Homens Pretos (Não) Choram: a quebra de ciclos para novas formas de masculinidades e de existir
Kelvin Jorge Batista Silva*
Stefano Volp, capixaba de 34 anos, tem sido uma das vozes da geração mais recente de escritores brasileiros nos últimos tempos. Além de escritor, roteirista, tradutor e produtor editorial o autor se define principalmente como contador de história e, ao se designar desta forma, ele demonstra a sua ancestralidade e sua relação íntima com a escrita e contação. Em 2020, Volp publicou de forma independente seu livro de contos intitulado Homens Pretos (Não) choram e, a partir de seu lançamento, surge um livro de sucesso. Em 2022, o livro foi relançado em uma nova edição pela HaperCollins, agora possuindo um novo prefácio escrito por Jeferson Tenório, autor ganhador do prêmio Jabuti com o romance O Avesso da Pele (2020), além de receber também um endosso do artista Emicida na quarta capa do livro.
Homens Pretos (Não) Choram é um livro de contos incisivos e potentes que abordam os atravessamentos e vivências do homem negro contemporâneo no Brasil. Através de suas histórias, Volp realiza um aprofundamento na subjetividade das identidades negras masculinas que por muitas das vezes costumam ser negligenciadas, quando se trata da representação desses corpos no imaginário social que tendem a reduzi-los a estereótipos, seja na literatura, ou na visão hegemônica da sociedade perante os homens negros. Outro ponto importante da obra é como o autor traz em seus contos a diversidade e pluralidade das masculinidades negras ao abordar vidas que apresentam recortes de classe e sexualidade. Afinal, a representação do negro na literatura brasileira tida como canônica tende, em sua maioria, a trazer concepções básicas e rasas dos homens negros que, em muitas das vezes, são imagens de homens héteros e cis. Porém, nos seus contos, Volp traz a representação de parte dos homens negros da comunidade LGBTQIAPN+, tratando as suas realidades com leveza, naturalidade e espontaneidade, sem reduzir a personalidade e vida desses personagens em torno de suas sexualidades. É de suma importância lembrar que as masculinidades negras vão além da heterossexualidade e cisnormatividade e que existem corpos negros LGBTs que merecem uma devida atenção, além da necessidade de terem suas vidas representadas de forma adequada ao contexto real de suas vivências.
O livro é composto por dez contos que abordam diferentes aspectos da vivência negra masculina que, apesar de únicas, possuem uma interseccionalidade entre cada homem retratado nas narrativas. Pode-se afirmar que uma das mensagens principais dos textos é a necessidade de que os homens negros quebrem com ciclo tóxico da masculinidade hegemônica patriarcal em suas vidas para, assim, construírem uma identidade própria pautada no afeto, no diálogo e na legitimação de seus sentimentos. A masculinidade hegemônica patriarcal é basicamente uma masculinidade branca, pautada em uma série de comportamentos tóxicos, que possui a expressão de uma virilidade intensa baseada na repressão de sentimentos, em códigos de honra, homofobia, sexismo e de poder/dominância, além de estipular um padrão estético/corporal ideal para os homens. Tudo que diverge dessa masculinidade hegemônica se torna uma ameaça para a masculinidade desse homem. No caso do homem negro, de acordo com Túlio Augusto Custódio (2019, p.133), a sua condição, dentro desse prospecto hegemônico, o verte para uma situação de não realização que o condiciona a uma situação de dor e sofrimento e, como consequência, essa dor se deriva em códigos performativos fora-de-si, o que ele gostaria de ser e sem mimetização. Custódio (2019, p.133) ainda adiciona que, como resultado, o homem negro se dilui nesse processo de tentativa de performar a masculinidade padrão, o que consequentemente o leva ao caminho reverso de ser percebido como homem. Logo, Volp demonstra, através de seus contos, o resultado dessa masculinidade hegemônica patriarcal branca na vida de homens negros e como ela os leva para um não lugar, pois um dos objetivos da masculinidade branca é a desumanização do homem negro para seu controle e papel de servitude que tem origem desde o período colonial como elemento legitimador para a escravização desses corpos.
No texto de abertura – “Seco” –, Volp inicia sua trajetória dos contos abrangendo como a repressão de sentimentos é totalmente nociva ao homem e como as masculinidades, que são herdadas, afetam e têm como base a relação entre pais e filhos. Essa relação parental se torna um dos principais pilares nos contos de Volp. São nelas que o autor aponta a origem de muitos dos traumas que os homens carregam em sua vida por conta dos padrões masculinos de repressão de sentimentos. Todavia, Volp apresenta uma forma de cura nas relações através da quebra desses ciclos em que a paternidade, muitas vezes, tende a performar e instigar comportamentos nocivos aos meninos. O conto “Pio”, que narra a história de um pai que a todo custo tenta compreender o porquê de o filho estar mudo, acaba sendo a narrativa em que o autor ressalta a importância de uma relação saudável entre o pai e filho, na qual o diálogo, o afeto e a escuta são essenciais para ambos. Como o próprio autor aconselha, “se possível, seja melhor que seu pai” (p.108). Esse recado não deriva de um processo de culpabilização, mas de aprendizagem, pois, sendo melhor que seu pai, o homem abrirá portas para uma realidade que não haverá lugar para uma masculinidade opressora e assim remodelar as relações sociais entre os homens, gerando um ambiente propício para que suas emoções sejam validadas e ouvidas. No conto de fechamento Florescer, Volp alcança o ápice de seus contos trazendo sua poética e sua visão artística para o processo de cura da masculinidade que acontece a partir da encruzilhada entre dois homens pretos através do elemento ancestral que é a terra. Nesse conto ele mostra que o processo de quebra das amarras da masculinidade hegemônica é um processo de florescimento, um processo de expurgo no qual o veneno vem para a cura. Reconhecer suas falhas, suas dores e sentimentos são apenas um passo para o florescer de uma nova realidade, em que o homem possuirá a liberdade de ser e existir a partir de um aspecto individual e coletivo.
