Intelectuais negras: de quem elas falam e para quem elas falam?

Jéssica Correia de Oliveira*

 

A prosa dessas intelectuais
é atravessada por um aspecto
político que anseia por
transformações na realidade.

                                                                                         Mirian Cristina dos Santos
2018

 

Em Intelectuais negras: prosa negro-brasileira contemporânea, Mirian Cristina dos Santos exerce o seu lugar de fala para demonstrar com clareza e objetividade o papel transformador que as escritoras negras exercem em uma sociedade que ainda apresenta inúmeras disparidades quando se abordam questões étnico-raciais, de classe e de gênero.

Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora, a autora tem se dedicado a estudar temas como relações étnico-raciais, estudos de gênero, produções literárias de autoria feminina, literatura negro-brasileira, com ênfase na contempora-neidade. Intelectuais negras faz uma leitura instigante da contribuição que essas escritoras têm para a sociedade, a partir das obras de Miriam Alves, Conceição Evaristo e Cristiane Sobral, elucidando os temas comuns em suas escritas e, por conseguinte, a importância que carregam ao levantar as várias problemáticas vivenciadas pelas mulheres no cotidiano.

O primeiro capítulo, “Políticas da Afetividade na Prosa de Mirian Alves”, é dedicado às análises do volume de contos Mulher Mat(r)iz e do romance Bará, na trilha do vento, que tem o binômio afetividade/violência como aspectos principais a serem analisados. Já o segundo capítulo, “Políticas do Cotidiano na Prosa de Conceição Evaristo”, ao analisar as obras Becos da Memória e Olhos d’água, discorre sobre o espaço que as mulheres negras ocupam, seja ele público ou privado, além dos temas como feminismo, violência sexual, física e de gênero, acontecimentos presentes na realidade dessas mulheres.  

Por último, mas não menos importante, Mirian Cristina dos Santos disserta sobre a significativa contribuição de Cristiane Sobral para entender melhor as temáticas que envolvem o corpo da mulher negra. O capítulo “Políticas do Corpo em Cristiane Sobral” aponta para as narrativas presentes em Espelho, miradouros, dialéticas da percepção e O tapete voador, abordando questões que envolvem colorismo, segregação social e suicídio, mostrando como Sobral colabora para descontruir a imagem já preestabelecida do corpo negro e, com isso, trabalhar a valorização da estética negra na sociedade.

No primeiro capítulo, o estudo reflete sobre as formas de violência experienciada diariamente por mulheres negras. Mirian parte da ficção para demonstrar como elas, ainda que sejam independentes, sofrem em uma sociedade que coloca o homem em uma posição superior, e, como isso, abre margem para se pensar em um feminismo que seja capaz de atender às demandas diferentes da realidade das mulheres brancas. Outrossim, Mirian Cristina mostra como o racismo à brasileira, termo utilizado repetidas vezes durante a obra para mencionar o racismo silencioso existente no Brasil, aparece no texto de Alves em diversas situações. Nessa linha, discorre sobre temas como suicídio, assassinato, solidão feminina e a forma positiva com que as mulheres surgem na prosa de Alves. Já nas primeiras páginas é possível perceber o quanto a ensaísta pontua o trabalho significativo da autora ao levantar tais questões.

Em “Políticas do Cotidiano na Prosa de Conceição Evaristo”, Mirian Santos também envereda pelo tema da violência. Tendo a favela como espaço central, destaca como Evaristo coloca em questão a ocupação das mulheres negras em espaços públicos e privados. Se no capítulo anterior reflete como o racismo e o machismo são encenados, neste, por sua vez, é possível ver como a ensaísta evidencia a pobreza e a violência como sustentáculo para exclusão social denunciada nas obras de Evaristo. E destaca o potencial transformador da escrevivência evaristiana como crítica do sistema.

Em “Políticas do corpo”, a autora penetra na obra de Cristiane Sobral para analisar a construção literária do corpo negro em que contrapõe o preconceito hegemônico à valorização da estética negra. O estudo mostra como este corpo é colocado por ela como um lugar de força, de resistência, e, consequentemente, um espaço político, apesar de socialmente marginalizado, segregado, visto como sujo e feio. O trabalho de Mirian demonstra de maneira certeira as contribuições de Sobral para se pensar o corpo negro para além dos estereótipos estabelecidos na sociedade.

Escrever e publicar para mulheres negras é um ato político (EVARISTO, 2017). E é nesse sentido que a obra de Mirian Cristina dos Santos nos traz pontuações conhecidas, mas diante de uma exposição resoluta, de fácil compreensão e muito bem organizada sobre as intelectuais negras na contemporaneidade. Ao ler o livro, pode-se perceber o quanto as tais figuras são peças essenciais na transformação social, e o quanto é importante reconhecer o trabalho delas para desconstruirmos todos os padrões que marcam negativamente a trajetória das mulheres negras. Com o trabalho da autora, é possível ver o quanto a escrevivência das mulheres negras fortalece as suas ancestralidades, torna a literatura um espaço para se repensar as condições sociais em que elas estão inseridas e, sobretudo, o quanto o lugar de fala se faz importante nessa questão.

Belo Horizonte, março de 2020.

 

Referência

SANTOS, Mirian Cristina dos. Intelectuais negras: prosa negro-brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Malê, 2018. 


* Jéssica Correia de Oliveira é graduanda em Letras, Português e Espanhol, pela UFMG. É pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – desta Instituição.


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