Do retorno dos Afetos (ou Uma mão que escreve e seu corpo à volta)

 

Emerson Inácio*

 

“ Traz de volta as asas” é o verso que encerra “Thelêmica”, um dos poemas de amor e de dengo de Cidinha da Silva. Aliás, penso mesmo que o par que ilustra o título seja bem conseguido: são a síntese do resgate do afeto, cada vez mais raro na poesia brasileira mais contemporânea.

Poderia ainda me referir nesse prefácio de que há neste conjunto de poemas um certo aceno para a lírica amorosa, esta, sim, completamente démodé em tempos como os nossos. Atenta que é, Cidinha, como tantas outras pessoas que sentem - o mundo e neste mundo – parece aqui perceber o lapso que foi o abandono da poesia de amor, em favor de poesia de circunstância e referenciada, sempre bem vinda, claro, mas que muitas vezes peca por esquecer os bons afetos que nos invadem como pessoas que somos. Mas não se trata de um livro de poemas que se dedique unicamente ao canto de amor ou dos amores vários, mas um poemário que parece reclamar um lugar para o afeto no corpo, ele também matéria incomum na poesia dos últimos anos.

Como pessoa que lê o mundo – vide suas crônicas, suas intervenções diárias na web, seus outros livros – Cidinha, traz aos seus poemas aquela bem vinda coloquialidade que antes de ser defeito, é qualidade: um poema que fala tanto ao verso brasileiro, quanto aos leitores mais comuns, apenas porque demonstram uma experimentação humana, comum a tod@s que são human@s e que vivem, com intensidade, essa humanidade. Penso que Cidinha sempre fizera poemas, mesmo que deles nem tivesse se dado conta, apenas que de e com uma outra forma. Mas isso, deixo como provocação aos seus leitores!

Do mesmo jeito, ao trazer o miúdo da vida, a experiência da religiosidade, o corriqueiro do cotidiano, o futebol, a música que lhe entra pelos ouvidos para o poema, parece desejar Cidinha propor alguns deslocamentos: primeiro, na ideia corrente de sublime, tão apegada ainda às “grandes” apreensões do século XIX; numa outra pegada, ao propor uma lírica amorosa possível ainda - mesmo que vivamos tempos de afetos líquidos – o faz trazendo de volta suas musas, que, de fato, não é mais “aquela”, mas outra, afeita aos afetos femininos, às particularidades dos amores entre duas mulheres, “corpo vulcão” que mitiga dores e que sempre reclama pra si um poema. O terceiro passo: a leveza com que assinatura de uma poesia negra – de corpo e de mão – comparece nesse conjunto de poemas. Leve porque sem o excesso militante repetitivo que empobrece muitas vezes o poema, se torna ainda mais politicamente potente porque fruto de apuro, cuidado, de palavra acertada e escolhida.

Coisa de mineira, talvez!

O pessoal, de certo, é ainda bem mais político nos poemas de Canções de Amor e Dengo, apenas que agora muito bem revestido por outros suportes, dentre os quais aquele que se demarca na presença presente de um corpo que escreve e que se demarca em identidade textual, como bem vemos nas chaves de leituras oferecidas a nós, seus leitores, como epígrafe: “conheço bem o meu lugar de quilombola”!

Talvez aqui “o pulo do gato” (no caso, da gata), deste poemário de afetos: a pele preta, na sua natureza contemporânea uma pele política, associa corpo e ideologia, articula afetos e vivências em favor de um texto negro, que é texto de afeto e de atravessamentos construídos nas interseções apresentadas e poematizadas por Cidinha: um corpo negro, feminino, que sente em si não só as agruras do amor, mas também as demandas da vida cotidiana. O corpo que ama, sofre, sente e goza, também; celebra e manifesta as grandes energias da nossa matriz afro-brasileira, se despe no texto e se veste de linguagem a fim de demonstrar-se inteiro no poema.

A proposta nada tem de simples, mas pelo contrário: são poemas de vôos, da arte de ter asas e da engenharia de ser passarinho, pra aqui conversarmos com as Áfricas, aquelas mesmas sempre muitíssimo presente nesta que não é só e nem mais um Silva. A não simplicidade de que falo vem justamente do fato de que o manuseio da palavra tem nesses dengos: a gente olha e vê o simples, a singeleza das coisas e por isso, voamos!, vendo a partir de e através de!

E em voando com o poema, o poema voa também, tanto como leitura benfazeja, mas também pela agilidade da palavra pensada poeticamente por Cidinha: a rapidez que caracterizava a contista e cronista reaparece agora em nova roupa de rainha, oferecendo-nos um poema de acessibilidades, legível, firme e fluido, ao mesmo tempo, na sua capacidade de ser a vida cotidiana e o complexo da existência, e abrindo-se, assim, em asas pr@s leitor@s.

(Por que uso um @? Porque toda obra de Cidinha, até agora, ainda que marcada na sua, na minha e na nossa pele, no nosso corpo, nos nossos gêneros e nas nossas orientações amorosas, é, antes de qualquer coisa inclusiva, abraçante, envolvente!)

Ao fim, o que percebo – e falo desde a minha condição de leitor, apenas – que uma boa prosadora cedeu lugar, de vez (???) à uma tímida poeta – e à poeta ela mesma tímida. Daqui a algum tempo, a perda da timidez vai trazer-nos outros grandes poemas de Cidinha e levar a agora polígrafa autora a figurar, sem vergonha (com e sem hífen), entre a grande poesia mineira de que se faz e em que se apoia a boa poesia grandemente brasileira.

 

Rio / São Paulo, setembro de 2016.

 

Referência

 

SILVA, Cidinha da. Canções de amor e dengo. São Paulo: Me Parió Revolução, 2016.

* Professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), desde 2006; Livre Docente pela mesma IES (2016), com a tese Do corpo o canto, perfumada presença: o corpo, Fluxo-Floema e Novas Cartas Portuguesas, Doutor em Letras Vernáculas pela UFRJ (2006). Mestre em Letras e Graduado em Português-Literaturas pela UFF.


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