Gênero e violência na literatura afro-brasileira

Constância Lima Duarte *

 

Em 1992, 4.531 mulheres foram vítimas de violência em Minas Gerais.
Que sociedade é essa, que não pode garantir que a mulher viva em paz com seus filhos?
Que amor é esse, que mata em nome da honra?
Que igualdade é essa, que obriga a mulher a conviver com tanta dor, tanto ódio, tanta humilhação?
Denuncie toda e qualquer forma de agressão à mulher.
CHEGA DE VIOLÊNCIA, CHEGA DE IMPUNIDADE.

(Cartaz do Conselho Estadual da Mulher de MG)

 

Já há algum tempo, quando leio escritos de autoria feminina, reparo que raramente eles tratam da questão que me parece a mais urgente, a mais premente, que nenhuma mulher pode ignorar. Onde estão as marcas literárias da violência a que cotidianamente as mulheres são submetidas? Onde, as dores do espancamento, do estupro, do aborto?

Na vida – nesta que fica aquém da literatura – tais dores são comuns. Não passa uma semana sem que os jornais noticiem a morte de mulheres assassinadas pelo companheiro, vingativo ou enlouquecido de ciúmes. Não passa um dia sem que uma mulher seja espancada, sangrada, violada, apenas por ser mulher. E não me refiro só à violência física que deixa marcas visíveis no corpo. Também as outras, a humilhação, a ofensa, o desprezo, marcam, doem, e são cotidianas.

Nunca concordei inteiramente com a afirmação de Bourdieu, de que a violência simbólica se ‘constrói através de um poder não nomeado’, que ‘dissimula as relações de força’. Ora, tal poder tem nome, e ele é machismo. E as relações de poder, do macho sobre a fêmea, estão bem visíveis nas relações sociais de gênero.

Também questiono sua explicação simplista de que a dominação masculina se perpetua porque as mulheres naturalmente a aceitam. Ao invés de buscar a explicação da conduta agressiva no próprio agressor, e o porquê das categorias sociais estarem tão assimiladas ao masculino, parece mais fácil vitimizar, mais uma vez, a vítima.

E a resistência das mulheres, onde fica? Para Michele Perrot (1988), no próprio relacionamento a dois as mulheres encontram espaço para se impor, relativizando o poder do homem e a idéia de ‘dominação universal passiva’.

Na verdade, submissão e resistência sempre fizeram parte da vida das mulheres, mesmo agora, quando o cotidiano é invadido por notícias de espancamentos, assassinatos, abortos clandestinos, jovens vivendo décadas enterradas em porões, à mercê da sanha animal de um homem. Por alguns dias, notícias assim provocam espanto entre os leitores. Mas logo são esquecidas até que surjam novas elizabeths, marias, não importa que nome tenham. É a força do patriarcalismo que a tudo supera. É a realidade sendo mais impactante e surpreendente que a ficção de nossas escritoras.

Falei em resistência, e é preciso não esquecer do que tem sido feito para o enfrentamento do machismo. Quando o 8 de março se tornou dia de festa, foi criado o 25 de novembro – o Dia Latino-Americano de Combate à Violência contra a Mulher –, puro pretexto para grupos de mulheres juntarem suas forças e repudiarem toda e qualquer forma de agressão – física, sexual ou psicológica. E divulgarem estatísticas, artigos e reportagens, endereços de delegacias e de abrigos, na esperança de um dia mudar tal situação.

E foi participando um pouco de tudo isso que me dei conta, enquanto lia a literatura de autoria feminina, da ausência dessa dor. E uma pergunta me perseguia: por que as escritoras não falam dessa realidade? Não quero generalizar. Claro que há narrativas que mencionam ‘maridos brutos’, numa velada referência ao abandono e à violência doméstica; e, aqui e ali, há denúncias de assédio sexual contra operárias pobres, como as que Pagu realiza em Parque Industrial. As escritoras de antigamente lidaram melhor com a violência simbólica, daí tantas representações de desamor, solidão, auto-conhecimento, busca de identidade, descoberta da sexualidade…

Até que conheci os Cadernos Negros, e o que era exceção tornou-se quase uma temática recorrente. A partir de uma perspectiva étnica, de classe e feminista, algumas escritoras realizam – com competência e sensibilidade – agudas releituras da violência, expondo sem melindres personagens-chagas do cotidiano feminino.

