A ascensão do subalterno feminino no romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves

Alexsandro Batista de Oliveira*

Há coisas que se choram muito
anteriormente
Sabe-se então que a História vai mudar.

Resumo

Este trabalho discorre sobre o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, e aborda a trajetória da personagem africana Kehinde, da sua captura em África (Daomé, hoje, Benim, África Ocidental) até a sua radicação no Brasil, além de abordar também o percurso dessa personagem da condição de “escrava” à de alforriada e, ainda, o empreendedorismo que a protagonista realiza nas condições mais adversas, o que a leva à ascensão social – atravessada pelos marcadores sociais da diferença (gênero, classe social e raça/etnia). Analisa-se, também, como se estruturaram as relações sociais no contexto histórico do Brasil da época, período em que se observa e se problematiza a questão da raça. Objetiva-se com essa pesquisa apontar a presença da mulher negra na Literatura Brasileira. Para isto, faz-se necessário, antes de tudo, lançarmos mão de conceitos como negritude, Negritude, negrismo e Literatura Negra (ou Afro-Brasileira), além de apontar definições para esses conceitos, bem como tais fatores estão presentes no romance em análise. A metodologia adotada se deu através da análise bibliográfica, tendo o referido romance como corpus. Recorremos às contribuições de teóricos que refletem sobre o tema como Zilá Bernd, Eduardo de Assis Duarte, Conceição Evaristo, Jorge Schwartz, Antonio Candido, Frantz Fanon, Gayatri Spivak, Angela Davis, Kimberlé Crenshaw et al.

Palavras-chave: Mulher. Identidade. Literatura Negra. Romance.

 

Introdução

O romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, a despeito de ter uma estrutura simples, traz aspectos novos na literatura brasileira, como a fusão entre Literatura e História, tratamento das questões raciais, o tráfico negreiro, a situação dos “retornados” para a África. Salienta-se ainda que tais aspectos são novos, sobretudo, por serem narrados em 1ª pessoa e escritos por uma mulher negra.  

A história é estruturada por meio de cartas que Kehinde escreve endereçadas ao filho vendido pelo pai e que se encontra desaparecido até então. Tal estratégia faz com que a narrativa se assemelhe a um relato oral, já que ao longo da narrativa percebemos que as histórias relatadas pela protagonista são vivenciadas por ela mesma e inspiradas em vestígios do passado, registrando a memória individual e coletiva.

A personagem em questão, Kehinde, é a protagonista do romance em análise. A estrutura da narrativa (tradicional: começo – meio – fim) possibilita ao leitor acompanhar, simultaneamente, a história da vida de Kehinde e a História do Brasil, haja vista que essa personagem chegou ao Brasil por meio da captura de escravos e vai morar, primeiro na Ilha de Itaparica, em seguida na Cidade de Salvador, ex-capital do Brasil, mas que manteve um intenso fluxo de pessoas, diversidade e ainda um considerável número de revoltas. Kehinde participará ativamente numa delas, a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, em 1835

Desse modo, é esse romance que servirá de objeto de análise do nosso trabalho. No entanto, antes de adentrarmos na narrativa propriamente dita, faz-se necessário lançarmos mão de conceitos como negritude, Negritude, negrismo e Literatura Negra, além de defini-los. Segundo Zilá Bernd (1988, p. 20), negritude (com “n” minúsculo) é “a tomada de consciência de uma situação de dominação e de discriminação, e a consequente reação pela busca de uma identidade negra”. Ainda, segundo essa autora, Negritude (com “n” maiúsculo) “refere-se a um momento pontual na trajetória da construção de uma identidade negra”. Sendo assim, o primeiro tem um caráter amplo, universal, ao passo que o segundo assume um caráter restrito, por ser demarcado no espaço (Paris) e no tempo (década de 30 do século XX, seu início).

