Libido, Dendê e Melanina

 

Florentina Souza

 

O livro do escritor baiano Hamilton Borges1, Libido, Dendê e Melanina apresenta um investimento do autor no tema do erotismo, pouco divulgado e estudado na literatura afro-brasileira e na literatura brasileira em geral. O erotismo esteve sim presente na literatura na modalidade oral e escrita, canônica ou não, porém sempre foi revestido de um moralismo cristão ocidental que tornava o tema parte de conversas e leituras privadas e cochichadas entre homens. Assim a literatura erótica se constituiu majoritariamente como produzida e consumida por homens que faziam do corpo da mulher mero objeto de seus desejos recônditos e inconfessáveis.

Santas ou putas, as representações das mulheres eram/são fixadas em estereótipos que jogavam luz sobre peitos, bunda e vagina; já outras representações, aliando o racismo ao sexismo, animalizavam/animalizam as mulheres negras, reduzindo-as a serviçais ou expressão de puro instinto sem qualquer racionalidade ou agência.

Libido, dendê e melanina procura romper com o paradigma de representação da mulher como objeto de desfrute dos homens; o escritor cria personagens negras que fogem dos padrões estabelecidos pelas sociedade tradicional. Rompem com qualquer naturalização do sistema binário sexual masculino feminino, buscam a satisfação de seus corpos desejantes e decidem assumir seus desejos, sua libido sem amarras ou fronteiras. As mulheres realizam fantasias que não se inscrevem na heteronormatividade naturalizada: quebram hierarquias, tomam a iniciativa nas propostas a parceiras e parceiros, descobrem e satisfazem a potencialidade de seus próprios corpos, assumindo papel explicitamente ativo no jogo erótico.

Sem pudores ou falsos moralismos, a sessentona Gabriela do conto “Amando Gabriela” ou a cinquentona do conto “Silenciar o texto” são representadas como mulheres negras fortes, agentes de seus desejos, curtem e exploram seus corpos negros e falam de suas experiências sem constrangimentos nem preconceitos. A evangélica Sara, de “Louvor e pecado são gozo” tenta resistir aos apelos do desejo, mas por fim assume: “Queria sentir seu corpo e queria se livrar da culpa que era mais mortal que a própria punição que adviria do pecado. Andou pela rua à procura de alguém específico, uma pessoa que poderia dar-lhe a senha para que ela se abrisse para sua própria vida que pulsava debaixo de suas carnes trêmulas”.

Já a Luanda do conto “Saída de emergência”, “almejava uma liberdade maior, prazeres impossíveis de sentir dentro do modelo de casamento estabelecido”; que para as mulheres significava compulsoriamente a heteronormatividade e a monogamia. Amora Dara, doutora e professora de dança, deseja meninos e meninas; Cris, nascido Cristiano, narra sua iniciação como travesti preta. Enfim, sem spoiler, a leitora/leitor descobrirá diversas e interessantes facetas da expressão desta fundante dimensão das pessoas humanas vivenciada nos contos por mulheres, gays e travestis.

Nesta galeria, as personagens discorrem sobre seus corpos, seus desejos e narram sem pudor suas experiências de desfrute de seus corpos e dos corpos de parceiras e parceiros. Conhecedoras/es de si, fazem de seus cabelos, cor de pele, boca, bunda, peitos, bucetas e paus, espaço de compartilhamento de tesão, de prazer vivenciado em mão dupla, para si e para a/o outra/o. escolhida/o por elas. Ao falar de prazeres e desejos, as personagens não deixam de sublinhar fortemente seu pertencimento étnico-racial e suas vinculações com as culturas negras. A leitora ou o leitor encontrará nos nove contos, a oportunidade de apreciar corpos que não silenciaram seus desejos nem estancaram o furor prazeres e falam de suas vivências eróticas de modo sensível ou escrachado, mas sem se submeter a dicções de controle de qualquer ordem.

Se os corpos negros são marcados por pedagogias que os aprisionam e impõem limites, autorizam ou proíbem; os corpos das personagens negras em foco, no auge do pulsar dos desejos, transgridem as imposições e se mostram livres e desapegados de padrões. Não têm a intenção de controlar o desejo ou o prazer, realizam suas fantasias como exercício de autoconhecimento. Como já o referi, todas e todxs são negras e negrxs e apreciam seus corpos, pertencem diversas classes sociais, diversas faixas etárias, diversas orientações sexuais; têm em comum o fato de serem personagens despudoradas que falam de tesão, gozo sem qualquer intenção de rebuscar a linguagem corresponder a padrões.

