A nossa voz altissonante

Sobre o Manifesto Negro Contra o Racismo, em
07/07/1978 nas escadarias do Teatro Municipal de São
Paulo, organizado pelo MNUCDR (MNU) Movimento
Negro Unificado.

 

Floresceram naquelas escadas
 vozes irriquietas de negritudes
  que foram punhos diretos
   içados como velas de fogo
    ao mar de silêncio e medo
     que nos dominava.

         

             Vozes que tremularam liberdades antigas
                 republicanamente amoitadas em 1888.
Discursos dos despossuídos
                de vozes
         juntando-se à Nação calada
             sobre novas botas de silêncio
                 galgando do espanto branco
que passava
  o medo e
            a interrogação

                    Vozes brasileiras negras
                    secularmente amor-

     -daçadas


                   reerguendo-se
                          junto ao coro dos
                calados:
                                      A nossa presença
                  Negra
                                      presságio
                                        dos bons
                                          ventos
                                        da
     Liberdade
            sonho coisificado
                   nas senzalas coloniais
       do silêncio.

(Memória da noite revisitada & outros poemas, p. 100.)

 

A la Cruz e Sousa
 
o formas alvas, brancas, Formas claras
de luares, de neves, de neblinas! ...
ó formas vagas, fluidas, cristalinas ...
Incensos dos turíbulos das aras...
[...]
Infinitos espíritos dispersos, inefáveis, edénicos, aéreos,
    fecundai o Mistério destes versos
com a chama ideal de rodos os mistérios.
 
                       (Antífona, de Cruz e Sousa.)
 
O! Formas negras, cafusas
terras devolutas
do meu ser
Formas fumegantes
Formas larvares de atitudes
embriões da minha alma
do Tudo e do Nada
e que se mexem à oitiva
de mim:
Formas dilaceradas
por séculos e séculos de estupros
e gritos e vozes aprisionadas
em caravelas de silêncio e dor!
 
O! Formas negras alvoroçadas pelos tambores sorrateiros uníssonos falares à
surdina
coisas de senzalas e de eitos e de minas
vertidas em sangue
Ó Formas translúcidas de sofrimento!
Crepuscular cântico de alforria feito de medo e ladinez
de perguntas raivosas
ante esse eterno 14 de maio; nosso dia "D" seguinte:
 
Um sol emparedado
de silêncio e pesadelo.
 
Ó Formas iradas de mim!
 
Formas animicamente
enredadas nas batas cristãs
alma negra crucificada
na mais-valia malsã
Formas científicas do chicote
livresco a dilacerarem nossas mentes
por séculos e séculos, chega!
palavras de escambo
de mal querer
e de escárnio sobre
o nosso falar escravizado
 
Ó Formas brancas
fiandeiras de nosso sangue convertido
em suor sexo e salmouras e açúcares e cafés
amarguras mil impregnando
de venenos acadêmicos
nossos caminhos de liberdade
 
Ó Formas Mulatas do Ser
Crespas atitudes sonhadas
e não ditas na vertigem
daqueles dias e séculos obscuros
 
Formas negríndias mamelucas
acabrunhadas de negruras
infortúnios lançados ao nascer
a língua pesando toda revolta
silenciada pelo ferro em brasa.
Ó cântico enviesado de
choros e de amargor e do
silencioso compadrio cristão
a solfejar a mansidão em
nossas cabeças ... Ó Formas!
 
Ó Formas Pardas
avaras de pretidão
formas marrons
de burro quando foge
entremeadas falas
em sussurros de amor
e urros de lanhos e sal
a mosquearem
nossas costas vivas de sangue
 
Ó Formas alvas
Fôrmas claras seculares
ignaras falas
saídas por detrás
do atlântico enredo
de outros suspiros
épicos de saudades
ondeados de tacapes,
ágape anímico
 
embebido do sangue pagão
turíbulos ensandecidos
de teorias racistas
afunilando nosso ser
em recomposição.
 
Ó Formas docentes!
Formas nuas
cruas de humanidade
incrustadas nos livros de história
onde nosso povo
é calado sob a verdade
da mentira pregada nos livros brancos
continuamente reciclados em seus
signos de dominação ...
 
Ó Formas!
 
Ó Formas em desalinho
caminhos de pretos
altivos enredados
nas teias do ser ou ser
um Eu que se faz a cada
dia respirando as contradições
semânticas embutidas
em nossa pele-madrugada-alvorecer
 
Formas liriais
matinais suspiros
enrustidos num samba
velho e dolente
ninando gente grande desamparada.
 
Formas de fel e de açúcar
 
Spleen doloroso cruzis soulsiano,
via-sacra pagã sacramentada
em correntes no rio subterrâneo
de Mim.
 