No que tange ao conceito de negrismo, podemos afirmar que esse se constitui numa concepção destituída de “uma organização estética característica de muitos dos movimentos artísticos”, como assinala Schwartz (1998, p.656), em Vanguardas Latino-americanas: Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos. Nesta obra, são traçadas diferenças entre o negrismo europeu e o negrismo brasileiro. Referente ao último, o autor destaca: “já no negrismo brasileiro ou mesmo latino-americano, encontram-se traços de um negrismo que vai além do grotesco, é a descrição de algo vivido, presenciado na infância ou na juventude do autor, seja ele negro ou branco”. Noutras palavras, o negrismo é uma “exotização” do negro, eliminando a sua subjetividade, deturpando as suas idiossincrasias, promovendo a sua reificação. No que se refere à Literatura Negra ou Afro-brasileira, muitos autores se debruçaram sobre o tema, na tentativa de configurar esse conceito. Tais como Zilá Bernd, Eduardo de Assis Duarte, Roger Bastide, Luiza Lobo, Domício Proença Filho.   Vejamos como a estudiosa do tema, Luiza Lobo, procura definir essa Literatura: 

Poderíamos definir literatura afro-brasileira como a produção literária de afrodescendentes que se assumem ideologicamente como tal, utilizando um sujeito de enunciação próprio. Portanto, ela se distinguiria, de imediato, da produção literária de autores brancos a respeito do negro, seja enquanto objeto, seja enquanto tema ou personagem estereotipado (folclore, exotismo, regionalismo). (LOBO, 2007, p. 315).

Há uma evidente distinção entre Literatura Afro-brasileira (Negra) e Literatura sobre o Negro. O que se percebe, dado o trecho supracitado, é que a Literatura sobre o Negro, por seguir esse viés, objetificando o Negro, estaria próxima do que chamamos anteriormente de Negrismo. Assim, uma obra que tenha o Negro como tema, sendo escrita por uma pessoa branca, mesmo que demonstre sensibilidade e respeito por seu objeto, ainda assim não se poderia considerar tal produção literatura negra, pois não está em consonância com a conceituação proposta por Luiza Lobo. Em instigante artigo, intitulado “Por um conceito de literatura afro-brasileira”, também o estudioso Eduardo de Assis Duarte ressalva que a literatura negra apresenta cinco fatores peculiares: a temática, a autoria, o ponto de vista, a linguagem e o público. Todos esses fatores devem estar comprometidos, além de imbricados, com essa Literatura e tudo o que ela representa.

Feitas essas observações, passaremos a analisar o romance Um defeito de cor, da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, com foco na protagonista Kehinde.

O romance Um defeito de cor apresenta narrador em 1ª pessoa, como já mencionado. A obra entrelaça a vida da narradora protagonista e os acontecimentos políticos no Brasil da primeira metade do século XIX, desde a sua captura em África (Reino de Daomé), o tempo que passou na Bahia, seu batismo na Ilha dos Frades, seus dias na casa-grande, até quando ela se torna mãe, além de demonstrar como Kehinde desempenhou importante papel na Revolta dos Malês (Salvador, em 1835). Já aí, há uma notável referência, saindo da ficção e adentrando a História, a Luísa Mahin. Mulher negra que participou ativamente dessa Revolta, desempenhando um dos papéis mais importantes, tornando-se, assim, um dos símbolos de resistência do movimento negro. Contudo, no romance em questão, as ações e investidas de Luísa (nome pelo qual Kehinde passa a ser tratada, no Brasil, após seu batismo na Ilha) não se limitam a Salvador, há uma espécie de tour pelo Recôncavo Baiano, São Luís (Maranhão), São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, enquanto está no Brasil, como se verá depois.

 

Enunciação feminina

Ana Maria Gonçalves, ao escrever essa obra a partir de um período da história do nosso país – Brasil Imperial –, está, mais do que escrevendo literatura, pautando, em caráter revisionista, o papel das mulheres negras na história do Brasil que, embora abundantes na realidade, são pouco referidas e menos ainda representadas na Literatura Brasileira. É oportuno dizer que o período retratado em boa parte do romance é o momento em que se está consolidando o processo de construção de uma identidade nacional perceptível sobretudo na produção romanesca do período romântico (meados do século XIX). Retornar, então, a esse período, colocando em foco uma protagonista negra cuja história se funde com a de outra importante mulher na Revolta dos Malês – Luísa Mahin –, é trazer à tona a presença feminina negra, outorgando-lhe participação no estatuto da vida social. O que é comprovado, também, pela participação dessas mulheres na formação dos Terreiros de Candomblés em São Luís e Salvador. Agontimé e Kehinde/Luísa são precursoras na propagação dos cultos afros no Brasil.