Chá de afeto preto para meninos pretos
Ingredientes:
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500g de afeto
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1 xícara de olho no olho
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1 visita para reconhecimento de ambiente
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1 dose de autoanálise
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1 gota de lágrima
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Calor humano a gosto
Modo de preparo:
Junte tudo e entregue ao seu filho por cinco minutos. Conversem. Finalize com abraço e deixe que o menino veja o quanto você está disponível para o que der e vier. Palavras são necessárias para curar as dores do coração. (p. 172).
Em alguns dos contos, Volp trabalha questões relacionadas à sexualidade e gênero, principalmente a forma como esses assuntos se relacionam com as questões acerca das masculinidades. Isso ocorre, por exemplo, em “Barba”, no qual o protagonista começa a questionar sua sexualidade sobre uma possível bissexualidade por sentir atração tanto pela sua esposa quanto por seu barbeiro. Em um dado momento, o protagonista fala sobre ter tido uma “adolescência mal vivida”, ou seja, não pôde explorar e compreender sua sexualidade. A masculinidade hegemônica patriarcal tem como uma de suas bases a homofobia e a heterossexualidade compulsória/obrigatória. Somente pelo simples fato de um homem se sentir atraído por outro homem, mesmo que bissexual, sua masculinidade será posta em jogo, pois ela desafia as normas e padrões masculinos na sociedade. Para o homem bissexual, sua sexualidade será posta como uma “dúvida”, “confusão” ou simplesmente como uma “experiência”, que, em certo momento, a pessoa escolherá somente um gênero para sentir atração. A obra de Volp, ao tratar tal tema, torna-se significativa por trazer um dos aspectos das masculinidades negras que precisa ser mais debatido, além de abrir um debate sobre o fato da baixa representação de homens negros gays, bissexuais e transmasculinos na literatura brasileira. Homens negros gays e bissexuais existem e estão em todas as partes, logo, é necessário um debate acerca dessas masculinidades dentro das masculinidades negras e, por isso, Volp se torna relevante ao debater uma dessas realidades.
Em relação ao tema de gênero, o escritor aborda, em alguns contos, como a masculinidade hegemônica patriarcal desenvolve a opressão, a subordinação e a marginalização das mulheres em relação ao homem. No conto “Florescer", a bicicleta de Amildo recebia o nome de Luiza, o mesmo atribuído à sua ex-esposa. Dar um nome feminino para um objeto revela a visão objetificadora da masculinidade patriarcal sobre a mulher. Isso também pode ser visto em “Dona Tagarela”, no qual um policial revela para seu psicólogo como ele se relacionava com sua esposa de forma abusiva e possessiva. Nesses contos, Volp apresenta, como alternativa para resolução dessas relações abusivas, uma viagem interna dos personagens, que, através de um processo de autoconhecimento e de quebra de ciclo, ressignificam a forma de se relacionarem com as mulheridades.
Existem muitos outros aspectos da vivência negra masculina nessas narrativas, como a objetificação e a sexualização, o racismo na infância, as relações afetivas deste indivíduo, convenções e normas práticas sociais masculinas, a adolescência do jovem negro, a violência sexual e a questão da servitude mercadológica do homem negro. Em suas narrativas curtas, Volp consegue abordar uma amplitude de camadas comuns às masculinidades negras e, a partir disso, ele aprofunda as identidades negras masculinas, trazendo um caráter humanizador ao indivíduo que muitas vezes é tratado de forma rasa na sociedade. Os contos mergulham na subjetividade desse homem, pois oferecem uma alternativa, um novo caminho e apontam que as masculinidades podem ser vividas de forma saudável não só para o próprio homem, mas também para os que o cercam. Sendo assim, Homens Negros (Não) Choram ainda revela a importância do coletivo para um processo de cura e uma nova forma de viver, ressaltando a importância de que seja ampliado o debate e a representação dos diversos corpos das masculinidades negras. Como o próprio título do livro informa, a vulnerabilidade se torna chave para um grande problema, as águas das lágrimas são um ato de limpeza e liberdade, e o leitor é convidado a embarcar nesse percurso de autoconhecimento que Volp instiga e desenvolve. A leitura é acolhedora, às vezes tensa, mas sempre pontual e incisiva no que pretende abordar, ou seja, é uma leitura essencial, principalmente para quem tem curiosidade sobre os atravessamentos das masculinidades negras.
Belo Horizonte, agosto de 2024.
Referências
CUSTÓDIO, Túlio Augusto. Per-vertido Homem Negro: reflexões sobre masculinidades negras a partir de categorias de sujeição. In: RESTIER e SOUZA (Org.). Diálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019, p. 131-162.
VOLP, Stefano. Homens pretos (não) choram. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2022.
* * Kelvin Jorge Batista Silva é graduado em Biomedicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), graduado em bacharelado em Inglês pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente é mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. Atua como pesquisador no Literafro – Portal da Literatura Afrobrasileira. Disponível no endereço http://www.letras.ufmg.br/