Os Cadernos Negros é uma publicação coletiva de um grupo de escritores afrodescendentes, que vem a público anualmente, desde 1978. No ano passado, foram comemorados trinta anos (trinta números!) que representam um marco de grande significado para a literatura afro-brasileira. Como contos e poemas se alternam, são quinze números dedicados à narrativa curta, que é o que me interessa no momento.

Após rápido levantamento, pode-se verificar que há bem menos escritoras que escritores nos Cadernos; e que elas nem estão em todos os números. Ao todo, são cinqüenta e seis contos, assinados por quinze autoras. Dentre os nomes mais freqüentes, lembro Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Lia Vieira, Miriam Alves, Sônia Fátima da Conceição e Vera Lúcia Barbosa, entre outras.

Para ilustrar a representação da violência familiar e doméstica, a partir das imbricações de gênero, classe e etnicidade, tomo como objeto a obra de Conceição Evaristo, que, a meu ver, contém as marcas identitárias de mulheres que estão reescrevendo a história literária brasileira.

O corpus não é extenso: nove contos. Mas a densidade literária de que estão investidos, a carga poética e ao mesmo tempo dramática que exalam, a história que se fragmenta; tudo isso somado à voz essencialmente feminina que assume a narrativa, revelam um projeto literário que parece tomar fôlego novo a cada texto. Há uma coerência estética entre as narrativas, pois, mesmo nas cenas de maior violência e degradação humana, em que o registro varia entre realista, crítico e intimista, ocorre o equilíbrio entre a intenção documental e a sugestão de estados líricos.

O primeiro conto, “Di Lixão” (CN 14, 1991), tem o foco na história de um garoto de rua. Em cinco outros, as protagonistas são mulheres: “Maria” (1991); “Duzu-Querença” (CN 16, 1993); “Ana Davenga” (CN 18, 1995); “Quantos filhos Natalina teve” (CN 22, 1999); e “Beijo na face” (CN 26, 2003). Tem ainda “Olhos d’água” (CN 28, 2005), “Ayoluwa, a alegria do nosso povo” (CN 28, 2005), e “Zaita esqueceu de guardar os brinquedos” (CN 30, 2007), que se assemelham à prosa poética, tal a leveza das imagens e o tom lírico que sustenta a narrativa. Mas, insisto, mesmo quando a autora pontua poeticamente passagens mais brutais, o leitor recebe o impacto que vem da violência urbana. Dessa forma, os textos revelam a consciência de pertencimento a um grupo social oprimido, que tem na pele a cor da exclusão, e está presente em cada personagem.

Não importa se criança, dona-de-casa, empregada doméstica ou mulher de bandido: a angústia e o profundo sentimento de injustiça são os mesmos e se repetem, se repetem, se repetem. A competência de Conceição Evaristo para mergulhar fundo no pensamento e na ação do oprimido, e construir sua ficção- verdade, pode ser verificada não apenas em seus contos, mas também nos poemas e romances que já publicou. Aliás, mais de uma vez, ela afirmou que a gênese de sua escrita está no acúmulo de tudo que ouviu e viveu desde a infância. Cito:

Na origem de minha escrita, ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para as outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres! [...] Venho de uma família em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeira a dos patrões, depois a dos homens, seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam um mundo próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e, mormente, para apoiá-los depois. Talvez por isso, tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto sobre isso, não afirmo. (2007, p. 20).

