condição dos escravos, ora louvam a filantropia dos que os libertam, ora criticam os que apoiam ou se beneficiam do sistema, conforme podemos ler em Raimundo Magalhães Júnior (1957). No terreno da poesia, encontramos obras como “Sabina” ou os versos satíricos publicados nos jornais, onde obtinham repercussão mais ampla. E seguem-se contos como “Virginius”, “Mariana”, “O Espelho”, “O caso da vara” ou o contundente “Pai contra mãe”, calcados numa postura nitidamente afro- brasileira. Já nos romances, o olhar que organiza as ações e comanda a pintura das figuras nunca é o olhar do branco explorador, menos ainda escravista.
Entrando no século XX, damos como exemplo inicial o poeta Lino Guedes. Em 1938, ele publica Dictinha, um volume inteiro dedicado a exaltar a mulher negra e, ao mesmo tempo, estabelecer um confronto praticamente inédito com a estereotipia vigente na sociedade em torno dessa camada feminina vitimada tanto pelo racismo quanto pelo sexismo. Ouçamos uma estrofe:
Que desta localidade
És a mais bela pretinha:
Se não fosse profanar-te,
Chamar-te-ia... francesinha!
(Guedes, 1938)
A elevação da mulher negra faz-se presente ainda em outros poetas da primeira metade do século XX, como Solano Trindade ou Aloísio Resende (1900-1941). Eles publicam em pleno apogeu modernista e fazem um interessante contraponto com a “Nega Fulô”, de Jorge de Lima. No caso de Guedes, destaca-se a opção do poeta de inverter o sentido do discurso moralista do branco, utilizando-se para tanto das próprias armas deste, ou seja, do estereótipo sexual com que ingleses e alemães, sobretudo, estigmatizavam as francesas. Diante da “francesinha”, tomada pelo viés do sentido pejorativo, a “pretinha” surge valorizada e engrandecida. É o recurso da apropriação paródica, que utiliza a linguagem do preconceito contra o preconceito.
Correm-se, no caso, os riscos já sabidos, pois se vai estar sempre na esfera da exclusão própria ao pensamento segregacionista. Mas a paródia do discurso colonial já é, em si, um avanço frente a assimilação pura e simples que marca o trabalho de outros, dotados de alma e estética brancas.
A assunção de um ponto de vista afro-brasileiro atinge seu ponto culminante com a série Cadernos Negros. A apresentação do número 1 soa como manifesto e ilustra a afirmativa:
Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África, vida nova, mais justa e mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das ideias que nos enfraquecem e que só servem aos que querem nos dominar e explorar (Cadernos Negros 1, 1978).
A metáfora do renascimento remete à adoção de uma visão de mundo própria e distinta da do branco, à superação da cópia de modelos europeus e à assimilação cultural imposta como única via de expressão. Ao superar o discurso do colonizador em seus matizes passados e presentes, a perspectiva afro-identificada configura-se enquanto discurso da diferença e atua como elo importante dessa cadeia discursiva.
A Linguagem
Quando o escravo
surrupiou a escrita
disse o senhor:
– precisão, síntese, regras
e boas maneiras!
São seus deveres.
Cuti
A literatura costuma ser definida, antes de tudo, como linguagem, construção discursiva marcada pela finalidade estética. Tal posição ancora-se no formalismo inerente ao preceito kantiano da “finalidade sem fim” da obra de arte. Todavia, outras finalidades para além da fruição estética são também reconhecidas e expressam valores éticos, culturais, políticos e ideológicos. A linguagem é, em dúvida, um dos fatores instituintes da diferença cultural no texto literário. Assim, a afro-brasilidade tornar-se-á visível também a partir de um vocabulário pertencente às práticas linguísticas oriundas de África e inseridas no processo transculturador em curso no Brasil. Ou de uma discursividade que ressalta ritmos, entonações e, mesmo, toda uma semântica própria, empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos na língua. Isto porque, bem o sabemos, não há linguagem inocente, nem signo sem ideologia. Termos como negro, negra, crioulo ou mulata, para ficarmos nos exemplos mais evidentes, circulam no Brasil carregados de sentidos pejorativos e tornam-se verdadeiros tabus linguísticos no âmbito da “cordialidade” que, até certo ponto, ainda caracteriza o racismo à brasileira.
Alguns exemplos: quem não se lembra dos versos de Manuel Bandeira (1990) “Irene preta, Irene boa, Irene sempre de bom humor”? Ou da mulata assanhada, que nunca é mulher diurna, só noturna; nunca é espírito, só carne; nunca é família ou trabalho, só prazer? E bem conhecemos o complemento masculino dessa fantasia: o mulato malandro, chegado à festa e aos vícios, fator de degeneração e de desequilíbrio social. Estes e tantos outros fantasmas emergem de nosso passado escravista para ainda hoje habitarem o imaginário social brasileiro, onde fazem companhia a figurações como a do “bom senhor” ou do “bom patrão”; do “escravo contente” ou do seu oposto, o marginal sanguinário e psicopata, naturalmente voltado para o crime. Estas e tantas outras deturpações inscrevem-se em nossas letras, tanto quanto no cinema, na TV ou nos programas popularescos que se espalham pelas ondas do rádio. São estereótipos sociais largamente difundidos e assumidos inclusive entre suas vítimas, signos que funcionam como poderosos elementos de manutenção da desigualdade.
