Abliterações: poética da inquietude

Luiz Henrique Oliveira*

Paulo Dutra, nascido no Rio de Janeiro, estreia no universo da poesia com Abliterações. Publicado pela editora Malê, em 2019, e semifinalista do Prêmio Oceanos 2020, o livro se recusa a uma expressividade calcada em formas pré-definidas, assim como ocorreu em seu livro de estreia, Aversão oficial: resumida, publicado também pela Malê, em 2018.

A inquietude pauta a construção do livro. Se, por um lado, a tradição ocidental é ponto de constante questionamento, por outro é por meio dela que o artista se coloca na cena cultural. Não, certamente, por meio do endosso ao passado, mas através de rasuras muito bem pensadas. Afinal, o passado – estético e histórico – não passou. De alguma forma, como rastros e resíduos, o que já foi ainda é em diversos momentos.

Para o autor, a literatura também nasce das ruas, da experiência negra no Brasil e na América, de dentro dele mesmo e do contato com outros atores sociais. As minúcias do cotidiano são, em grande medida, matéria viva para os inquietantes poemas de Abliterações, cuja linguagem é resultado do acúmulo de observações de um inquieto e ferino eu-lírico. Entendendo a questão racial como dilema ético (que se faz estético, no livro) o enunciador afirma, já na página 15, que o verdadeiro problema do Brasil é a “(g)raça”. O trocadilho não deixa margens para a dúvida sobre o compromisso do autor com seus irmãos de cor. O destaque ao lugar de enunciação pressuposto pelo jogo de linguagem alinha o discurso poético do poeta ao campo da literatura afro-brasileira.

Assim, pode-se dizer que o livro está amparado por amplo senso de liberdade estética e étnica. Do ponto de vista estético, a expressividade rasura o português castiço, aos moldes dos poetas modernistas de 1922, com especial destaque à singular expressividade poética num mundo atravessado por regras e castrações. Vide, por exemplo, o experimentalismo com a linguagem adotado durante boa parte dos textos e que se farão notáveis nas próximas linhas. Do ponto de vista étnico, o livro traz um recorte de vivências pelas quais cotidianamente passam sujeitos afro-brasileiros, em diversos espaços. Para isso, o autor se vale de espaços de memória/de resistência/de dor e de uma indiscutível centralidade negra na cena textual.

O alinhamento temático do livro se identifica com as dores dos menos favorecidos. Dores, aliás, identificadas por meio e cores, conforme o evidente gesto de denúncia feito pelo poeta: “Agora fica a dor / Digo, a cor da dor. / Vermelhipreta /  a dor tem cor” (p. 88). Ou, em imediato intertexto sobre o fazer poético de Fernando Pessoa, “Finge tão descaradamente / que chega a fingir que é dor  / a raiva que sente” (p. 85). Dor e raiva, aliás, fazem parte da mesma face existencial do sujeito afro-brasileiro, conforme proposta do livro. Afinal, como se manter passivo diante de violências diversas, desde os tempos da colonização portuguesa?

A dor está localizada em espaços de memória e de resistência, metaforizadas aqui pela Maré, por Bangu, pelas estações de metrô e por muitos outros espaços não nomeados e que bem podem representar qualquer periferia brasileira.

Em “A maré, na Maré, amar é”, o eu-lírico mistura sentimentos de identidade, afeto e violência vivenciadas cotidianamente por uma comunidade cuja maioria é composta por atores sociais negros. Como pano de fundo – na nossa visão, metonímia muito bem escolhida – figura o episódio do assassinato da vereadora Marielle Franco (no texto, Mariella). O caso, embora ainda sem solução do ponto de vista jurídico, ilustra uma série de desventuras dos moradores da comunidade. A perda de entes queridos, por meio da violência, faz parte da realidade e da memória dos moradores. Trata-se de um luto que não consegue, portanto, ser vivenciado, porque se reaviva no racismo cotidiano.

Na Maré
Amar é ver
A morte
Todo Santo Dia (...)
A Maré vive nella, e
Mariella vive na Maré.
Porque a Maré somos nós. (p. 32)

A dor da Maré tem cor tem endereço. Motivo de dor e raiva. Talvez por isso, o poeta reassume o compromisso de lutar por meio das palavras em prol de uma sociedade mais justa. O tom denunciatório é perene na escrita de Paulo Dutra. Não raro, como no excerto acima, o artista se vale de um eu-lírico cuja identidade é partilhada com a aquele que lê. Afinal, a literatura é um exercício de alteridade, ainda que possamos identificar dores mais recorrentes e sentidas do que outras dores na sociedade brasileira.

