Prefácio de Negra Efigênia, paixão do senhor branco

Eduardo de Oliveira

Anajá Caetano, autodidata que se envereda pelos ínvios caminhos das “belas letras” mais por vocação que mesmo por força de eventual diletantismo, inicia a sua vida literária com uma genial e bem-sucedida tentativa de reconstituição histórica por meio do romance.

Pelo visto, não será este livro a sua última obra; contudo há de ser o que melhor manifesta a sua verve criadora e a sua vigorosa tendência de esteticista irrequieta e temperamental.

Negra Efigênia, paixão do senhor branco, por si é a afirmação eloquente do que acabamos de ponderar; é a obra com a qual, aliás, Anajá Caetano estreia auspiciosamente no mundo das letras.

Retrata, com possível fidelidade em tais circunstâncias, todo um panorama político, social, econômico e religioso da época da fundação da cidade de São Sebastião do Paraíso, do interior do Estado de Minas Gerais, ali pelos princípios do século passado, citando com graça e vivacidade de espírito episódios e personagens; a atmosfera de luta e disputa de prestígio desencadeada entre os Maciéis, representando estes o nativo, contra os portugueses da metrópole, nas pessoas dos Barreiros, evidenciou aquele “caldo de cultura” sob cujo elemento ideal iam se plasmando, lentamente, os anseios de independência e de liberdade do povo brasileiro.

Sem qualquer preocupação de apresentar-nos um trabalho unicamente de tese, o livro de Anajá Caetano, entretanto, é bem entremeado de passagens, que, no mais das vezes, registram todo aquele sabor, aliás, muito ao gosto da natureza mística do negro, e que, nos instantes da sua exteriorização, escorria dos diferentes rituais ou cultos religiosos de procedência africana, denso e fecundo, cristalizando suas formas “negrificadas” em soluções sincretistas, hoje incorporadas inteira e definitivamente à beleza coreográfica do nosso bonito, original e opulento folclore.

Com pena ágil e nervosa, logra a autora reconstruir, num rasgo de rara felicidade e lucidez, todo aquele clima vivido entre o senhor e o escravo, entre os homens de Coroa e os da Colônia, entre os portugueses e os nativos, com tal exatidão e equilibrado senso artístico, que os exageros que comumente emprestam a estes tipos de literatura um colorido peculiar e fascinante – naturalmente facultado pela ficção – se tornaram desnecessários. Assim é que Anajá Caetano, com este romance, revelou-se, de pronto, uma escritora de talento invejável, cujos méritos de criar ficção histórica se confirmarão ao longo do tempo. Com este trabalho, fica-lhe assegurado um lugar de destaque entre os que melhor fizeram deste gênero um motivo de afirmação literária e uma fonte de manifestação estética; este romance de costumes recorda-nos Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, e tantos outros, pelo que nos é lícito cognominá-la de a “romancista dos escravos”.

Em Negra Efigênia, paixão do senhor branco é nos permitido, de início, vislumbrar vasta e grandiosa paisagem por vezes patética de desconcertante, brutal e inumana, mas sempre enriquecida por conteúdos líricos da vida brasileira em que os escravos, no seu labor inútil, deveras espantoso, relembravam as gravuras de Holbein, reproduzindo quadros da velha França feudal, de lavradores a conduzir charruas pelos campos verdes, ligeiramente excitados pelo vigor poderoso do outono para as quais George Sand, a baronesa Dudevant, endereçava sentidas e comovedoras palavras.

[...]

Profundamente exatos e terrivelmente dolorosos os acontecimentos narrados por Anajá Caetano acerca da vida dos escravos ao sopé das “Casas-Grandes”, dentro e ao redor das senzalas, na labuta dos campos e nos suplícios dos troncos instalados nas glebas de cultivo, à maneira de sinistros pelourinhos.

Coronel Galdino, dona Sinhá e capitão João encarnam bem o papel do “homem rico”. Tião, Bendita e negra Efigênia o dos “Homens de Trabalho” de que nos fala, com tamanha amargura, a autora de Valentina, Lúcia Aurora Dupin.

Carece dizer que há ainda os personagens que simbolizam a virtude sem mácula, o bom senso, enfim, o lado humanitário das criaturas perdidas nos socavões da vida e que, na arguta criação de Anajá Caetano, estão espiritualizadas nas figuras corajosas e obstinadas do padre Thomás, Antônio Bento e capataz Juliano. Romance assim escrito com tal força, cujos ingredientes são as próprias precariedades contidas nas vicissitudes humanas, está fadado a calar fundo nos corações e na inteligência dos homens esclarecidos da nossa Pátria. Talvez Anajá Caetano, na sua pureza e simplicidade, não desejasse tanto. Daí a razão por que não encontraremos nas páginas de Negra Efigênia, paixão do senhor branco aqueles salpicos de sarcasmo nem a mais leve galhofa, com intuito de abrandar as duras e verrumosas descrições do romance, mesmo porque a época por ela focalizada não era para brincadeiras. Contudo, o leitor há de encontrar aqui e ali despretensiosos laivos de ironia, quase imperceptíveis, delicados, sutis mesmo, com que a autora, na sua singeleza, pretendeu atenuar a intensidade dramática a que os leitores estariam sujeitos a experimentar.

Além do que, nos seja justo ressaltar, há nas páginas, impregnadas de dor e de esperança, uma sublime mensagem de otimismo e de fé nos destinos da Humanidade, a atuar, por assim dizer, como um convite à meditação, excitando as gerações dos nossos dias.

O importante desta verdade, porém, é que saibamos interpretá-la diante da grandeza do momento histórico que atravessamos, oferecendo-a ao povo, tangido pelas suas aspirações de luta, de justiça e de progresso, abalado e estremecido que está, pelas mais saudáveis inquietações patrióticas.

Que se não configure nem se confine, por conseguinte, o grito desesperado da Negra Efigênia, paixão do senhor branco, nos estreitos limites de uma denúncia sem objetivos ou sem remédio.

É escusado dizê-lo. Enquanto houver um dos componentes da nossa comunidade, cuja sua imensa maioria permaneça excluída do contexto nacional, por força do analfabetismo que lhe acarreta, entre outros males, a sua falta de qualificação, a sua baixa renda “per capita”, o seu desestímulo à luta a ao labor edificante, o seu marginalismo, a sua miséria e a sua morte prematura, a voz das personagens a que se refere a romancista Anajá Caetano, que sofreram e batalharam com heroísmo e galhardia pela completa extinção do trabalho escravo em nosso País, continuará ferreteando a consciência coletiva dos homens desta Nação da América e a nossa sensibilidade de criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus.

(São Paulo, janeiro de 1966.)

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