Nesse contexto, o discurso afrodescendente busca a “ruptura com os contratos de fala e escrita ditados pelo mundo branco” objetivando a configuração de “uma nova ordem simbólica”, que expresse a “reversão de valores”, conforme analisa Zilá Bernd (1988: p. 22, 85, 89). E o tom carinhoso impresso à linguagem de Henrique Cunha Júnior (1952) no momento em que trata de um dos principais ícones do preconceito racial, dá bem a medida do esforço de reterritorialização cultural empreendido pela literatura afro-brasileira. Ouçamos o poeta:
Cabelos que a natureza se deu ao luxo
de trabalhá-los e não simplesmente deixá-los
esticados ao acaso
Cabelo pixaim
Cabelo de negro.
(Cadernos Negros 1, 1978)
O signo cabelo enquanto marca de inferioridade – cabelo duro, cabelo ruim, “qual é o pente que penteia?”, repete-nos a música ouvida há tantas décadas – é recuperado pelo viés da positividade expressa na linguagem: o diminutivo “enroladinhos” em conjunção fônica (e semântica) com “pequeninos” remete ao “luxo” dos “caracóis” trabalhados pela natureza, ao contrário do cabelo liso, inscrito como fruto do “acaso”... Nessa linha há inúmeros exemplos, como “Outra Nega Fulô”, de Oliveira Silveira (1998, p. 109-110) ou “Minha cor não é de luto”, de Márcio Barbosa (2004, p. 106), em que se evidencia a reversão paródica do discurso hegemônico.
E no tocante às particularidades de ritmo e de entonação, são inúmeros os casos em que o texto expressa sonoridades outras, marcadas pelo rico imaginário afro-brasileiro. Entre tantos, podemos lembrar os sons guerreiros do poeta Bélsiva – “Irmão, bate os atabaques / Bate, bate, bate forte / Bate que a arte é nossa” (1978) – em que o desdobramento anagramático do instrumento musical africano faz com que a poesia assuma o sentido de ritual coletivo e libertador. Outros exemplos poderiam ser arrolados, a partir mesmo da forte presença de vocábulos de idiomas africanos incorporados ao português do Brasil, como em “Tristes Maracatus”, de Solano Trindade: “Baticuns maracatucando / na minh’alma de moleque / Buneca negra de minha meninice / de ‘negro preto’ de São José / Nas águas de calunga / a Kambinda me inspirando amor / o primeiro cafuné no mato verde / Da campina do Bodé” (Trindade: 1981, p. 74).
Assim, a assunção de uma linguagem descomprometida com os “contratos de fala” dominantes ganha sentido político, conforme conclui Conceição Evaristo:
Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que se pode evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere as “normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada (Evaristo, 2007, p. 21).
O Público
Escrevo porque há que se despertar
a consciência adormecida e preguiçosa do nosso povo,
porque há que se cutucar com punhais/palavras
os marginalizados que são meus personagens
e que provavelmente
- não por falta de empenho de minha parte –
nem venham a ler meus textos.
Paulo Colina.
A formação de um horizonte recepcional afrodescendente como fator de intencionalidade próprio a essa literatura distingue-a do projeto que norteia a literatura brasileira em geral. A constituição desse público específico, marcado pela diferença cultural e pelo anseio de afirmação identitária, compõe a faceta algo utópica do projeto literário afro-brasileiro, sobretudo a partir de Solano Trindade, Oliveira Silveira e dos autores contemporâneos. Este impulso à ação e ao gesto político leva à criação de outros espaços mediadores entre texto e receptor: os saraus literários na periferia, os lançamentos festivos, a encenação teatral, as rodas de poesia e rap, as manifestações políticas alusivas ao 20 de novembro, entre outros. No caso, o sujeito que escreve o faz não apenas com vistas a atingir um determinado segmento da população, mas o faz também a partir de uma compreensão do papel do escritor como porta-voz da comunidade. Isto explica a reversão de valores e o combate aos estereótipos, procedimentos que enfatizam o papel social da literatura na construção da autoestima. Acrescente-se o fato de que títulos como Axé, Cadernos Negros ou Quilombo de palavras explicitam de imediato um público-alvo a cujas expectativas o escritor espera atender.
A tarefa a que se propõem é ambiciosa e nada desprezível. Trata-se de intervir num processo complexo e num campo adverso, dada a dificuldade de se implantar o gosto e o hábito de leitura, sobretudo entre crianças e jovens, em sua maioria pobres, num cenário marcado pela hegemonia dos meios eletrônicos de comunicação. Para ilustrar, recordo uma reflexão de Ezequiel Teodoro da Silva, datada dos anos 1980, a respeito do que então se denominava “crise de leitura”.