A narrativa é escrita em forma de cartas dirigidas ao filho desaparecido. Vejamos como se “apresenta” a narradora da história, já no capítulo e parágrafo iniciais:

Kehinde

Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e dez. Portanto, tinha seis anos, quase sete, quando esta história começou. O que aconteceu antes disso não tem importância, pois a vida corria paralela ao destino. O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji e nasci por último. Minha irmã nasceu primeiro e por isso se chama Taiwo. Antes tinha nascido o meu irmão Kokumo, e o nome dele significa “não morrerás mais, os deuses te segurarão”. O Kokumo era um abiku, como a minha mãe. O nome dela Dúróorîike, era o mesmo que “fica, tu serás mimada”. A minha avó, Dúrójaiyé tinha esse nome porque também era abiku1, e o nome dela pedia “fica para gozar a vida, nós imploramos”. Assim são os abikus, espíritos amigos há mais tempo do que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer, combinam entre si, que logo voltarão a morrer para se encontrarem novamente no mundo dos espíritos”. (GONÇALVES, 2015, p.19).

O excerto acima, que situa a personagem protagonista Kehinde, é peculiar na literatura brasileira porque começa a desconstruir os estereótipos que se tem sobre os escravizados – seres destituídos de histórias, memórias, cosmovisões. Ana Maria Gonçalves, através da ficção, dá nome à personagem e, mais que isso, mostra como tal personagem estava inserida em sua comunidade, apresenta-nos a família e ainda o significado dos seus nomes, envolvendo memória e consciência de si, além de, a partir da referência aos “abikus”, demonstrar também os traços culturais do povo da região do Daomé (atual Benim).

O fato de o romance2 apresentar uma narradora negra, que ganha voz – isto está indicado pela narração em 1ª pessoa, contribui com maior intensidade para que o leitor se identifique com a história narrada, mergulhando em seu drama. O fio condutor do romance é a busca de Kehinde (Luísa, nesta altura da narrativa) pelo filho, que foi vendido pelo pai da criança, um homem de origem portuguesa, chamado Alberto, por motivo de dívidas. Tal acontecimento ocorreu quando Kehinde/Luísa estava ausente de Salvador, encontrava-se no Recôncavo Baiano, voltando de São Luís, pois fora designada por uma líder religiosa do candomblé a ir à capital maranhense a fim de adquirir mais conhecimentos sobre a religião afro e difundi-la em Salvador.   

Nas narrativas sobre os negros durante a escravidão, ora se coisifica a mulher, é o caso de Bertoleza, de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e ora se explora a hipersexualização do ser feminino, como ocorre com Rita Baiana, personagem do mesmo romance. Não vamos entrar aqui na seara do realismo-naturalismo, pois o exemplo é apenas para demonstrar como as mulheres negras eram tratadas nos romances. É com base nisso, que afirmamos que o romance de Ana Maria Gonçalves surge como inovador, porque, em caráter revisionista, a autora humaniza a personagem negra feminina, reserva-lhe até o estatuto de mãe. No caso do filho vendido, percebemos que o caráter de mãe ficou em suspenso, já que Kehinde teve o seu filho tirado como um “objeto”, uma mercadoria, como se não lhe fosse outorgado o direito à maternidade. Neste sentido, a filósofa Angela Davis (2016, p.12 ) reflete sobre essa situação da mulher negra escravizada como uma “fazedora de crias” (breeders).

Assim se configura o enredo: Kehinde é uma mulher negra, alforriada, mãe (pois além do primogênito morto e do filho que foi vendido pelo pai, Kehinde teve outros filhos), letrada e poliglota. Todos esses são fatores que contribuirão para a ascensão social de Kehinde. Há de se destacar um elemento salutar na construção dessa plenitude: a Memória. A memória ancestral é um fator preponderante no relato da personagem, bem como na construção de sua identidade. Lembremos aqui que a identidade da protagonista é atravessada tanto pelo contato que teve em África com os parentes, com outros povos que não os daomeanos, como no Brasil, com escravizados vindos de outras regiões de África, e ainda o contato com os brancos (portugueses, ingleses). Sobre a relação com a Memória, Kehinde, reiteradas vezes faz menção a ela, inclusive, informando a razão de registrá-la, lembrando-se de que escreveu “tudo para não esquecer, pois não estava em condições de confiar na memória, ou no senso de observação.” (2015, p. 471). Trata-se, certamente, de um jogo da narradora, no que se refere a esse “esquecimento”, pois, paradoxalmente, o relato é fluido, sem lacunas a serem preenchidas.