Ó Formas Alvas, Formas Claras. Formóis!
Íris fotográficas incandescentes
sobre o lamento e o desejo olhos curvados sobre a justiça
cega aos meus pés
enrodilhados em aço
e à minha alma-ser
em purgatório camítico
vagando por entre minas eitos guetos
e galés midiáticas
 
Ó Formas vestais
a me comprimirem
encarvoado em fogo
nos turíbulos do poder
me fazendo som
e futebol tribal
 
Mente indefesa aos teus ranças
de exclusão perpetuados
nessa difusa imagem
na qual não me reconheço homem
mesmo que pagão
mesmo que órfão das
benesses construídas
por essas mãos de calos
e costas envergadas
mas vivas de perguntas
a fustigar em tuas certezas apolíneas
 
Ó Formas onívoras da nossa identidade!
 
Devoro-vos!
em signos e signos e mais signos
advindos da sua própria
louridade de sereia.
Rego outras palavras
com as cores tiradas
desse pote de ouro
guardado em todos os Ori/ fícios
do meu Eu iluminado
de negrumes
e instauro um novo olhar
pejado de pretumes
em todas suas essências
 
Ó Formas
antropofágicas
Ó Formas fálicas
do meu Ser!
(Memória da noite revisitada & outros poemas, p. 73.)
 
 

Para ela, que perdeu o filho

Eu não moro no gueto
mas dentro de mim
um gueto se estilhaça
de sangue
tiros drogas álcool e morte.
Por isso eu canto
a dor do outro tão pele de mim.

Eu não moro no gueto
onde a sobrevivência sempre foi
alvo de morte
para eles

Histórias
que ouvimos
num rap
que até o lado rico
da cidade cantarola

Eu não moro no gueto
onde a violência réptil
transpassa nos olhos
policialescos
dos capitães de mato fardados
dizimando jovens que se
aventuram pelo outro lado
do Sonho.
A nossa pele é um gueto
charqueada
eu sei
Masmorra da qual
eu não
renuncio
nem pelo
prazer de não ter
mais dor.
A dor de cantar
a impotência
da mãe ao ver o filho
que morreu pelo desafio de respirar
um outro sol
sem amarras de ódio
e de muros que nos ferem
a vista e a vida humana, nossas.
Mas porque me sinto
ilhado pelo medo de sempre
que passa raivoso com as
viaturas a alvejarem
nossos jovens em seus sonhos
eu combato esse medo
com um poema
mesmo

que não o leia, mãe.
Eu sei que ele não te aliviará
nesta dor maior do que
a dor
do próprio parto, dele.
e que o seu mundo despedaçado
será, agora, um
rezar rezar rezar
até as lágrimas secarem
e outras vierem
salobras
num ódio de impotência a
rondar teu viver.

É isso que nos une:
esse gueto imenso
Atlântica Dor
sem bússola
rondando
nossa alma
sofrida de silêncios

Eu, agora,
mais velho,
entendo os nossos antigos
poetas que bateavam
palavras de apagar
nossa dor
enquanto sobreviviam
nesse mar
imorredouro
de angústias
nesse muro que nos detém
à mercê de um tempo
que continua nosso inimigo. 

Eu moro num
gueto qualquer
deste país varonil:
O meu é
uma estrada longa
de desafios e mortos
que buscam a paz
além
dos cemitérios
e bondades coloniais.

Meu gueto:
minha alma
incrustada nas palavras
de ordem da minha poesiaminha forma dolorosa
de abater
o silêncio comparsa
que nos rodeia.

(Memória da noite revisitada & outros poemas, p. 96.)

 

Garganta

Hoje

é preciso que tua garganta

do existir

esteja limpa

para que jorre

teu negrume.

 

Uma garganta não é corpo

         flácido

É sangue escorrendo

em

leilão de cais.

Sua garganta,irmão

    É uma quarta-feira

  de cinzas.

(Cadernos Negros 3.)

 

Ser Negro

Até quando, amigo?
até que o mar volte a ser o que era?
até que os corpos voltem à praia
e se amotinem em negreiras naus
desses tempo?

Há,
um alvo
onde nossas forças recapeadas de fraquezas
brancas
possam medir e serem
torrentes
de uma dor prostrada
violentada
mas que na Primavera será
um dardo
uma lança
um raio laser

(Memória da Noite. São José dos Campos, 1978.)

 

Zumbi

As palavras estão como cercas
em nossos braços
Precisamos delas.
Não de ouro,
mas da Noite
do silêncio no grito
em mão feito lança
na voz feito barco
no barco feito nós
no nós feito eu.
                  No feto

             Sim,
20 de novembro
         é uma canção
            guerreira.
(Cadernos Negros: os melhores poemas, p. 25.)

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