Segundo o autor, essa crise é alimentada pela “lei-dura” – um conjunto de restrições que impede a fruição da leitura e que a coloca numa situação de crise. Para ele, o primeiro parágrafo da “lei-dura” estabelece que somente a elite dirigente deve ler; o povo deve ser mantido longe dos livros. Porque livros bem selecionados e lidos, estimulam a crítica, a contestação e a transformação – elementos estes que, segundo o teórico, colocam em risco a estrutura social vigente (SILVA, 1997).
Num contexto tão adverso, duas tarefas se impõem: primeiro, a de levar ao público a literatura afro-brasileira, fazendo com que o leitor, tome contato não apenas com a diversidade dessa produção, mas também com novos modelos identitários; e, segundo, o desafio de dialogar com o horizonte de expectativas do leitor, combatendo o preconceito e inibindo a discriminação sem cair no simplismo muitas vezes maniqueísta do panfleto.
A busca do público leva à postura do grupo Quilombhoje, de São Paulo, de ir “onde o povo negro está”, vendendo os livros em eventos e outros circuitos alternativos ao mercado editorial. E explica a multiplicação de sites e portais na Internet, nos quais o receptor encontra formas menos dispendiosas de fruir o prazer da leitura. Resta, então, trabalhar por uma crescente inclusão digital para que se concretize nessa estratégia a saída frente às dificuldades existentes tanto no âmbito da produção editorial, quanto na rarefação de um mercado consumidor de reduzido poder aquisitivo.
Concluindo
A partir, portanto, da interação dinâmica desses cinco grandes fatores – temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público – pode-se constatar a existência da literatura afro-brasileira em sua plenitude. Tais componentes atuam como constantes discursivas presentes em textos de épocas distintas. Logo, emergem ao patamar de critérios diferenciadores e de pressupostos teórico-críticos a embasar e operacionalizar a leitura dessa produção. Impõe-se destacar, todavia, que nenhum desses elementos propicia o pertencimento à literatura afro-brasileira, mas sim o resultado de sua interrelação. Isoladamente, tanto o tema, como a linguagem e, mesmo, a autoria, o ponto de vista, e até o direcionamento recepcional são insuficientes.
Literatura Afro-brasileira: processo, devir. Além de segmento ou linhagem, componente de amplo encadeamento discursivo. Ao mesmo tempo “dentro e fora” da literatura brasileira, como já defendia, na década de 1980, Octavio Ianni (1988, p. 208). Uma produção que implica, evidentemente, redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido à história literária estabelecida. Uma produção que está dentro porque se utiliza da mesma língua e, praticamente, das mesmas formas e processos de expressão. Mas que está fora porque, entre outros fatores, não se enquadra no ideal romântico de instituir o advento do espírito nacional. Uma literatura empenhada, sim, mas num projeto suplementar (no sentido derridiano) ao da literatura brasileira canônica: o de edificar uma escritura que seja não apenas a expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização. Daí seu caráter muitas vezes marginal, porque fundado na diferença que questiona e abala a trajetória progressiva e linear de nossa história literária.
Notas
1. Uma versão reduzida desse texto está publicada em Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 31. Brasília, UnB, janeiro / junho de 2008. A presente versão encontra-se também em DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. S. (Org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 4, História, teoria, polêmica.
2. Em seu Vanguardas latino-americanas, Jorge Schwartz (1995) contrasta criticamente os conceitos de Negrismo e de Negritude e discorre sobre suas manifestações, tanto na literatura brasileira quanto nas literaturas hispano-americanas, ressaltando as distinções que caracterizam os movimentos entre si e nos diversos países. Já para Oswaldo de Camargo, o negrismo, enquanto discurso do branco, se equipara ao indianismo dos românticos, em que o nativo surge reduzido a objeto da fantasia do colonizador.
3. Ver a propósito nosso Literatura, política, identidades (cit.), p. 120.
4. A propósito, recorremos às palavras do poeta martinicano Aimé Cézaire, que poderiam ser assinadas por quaisquer dos escritores e intelectuais brasileiros afrodescendentes: “Sim, nós constituímos uma comunidade, mas uma comunidade de um tipo particular, reconhecível pelo que ela é, pelo que ela foi; que, apesar de tudo, se constituiu em uma comunidade: primeiramente, uma comunidade de opressão sofrida, uma comunidade de exclusão imposta, uma comunidade de discriminação profunda. Bem entendido, e em sua honra, ela é uma comunidade de resistência contínua, de luta tenaz pela liberdade e de indubitável esperança” (CÉSAIRE, 2010, p. 104).
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* Eduardo de Assis Duarte integra o Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da FALE-UFMG e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed., Record, 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (3. ed. rev. ampl., 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. Reimpr., 2021, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Participa do Projeto Interinstitucional de Pesquisa “literafro - Portal da Literatura Afro-brasileira: pesquisas em rede” e integra a Comissão Editorial e Executiva do literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.