Apesar de termos aqui a referência a uma memória literária/escrita, a leitura do romance dá conta, e abundantemente, das vezes nas quais Kehinde lembra de sua avó, da sua irmã gêmea Taiwo, do Kokumo e de sua mãe. São recorrentes as passagens nas quais a protagonista evoca (e invoca, considerando a cosmovisão de seu povo) a presença/lembrança dos seus parentes. Para exemplificar, o “riozinho de sangue” causado pela morte de seu irmão Kokumo, morto pelos guerreiros do rei Adondizan. Essa “imagem” é recorrente na narrativa. Assim, Ana Maria Gonçalves, através da protagonista, põe a memória ancestral de Kehinde como norteadora, bússola para seguir adiante. Como lembra um dos provérbios africanos que abrem os capítulos do livro: “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.”

Outro fator a se considerar é a tentativa de anulação da identidade, no tocante à religião, dos pretos escravizados pelos colonizadores europeus. Ainda na viagem, no tumbeiro, notemos como a narradora se reporta à tentativa de um padre de anular a identidade dos pretos que foram capturados para vir ao Brasil:

Alguém lembrou que o padre tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar apenas na religião dos brancos, deixando em África toda a fé nos deuses de lá, porque era lá que eles deveriam ficar, visto que os deuses nunca embarcam para o estrangeiro. Quando alguém comentou isso, todos fizeram saudações aos seus orixás, eguns e voduns, demonstrando que não tinham concordado. (2015, p. 50).

Aqui, notamos uma certa resistência, por meio da enunciação (saudação aos orixás), em não se desvencilhar de suas crenças. Ainda se ressalte o fraco argumento do padre em afirmar que os “deuses nunca embarcam para o estrangeiro.” É a partir dessa “nudez cultural”, ao adentrar o tumbeiro, que os africanos escravizados vão ressignificar as suas crenças, preencher com a ancestralidade e a memória o elemento base que lhe falta no presente, na situação presente. No caso de Kehinde, essa resistência se dá também na passagem na qual ela, recém aportada no Brasil, se joga no mar, numa evidente recusa ao seu batismo católico. Tal resistência se consolida também com a formação dos Terreiros de Candomblés.

No que se refere à ascensão da protagonista, da condição de subalternizada à de sujeito pleno, há de se destacar a presença de Fatumbi, um mulçumano de origem africana, que fora contratado pelo senhor José Carlos, o “dono” de Kehinde, para ensinar as primeiras letras à Maria Clara, filha dele. Tal feito serviu mais à Kehinde do que à própria sinhazinha Maria Clara, já que a criança africana demonstrava mais predisposição e/ou interesse em aprender a ler. Assim se reporta a narradora sobre esse aspecto:

Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo, usando o chão como caderno. Eu também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a sinhazinha, sentindo os sons delas se unirem para formar as palavras. Ele logo percebeu o meu interesse e achei que fosse ficar bravo, mas não; até quase sorriu e passou a olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma importância que a sinhazinha. Comecei a aprender mais rapidamente que ela, que muitas vezes errava coisas que eu já sabia. As três horas de aula todas as tardes passaram a ser para mim as mais felizes do dia, as mais esperadas, e fiquei triste quando chegou o primeiro fim de semana, dias de folga que o professor aproveitou para ir até a capital. (2015, p. 92).

A partir do estrato, percebe-se que Kehinde alfabetizou-se por “acidente”, mas não sem compromisso/empenho. Esse passo foi muito importante para que Kehinde conquistasse, anos mais tarde, plenamente a sua liberdade: aprendeu inglês, comprou a sua alforria, atuou na Revolta do Malês, abriu uma fábrica de cookies, tornou-se uma grande empresária em Salvador e em torno do Recôncavo Baiano vendendo charutos. Aliás, é bom frisar que foi a partir dessa relação com Fatumbi que, anos mais tarde, na cidade de Salvador, Kehinde desempenharia um importante papel na Revolta dos Malês. Todos esses fatores contribuíram para que a protagonista assumisse o papel de sujeito, atingindo uma ascensão não apenas social, mas pessoal, simbolizando uma conquista coletiva.