Expressões artísticas como a dança, a música, o candomblé, a literatura negra, inclusive a literatura erótica negra, permeiam reflexões ou comentários de personagens e fazem parte da construção do enredo e da atmosfera erótica. Os textos brincam com a leitora/leitor citando referências de produções de autoria negra contemporânea, misturando o ficcional e o documental2 - um exercício muito presente na literatura dos dias atuais.

Destaco ainda o teor crítico e metalinguístico do conto “Silenciar o texto” que descreve o processo de criação da personagem e sua concepção da literatura como grito de recusa e resistência ao silenciamento imposto diante das formas de violência, inclusive policial, ou da hipocrisia do academicismo. A narradora parece trazer a imagem da produção literária como parte do jogo erótico em que tesão e escrita se confundem e complementam-se: “sou uma tiazinha louca por sexo e eu trepo, meu amor. Escrevo e trepo, trepo e escrevo”. Ela fala de sua participação nas atividades de poesia de rua na cidade de Salvador, dos textos de escritores negros e escritoras negras contemporâneas, tornando a produção e apreciação literária e o jogo erótico um só ato de prazer.

A tradição literária contemporânea, de certa forma, tem quebrado o distanciamento do erotismo. Antologias de textos eróticos foram publicadas neste século, catalogando textos de séculos passados e do presente que se voltaram para exploração desse aspecto vital da humanidade - às vezes escamoteado e nem sempre assumido como tal. No campo da literatura afro-brasileira temos à disposição algumas antologias e textos literários, principalmente de autoria feminina que rompem com o silêncio sobre os desejos e a força das expressões do prazer da mulher negra3.

Escritos por um autor homem negro que investe em descrever e representar ações, sentimentos e pensamentos de pessoas que rompem com os limites impostos para o exercício da sexualidade, os contos aqui apresentados desenvolvem um concepção do erótico que evoca as palavras da estadunidense Audre Lorde; “erótico [é] um recurso que mora no interior de nós mesmas, assentado em um plano profundamente feminino e espiritual, e firmemente enraizado no poder de nossos sentimentos não pronunciados e ainda por reconhecer”. Temerosa do poder do erótico, a tradição ocidental hegemônica tentou rebaixá-lo e ignorar seu duplo teor de transgressão e produção de saber sobre os corpos e seus prazeres - sobre a nossa humanidade.

Ainda segundo Lorde, o erótico quando acatado, é sempre tradicionalmente dirigido à satisfação masculina; no tocante às personagens femininas negras elas comparecem como personagens secundárias, assexuadas (mães pretas) ou animalizadas (mulatas irrefreáveis). No entanto, compreendendo o erótico para além da sexualidade, Lorde aproxima-o de várias sensações humanas sem desprezar a possibilidade de compartilhamento entre pessoas Ela afirma: “A partilha do gozo, seja ele físico, emocional, psíquico ou intelectual, monta uma ponte entre quem compartilha e esse ponto pode ser a base para a compreensão daquilo que não se compartilha e diminuir o medo de suas diferenças.”

As personagens negras dos contos de Libido, dendê e melanina de Hamilton Borges juntam possíveis significados das palavras do título para construir textos que misturam sentidos, prazeres deslimites e identidades negras para compartilhar sensações. Não consideram a o desejo ou o prazer como infração ou pecado ou transgressão, pelo contrário, querem viver a plenitude do prazer solitário ou em parceria (s), pois acreditam que somente assim podem apreender a força vital humana; podem alcançar algum entendimento de si e da outra/outro.

Entendendo e explorando seus corpos e desejos, as personagens compartilham com leitoras e leitores uma compreensão do erótico na amplitude de sua diversidade e diferença.

Boa leitura!

 

Notas

1 Hamilton Borges publicou Teoria do fracasso, Salvador, Cidade túmulo e o Livro preto de Ariel, todos pela Editora Reaja.

2 As narrativas falam de músicas negras, de autoras negras como Elizandra Souza, Carmem Faustino, Raquel Almeida e escritores baianos como Davi Nunes, Fábio Mandingo e Hamilton Borges como partícipes da atmosfera erótica.

3 Refiro-me à antologia Além dos quartos: Coletânea erótica negra Louva Deusa organizada pelo Coletivo feminista negro em 2015 e ainda a textos de autoras como Elizabeth Bezerra, Mel Adun, Vania Melo, Priscila Santos Matos, Jeniffer Nascimento só para citar algumas.

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* Florentina Souza é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG e professora do Instituto de Letras da UFBA, com atuação nos Programas de Pós-graduação em Literatura e Cultura e Estudos Étnicos e Africanos. É pesquisadora do Centro de Estudos Afro-Orientais, onde edita com Jocélio Teles a revista Afro-Ásia. Autora, entre outros, de Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU (2005) e de Olhares sobre a literatura afro-brasileira (2019).

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