Além disso o tema da violência, seja ela miliciana ou policial (como sugere o texto citado), povoa as páginas de Abliterações. A morte, derivada da violência, salta aos olhos do leitor mais incauto aos problemas de um Rio Janeiro que se localiza para além de Copacabana-Ipanema. O Rio aqui é 40 graus de desigualdades. Marielle (no texto Mariella) foi assassinada, mas sua memória de lutas é reproduzida em cada face humilhada, em cada face violentada, em cada face com ela identificada. Faces-mulheres, faces-meninas, faces-rapazes, faces-de-cor-escura que resistem cotidianamente à morte prematura. Todos os vilipendiados, são, a rigor, a Maré.

Vale lembrar que ninguém é, a priori, marginal. Torna-se marginal em função do enquadramento (ou não) aos marcos legais de determinada sociedade. Do ponto de vista étnico, ninguém é, a priori, negro. Torna-se negro pela designação de alguém, conforme Frantz Fanon, só para citar um exemplo, discutiu amplamente em seus trabalhos. As vítimas preferenciais da violência cotidiana no Rio de Janeiro têm cor “Vermelhipreta”, lembra o poeta. Basta ver “Quando os polícia chega”:

Quando os polícia chega
Tudo para tudo sai fora do lugar
A rua com pedrinhas com pedrinhas de brilhantes
Não é mais nossa é dela.
[...]
Quando os polícia vai embora
Meninos pretinhos voltam a ser meninos nas pipas e bolas-de-gude
Velhinhos de reumatismo voltam a ser seu Zé ou seu Jorge,
Mulheres mães irmãs tias avós namoradas vizinhas
Pretas cospem canos estilhaçados de fuzis (p. 22)

Em alguns espaços do Rio, a violência policial é a regra da operação. Ao menos na visão do eu-lírico, que funciona como espécie de porta voz possível para o testemunho da barbárie cotidiana. O eu-lírico, “voz de papel”, pode contar sem sofrer represálias de diversas ordens; ele pode testemunhar que os lugares de memória são também lugares de resistência: “tudo isso eu já vi” (p. 45). A estratégia permite afirmar, sem peias, que a partida da força policial faz a paisagem voltar à regularidade, seja ela na harmonia da existência, seja ela na disputa pela vida. Outro exemplo de tal exercício de sobrevivência pode ser percebido no poema “Próxima estação”:

Hoje aqui na minha mão
O senhor a senhora vai pagar
Só deiz real na promoção
Boa tarde desculpa interromper a sua viagem
Venho aqui ó trazendo esse produto ó (p. 38)

A estação é a etapa passageira de vidas passageiras, na visão do eu-lírico. A cena cotidiana, mais uma vez, é matéria poética. A linguagem das ruas nutre o texto de Abliterações aos moldes e para além dos poetas de 1922.  Isso porque a “língua errada do povo / língua certa do povo”, como escreveu Manuel Bandeira, em “Evocação do Recife”, é a expressividade possível para a expressão do impossível cotidiano carioca (e brasileiro) da contemporaneidade. 

Recomenda-se, portanto, a leitura de Abliterações por que se tratar de uma obra com expressividade promissora e potente na cena contemporânea. A obra inquieta nossas consciências com provocações nada tranquilizadoras, Se tiver em dúvida, o poeta assim renova o convite: “pode ir mano”, “sem aliterações sem abliterações” (p. 43).

Belo Horizonte, maio de 2021.

Referência

DUTRA, Paulo. Abliterações. Rio de Janeiro: Malê, 2019.

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* Luiz Henrique Silva de Oliveira é Doutor em Letras, Estudos Literários, pela UFMG, onde também cumpriu Estágio Pós-doutoral; professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens, da Graduação em Letras, Tecnologias de Edição, e do Ensino Médio do CEFET-MG. Coordena o GIECE – Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial. Integra o NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e o Comitê Gestor do Portal literafro, da FALE-UFMG. É autor de Poéticas negras – representações do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e de Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984).

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