Depois de uma intensa busca mal sucedida pelo filho desaparecido, Kehinde volta à África, agora na condição de “retornada” (agudá). Em viagem conhece o John, um mulato inglês, com o qual tem um romance, e ainda um casal de filhos gêmeos (ibêjis). E mais que isso: constrói, de fato, uma família. Haja vista que o seu primeiro companheiro (Alberto) a abandonara para se casar com uma brasileira. Foi em África, portanto, que ela pôde viver a experiência plena de maternidade. Haja vista que o primeiro filho tinha morrido antes dos sete anos, o segundo foi vendido pelo pai. Só agora, com uma família constituída, num “novo” território, pois Kehinde, quando esteve no Brasil, durante todo o tempo estava a lutar pela afirmação da sua identidade (iniciação ao Candomblé e transmissão de conhecimentos sobre essa religião, participação na Revolta dos Malês) e contra as tentativas de anulação da sua origem (batismo católico, imposição da religião católica e pretenso desprezo pela religião primeira, um novo nome a partir do batismo, nome “de branca”, como ela diz).

Interseccionalidades

Evidenciando o processo de subalternização, o romance em estudo é repleto de casos de violência, sobretudo contra as mulheres negras. Não obstante os repetidos castigos sofridos proporcionados pelos colonizadores destinados a todos os escravizados, as mulheres negras sofriam de um abuso particular: o estupro. O caso da escrava Verenciana ilustra bem esse ponto: Verenciana era uma escrava da senzala grande. Logo após a sinhá Ana Felipa perder um filho, foi informada pelo capataz (enamorado da moça) que a Verenciana estava grávida do sinhô José Carlos (marido da Sinhá). A revolta da sinhá foi tamanha que ela engendrou uma vingança: arrancou, com uma faca, os olhos da escrava e serviu-os como sobremesa ao sinhô José Carlos, seu marido. Apesar de Verenciana não ter sido estuprada, sofreu esse infortúnio cometido pela sinhá branca. Há aí uma denúncia: contra os escravos podiam ser cometidos toda sorte de maus tratos. Episódios como esses desromantizam a convivência harmônica entre as raças apresentada e defendida em Casa Grande e Senzala.

E ainda, para ilustrar esses abusos, notemos como o sinhô José Carlos, depois de várias investidas (esbarrões, pedidos licenciosos para ver os seios de Kehinde) força Kehinde ao ato sexual:

...o sinhô José Carlos me derrubou na esteira, com um tapa no rosto, e depois pulou em cima de mim, com o membro já duro e escapando pela abertura da calça, que ele nem se deu ao trabalho de tirar. Eu encarava os olhos mortos de Lourenço enquanto o sinhô levantava a minha saia e me abria as pernas com todo o peso do seu corpo para depois se enfiar dentro de minha racha como se estivesse sangrando um carneiro. Não me lembro se doeu, pois eu estava mais preocupada com o riozinho de sangue que escorria do corte na minha boca, provocado pelo tapa, e me lembrava da minha mãe debaixo do guerreiro, em Savalu, desejando que ela, o Kokumo e seus amigos aparecessem e me levassem, a mim e ao Lourenço, para brincar com eles, mesmo sem sermos abikus. (2015, p. 171).

Pelo exposto, podemos perceber quão delicada era a situação da mulher negra escravizada, atravessada pelos marcadores sociais da diferença, dos quais nos falam Angela Davis, em trabalho sobre a situação da mulher negra no período escravocrata nos Estados Unidos e Kimberlé Crenshaw, sobre a teoria das interseccionalidades. Não é à toa que Kehinde lembra-se da sua mãe, nesse momento. Ela, Kehinde, estava em situação análoga à da mãe: sendo estuprada. O romance ainda dá conta de uma situação semelhante que ocorreu a Lourenço, o noivo de Kehinde, mas ela caíra “nas graças” do senhor José Carlos e Lourenço levou a pior: foi estuprado e teve o seu sexo extirpado. Tal perversidade era uma forma de José Carlos demonstrar poder diante de todos, sobretudo de um outro homem.

Depois de tantos sofrimentos, Kehinde teve a sua personalidade atravessada por essas vivências. Contudo, ela nunca se furtou de conviver com as várias pessoas que cruzaram o seu caminho. Não obstante ter uma certa desconfiança dos humanos em geral. Assim se refere Kehinde: “Na minha convivência com os brancos e mulatos, vi que nem todos eram maus, que existiam os de bom coração e até mesmo os que eram contra a escravatura, mas não haveria como separar uns dos outros”. (2015, p. 503).