E foi a partir dessas reflexões que surgiu a idéia de “escrevivência’” – escrever a existência –, meio conceito, meio desafio para o eu lírico transcender o biográfico, e se colocar na base da escrita desta mulher madura, lúcida e solidária: “Foi daí, talvez, que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita. É preciso comprometer a vida com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida?” (2007, p. 17 e 21).

Vejamos rapidamente cada conto.

Nas poucas páginas de “Di Lixão”, temos o quase-drama de um jovem, filho de prostituta, sem pai, nem nada de seu, que vive nas ruas e dorme num quarto- marquise. O cotidiano de violência, as dores que o perseguem todo o tempo, marcam também sua morte.

Sentiu vontade de mijar. Quando ele era pequeno mijava nas calças. Sua mãe lhe batia sempre por isso. Um dia ela, numa crise de raiva, ao ver o menino todo ensopado de mijo, puxou a bimbinha dele até quase arrebentar. E dizia para ele aos berros que aquilo era para mijar, para mijar, mijar, mijar… (CN 14, p. 10).

Para melhor acomodar a dor, Di Lixão se enrola feito feto, como se buscasse outra vez um útero. O ‘efeito único’, tão exigido por Allan Poe, se realiza neste conto de forma surpreendente: é a morte que vem abraçar o menino, e protegê-lo da dor e da solidão.

Em “Maria”, a violência explode na seqüência de gestos, atos e palavras, e se paralisa na imagem da mulher linchada sem direito à defesa. Cito: “Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida”. (CN 14, p. 14) “Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado”. (CN 14, p. 15).

“Duzu-Querença” é uma narrativa de formação. Nela, acompanhamos o crescimento da menina, como empregada do bordel, a descoberta do segredo dos corpos suados, a vida prostituta, até a entrega à loucura, na tentativa de reinventar a vida através de papéis picados e coloridos. Duzu “acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida”. (CN 16, p. 33).

Já o conto “Ana Davenga” se constrói a partir de flashbacks, suspensões de tempo, e o clima permanente de mistério. A voz narrativa é feminina e fala de dentro dos sentimentos e das apreensões da personagem. A história de Ana só difere das demais porque é dada a ela a opção de traçar seu caminho, de escolher o homem, de se rebatizar. Cito:

Ana estava feliz. Só Davenga mesmo para fazer aquilo. E ela, tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento. (CN 18, p. 25).

O desfecho violento já vinha anunciado nas entrelinhas da narrativa. Assim, quando a polícia entra no barraco e metralha os dois ainda na cama, acabando com uma tênue promessa de futuro para eles, quase não surpreende o leitor. Fica a beleza do botão de rosa se abrindo na manhã seguinte, quando não havia mais vida no quarto.

Até então, todos os contos de Conceição Evaristo terminaram em morte. O primeiro a romper tal determinismo é “Quantos filhos Natalina teve?”, apesar de, também aí, morte e violência marcarem presença. A cena do estupro, por exemplo, é contundente. Cito:

O homem desceu do carro puxou-a violentamente jogou-a no chão; depois desamarrou suas mãos e ordenou que lhe fizesse carinho. Natalina entre o ódio e o pavor, obedecia a tudo. Na hora, quase na hora gozo, o homem arrancou a venda dos olhos dela. Ela tremia, seu corpo, sua cabeça estavam como se fossem arrebentar de dor. A noite escura não permitia que divisasse o rosto do homem. Ele gozou feito cavalo enfurecido em cima dela. (CN 22, p. 28).

Quase contraditoriamente, será a semente deste estupro que ela transformará no filho bem amado, depois de tantos que rejeitou.

Também o conto seguinte, “Beijo na face”, não termina em morte, apesar de seu fantasma atravessar a narrativa. Salinda, a personagem, mãe com filhos pequenos, vive sendo ameaçada e vigiada pelo marido, que transforma a vida conjugal num inferno. Cito:

Das perguntas maldosas, feitas de maneira agressiva, surgiu uma vigilância severa e constante que se transformou em uma quase prisão domiciliar. Ela respondeu com um jogo aparentemente passivo. Fingiu ignorar. Era apenas estratégia de sobrevivência. (CN 26, p. 15-6).

