Ogum’s Toques Negros
um novo caminho para a escrita afrodescendente

Pedro Henrique Silva*

Eu Falo
A minha fala é um falo
Que atravessa suas certezas culturais.

Miriam Alves
2014

 


Mesmo que a história literária e a maior parte do mercado editorial não queiram registrar, “Existe sim uma Literatura afro-brasileira!”. Com autores e pontos de vista próprios, essa forma de expressão artística constitui um projeto que visa um público e – principalmente – zela pela manutenção e (re-)significação da afrodescendência no Brasil. Assim, por meio da literatura, parte da memória negra se preserva à revelia do discurso histórico oficial.

Eis que nesse embate discursivo, os afrodescendentes vêm aos poucos construindo lugares alternativos para sua enunciação. A coletânea poética Ogum’s toques negros surgiu nas redes sociais e seus posts, em aparições quase diárias, ganharam notoriedade, o que culminou no lançamento, no início de 2014, do primeiro volume da coleção. Sob o axé de Ogum, o grupo tem no veículo impresso a abertura de novos caminhos. Organizado por Guellwaar Adún, Mel Adún e Alex Ratts, a obra conta com autores experientes como Miriam Alves, Éle Semog e Lia Vieira, além de outros recém-chegados a essa seara, como Gabriela Ramos, Júlia Couto e Ari Sacramento.

Tomados pelo mesmo intuito, o volume nos faz rememorar a coleção Cadernos Negros, que desde 1978 publica anualmente contos e poesias de autores negros, o que vem contribuindo para a transformação da maneira de se pensar a negritude no Brasil. Como numa irmandade, escritoras e escritores que fazem parte da série organizada pelo grupo Quilombhoje, somam forças para a construção desta recente antologia publicada pelo coletivo soteropolitano. Com isso vê-se que, apesar dos veículos e aparelhos oficiais, negros, gays, mulheres e outras minorias sociopolíticas se articulam e elaboram novas fontes de resistência. Quanto a isso vale destacar o poema “Oin” de Mel Adún:

Não se iludam com a doçura do nome; 
Sou oxê bilaminado 
Alcançando a garganta dos que lutam 
Pra manter o status quo. 
O contorno do agadá de meu guerreiro. 
A seta certeira do arqueiro. 
Nos dias de ouro renasço redonda. 
Dourada. 
Sou peixe pequeno beliscando a barra da saia 
Correnteza. 
Nesses dias... 
Adoço-me. 
                     (ADÚN; ADÚN; RATTS, p. 151)

Se a memória de uma nação se constitui por meio de disputas, conforme ressaltou Michael Pollack, tem-se, nos versos da poeta, um exemplo da tensão entre a “história oficial” e a “história subalterna”. Mel Adún evoca o axé dos seus ancestrais para que eles a acompanhem em seu projeto de tensionamento do status quo; este é construído na sociedade por meio de formuladores de sentido como a Academia, a grande mídia e também por expressões artísticas como a literatura que por muito tempo prescreveu que os negros devessem ocupar seus devidos lugares. Dessa forma, a literatura afro-brasileira é o oxê de Xangô, o agadá de Ogum e o ofá de Oxossi. Enquanto Xangô é o orixá responsável pela prevalência da justiça, que permite que o negro retome o lugar que lhe fora negado; Ogum se impõe, fazendo dobrar seus inimigos e forjando novos caminhos; já Oxossi, com suas setas, inicia a caça e, nesta empreitada, regressa trazendo fartura, bonança para o banquete dividido entre seu povo.

Assim, Ogum’s toques negros oferece uma nova possibilidade estética, um outro caminho para a produção de afrodescendentes. Uma coletânea que soma e amplifica as vozes dos negros, mulheres, iniciados ao candomblé, e homossexuais, numa composição que, ao evocar seus ancestrais e os dramas atuais de seus pares, aponta para uma arte eticamente compromissada com a sociedade, e engajada com a restituição dos direitos que se concentram em poucos e até então solidificados estratos sociais.

Com isso, cabe ao leitor saudar o guerreiro que abre os caminhos e vence demandas e traz ao campo literário esse primeiro volume do grupo Ogum’s toques negros. Oxalá queira (e oxalá aconteça) esta coletânea tenha tanto fôlego quanto sua predecessora. Iuná Kubanga Kuta Kueto Nkosi!1

Nota

1 Nkosi, aquele que briga por nós! Nkosi é um Nkisi da mitologia Bantu que tem sua imagem comumente associada à representação do orixá Ogum. (Tradução do autor).

Referências

ADÚN, Guellwaar; ADÚN, Mel; RATTS, Alex (Org.). Ogum’s toques negros: coletânea poética. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2014.

DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento e Silêncio”. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2013.

PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

___________________________________

* Pedro Henrique Silva é professor, Graduado em Letras e Mestre em Educação pela UFMG. Como pesquisador, integra o NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinas da Alteridade, da FALE/UFMG.