Considerações finais

Notamos, pois, ao longo de todo o romance, o empoderamento de Kehinde. Um empoderamento não só individual, mas, por ser mulher negra, coletivo. Posições como essas – colocar o sujeito negro no centro da narrativa -, no caso do romance de Ana Maria Gonçalves, uma mulher, vão afastando tais sujeitos negros daquela sensação de inferioridade da qual Frantz Fanon nos fala em Pele negra, máscaras brancas. Assim, nos encaminhando para o final desse trabalho e, paralelamente, para o final da narrativa em análise, vamos percebendo que não é em tom de inferioridade que Kehinde interrompe a sua história, mas, com esperança de encontrar o filho desaparecido; recuperando o símbolo que os abikus representam para a sua gente; travando diálogo com esse filho, e mais que isso: deixando entrever uma certeza de que ele acreditará nela.

Vou procurar por ele no Orum, pois acho que a minha culpa por ter tirado a vida dele já foi expiada há muito tempo. E ele ainda prejudicou você, te afastando de mim, dificultando a sua vida por causa das decisões erradas que eu tomava, às vezes, até sem saber por quê. Será que isso explica nossos desencontros? Será que você acredita em tudo que acabei de contar? Espero que sim, e fico até pensando se não foi mesmo o melhor para você. Quanto a mim, já me sinto feliz por ter conseguido chegar até onde queria. E, talvez, num último gesto de misericórdia, qualquer um desses deuses dos homens me permita subir ao convés para respirar os ares do Brasil e te abençoar pela última vez. (p. 947).

Dessa forma, Kehinde, ao se dirigir, por meio da escrita, ao filho pelo qual busca, estabelece uma espécie de “diálogo a três”, já que recupera a lembrança do primeiro filho, o qual, por ser abiku, morreu ainda criança. Além disso, a escrita de Kehinde é um exercício memorialístico. Ela desempenha uma dupla função: relatar tudo ao filho cujo encontro ela anseia desde iniciar a narrativa, o que a motiva a vir novamente para o Brasil, dessa vez por conta própria, impelida pela busca de uma identidade não mais reconhecida em África, mas na terra onde se encontra seu primeiro rebento vivo; e registrar – no sentido de guardar afetivamente – os acontecimentos de uma vida cheia de percalços, mas também repleta de realizações, o que a protagonista deixa entrever em “Quanto a mim, já me sinto feliz por ter conseguido chegar até onde queria.” ( 2010, p. 947). Kehinde escreve para não morrer, para que a memória não morra – como bem ilustraram trechos que apontamos anteriormente. O final do livro, que é narrado em 1ª pessoa, evidencia essa não morte. A história não é concluída, é antes, interrompida. Mas que a experiência permitiu a Kehinde sentir que o fim da sua vida está próximo, em circunstâncias semelhantes nas quais inicia a narrativa: em viagem para o Brasil, novamente sozinha, em trânsito, em transe.

Assim, temos em Um defeito de cor – a mais longa narrativa da Literatura Negra no Brasil – um lugar reservado ao sujeito feminino, que, a despeito das agruras pelas quais passou, obteve êxito. Nele, Ana Maria Gonçalves não exalta a mulher negra a um ponto idealizado, antes a humaniza. Se Kehinde não parece ser simpática a heroísmos, sempre relativizando as ações humanas, compreendendo, julgando, ponderando, tampouco ela o desejaria para si. Na relação autoria/obra, percebemos a relevância de um romance dessa magnitude. Ele vem ajudando a preencher as lacunas deixadas na Literatura Brasileira no que diz respeito ao negro, sobretudo à mulher negra. Como lembra Spivak, “se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade”. É assim que devemos ler Um defeito de cor: uma obra de fôlego, escrito por uma mulher negra brasileira que tem muito o que contar.

Referências

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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.


Notas

[1] Abiku: “criança nascida para morrer”.

[2] De agora em diante, ao fazermos citações desse romance, poremos apenas o ano da publicação do romance e a página.


Sobre o autor

* Alexsandro Batista de Oliveira é Professor de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino do Ceará, Graduado em Letras/Português, Universidade Regional do Cariri – URCA, Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil. Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.