A resistência de Salinda se constrói como a do equilibrista, que sente “o gosto de morte na boca”, se recupera e busca “o sabor da vida”. Mesmo sabendo os riscos que corria, ela se apaixona e tem encontros amorosos com uma amante. “Havia dois tempos fundamentais na vida de Salina: um tempo em que o marido estava envolvido e cada vez mais se diluía e o tempo em que o novo amor se solidificava”. (CN 26, p. 14).

Termino com “Olhos d’água”, “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, e “Zaita esqueceu de guardar os brinquedos”. O primeiro é pura prosa-poética de louvor à figura materna, cuja força são como elos de amorosa dedicação, que atravessa gerações, de mãe para filha. A cor dos olhos da mãe guarda a ancestralidade da dor, do pranto, e da resistência feminina. Cito:

E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi? 
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de mamãe Oxum. (CN 28, p. 33).

Em “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, temos o resgate de uma sabedoria ancestral que se manifesta não só através de nomes africanos – como Ayoluwa, Amina, Masud, Malika, Sele e Bwerani – como da narrativa construída feito lenda, que, ao final, apresenta a esperança de novos tempos e nova atitude perante a vida, através do nascimento de uma mulher. Cito:

Quando a menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos. Há muito que em nossa vida tudo pitimbava. Os nossos dias passavam como um café sambango, ralo, frio, sem gosto. Cada dia sem quê nem porquê. E nós ali amolecidos, sem sustância alguma para nos deixar de pé. Repito: tudo era uma pitimba só. [...] E então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejos para os nossos corpos. (CN 28, p. 35).

E em “Zaita esqueceu de guardar os brinquedos” tem lugar, mais uma vez, um quase-drama do cotidiano das favelas brasileiras, em que crianças são vítimas de balas perdidas. A ficção se alimenta do mundo real, ao mesmo tempo refletindo-o e reinterpretando-o, de forma breve, intensa e sintética.

Assim, os contos de Conceição Evaristo parecem trazer a expressão de um novo paradigma. Escrita de dentro (e fora) do espaço marginalizado, a obra é contaminada da angústia coletiva, testemunha a banalização do mal, da morte, a opressão de classe, gênero e etnia, e é porta-voz da esperança de novos tempos.

Nesta tríade – classe, gênero e etnia – residem provavelmente as bases para a leitura da ‘segunda história’ que subjaz cada conto, lembrando aqui a formulação teórica de Piglia sobre o conto moderno, que guardaria a chave de seu significado. A literatura de autoria assumidamente negra – como esta, assinada por Conceição Evaristo – ao mesmo tempo projeto político e social, testemunho e ficção, está se inscrevendo de forma definitiva na literatura nacional.

Referências:

ARRUDA, Aline Alves. Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um bildungsroman feminino e negro. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Künnher. São Paulo: Bertrand Brasil, 1999.

Cadernos negros, números 14, 16, 18, 22, 26, 28 e 30. 

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe; um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

STREY, Marlene Neves. Será o século XXI o século das mulheres? In: Construções e perspectivas em gênero. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2001.

PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 2 ed.  Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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* Constância Lima Duarte é professora da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA e ao Centro de Estudos Literários e Culturais – CELC, desta instituição, além de coordenadora do grupo interinstitucional de pesquisa Mulheres em Letras. É autora, entre outros, de Nísia Floresta, vida e obra (2.ed., 2008), Dicionário de escritores mineiros (2010) e Imprensa feminina e feminista no Brasil, dicionário ilustrado (2016). Além de organizar inúmeras publicações, é responsável pelo resgate e reedição do livro pioneiro de Nísia Floresta Direitos das mulheres e injustiça dos homens (3. ed., 1989).

 

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