Cartas negras: notícias da escrevivência, projetos de vida, projetos literários 

Gustavo Tanus*
Thamyris Rodrigues**

Até a difusão do uso das correspondências eletrônicas, a troca de cartas era uma prática bastante comum aos escritores. Elas registravam as redes de relações afetivas, o pensamento e o cotidiano de seus cultores/ utilizadores/ redatores. (PIRES, 1996).

As cartas trocadas entre escritores são, frequentemente, lugares de apresentação de textos aos pares, em que se dialoga sobre as possibilidades de finalização, num ensaio de uma primeira recepção. Elas podem abordar, ainda, as formulações de um projeto literário, como um espaço de construção do que se tem como limites − entre demarcações desejadas ou (im)possibilidades assumidas.

Essas letras trocadas entre escritores são, desde sempre, valorizadas para a pesquisa literária, em que paira um desejo de acessar informações diferentes das que o texto literário oferece, em busca de acessar os bastidores da criação e encontrar, neles, explicações para o processo de criação literária.

O projeto das Cartas Negras surgiu na década de 1990, como uma ideia de troca de missivas entre as escritoras Miriam Alves, Lia Vieira, Esmeralda Ribeiro, Sonia Fátima da Conceição, Geni Guimarães e Conceição Evaristo, como formação de um grupo de “vozes-mulheres” escritoras que discutiriam projetos de vida e de literatura.

Essas “vozes-letras de seis mulheres multiplicariam, pois cada uma criaria sua carta a partir da recebida e enviaria da mesma forma para cada uma da confraria de mulheres” (p. 22).

O desejo era a configuração de um coletivo de escritoras negras cuja reunião (associação de projetos intelectuais e literários) sugere a elaboração de formas e estratégias de estar neste mundo, promovendo reflexões sobre questões que envolvem o ser mulher negra. Por vicissitudes da vida, um período de silêncio se interpôs entre elas, como uma aparente interrupção no projeto de comunicação via correspondência, ou, como disse Conceição Evaristo, um recuo como parte do jogo-movimento da capoeira, em que “a volta traz sempre um corpo novo − no mesmo corpo anterior − porém potencializado na rapidez, na sagacidade, aprendizagens adquiridas na tática do recuo” (p. 23); um recuo, para avançar.

Neste ano, a ideia ressurgiu e foi retomada, num convite para que cessassem essa ‘interrupção’: “Vamos ferir esse silêncio que nos machuca e reacender o pacto de criação das Cartas Negras?” (p. 21), escreveu Conceição Evaristo às companheiras; no projeto que foi ampliado com o convite feito às “nossas novas vozes” (p. 17) da literatura negra feminina: Ana Cruz, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Sobral, Débora Garcia, Elizandra Souza, Jenyffer Nascimento, Lívia Natália, Mel Adún e Raquel Almeida.

Este convite foi feito às jovens autoras para que se integrassem ao grupo de escritoras experientes e consagradas, entrando na roda de conversa na qual elas dialogavam com Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Auta de Souza e outras precursoras. Completam-se, neste instante, os processos de uma pedagogia de  griottes − essas contadoras de histórias, guardiãs da memória, mediadoras entre a ancestre e a escritora que virá − que idealizaram e lançaram seus projetos de um coletivo de mulheres negras que re-formulam suas identidades dentro de uma perspectiva positiva, e que hoje são exemplos para as mais novas.

Estas projeções dentro de uma rede de relações são percebidas nas imagens do entrelaçamento de fios nos bicos de rendas, ou na projeção de ondas nos movimentos causados pelas perturbações das águas, que são detalhes editoriais contidos na abertura e no fechamento do volume; além das fotografias de Dona Joana, mãe de Conceição Evaristo, e de Ainá, sua filha; e do Caderno de Dona Joana, um fac-símile de um trecho de seus diários, onde sua mãe narra histórias sobre sua própria infância e a relação com as narrativas e com a escrita.

O diário materno costura pela palavra escrita uma memória que registra, como não poderia ser diferente, aspectos da vida de Dona Joana e da cultura vivenciada e modificada por ela, concomitante a um procedimento de autoafirmação, pelo ato de recuperação da memória, em que ela reconstrói a narrativa sobre a vida que não cabe na escrita; sobre a escola e seu processo de alfabetização e letramento; sobre língua e linguagem; sobre fios, tessituras, tecidos; enfim, sobre memória, lembrança e esquecimento. A escrita desse diário é importante na medida em que, dentro do projeto das Cartas Negras, Dona Joana inscreve-se como uma precursora de Conceição Evaristo, nesse entrelaçamento de vozes de mulheres negras, como fortalecimento de seus lugares de fala.

A leitura das cartas nos mostra os modos de compartilhar os projetos de vida e, de certo modo, de literatura, em relatos sobre a ideia de manter o contato por meio do projeto das notícias das “escrevivências”. Delas apresentamos, aqui, o entrelaçamento de fios de uma urdidura de palavras metalinguísticas, metafísicas, tecidas pelas escritoras. Disseram que as cartas seriam uma teia, ponte, terra, semente, caminho, abertura de si, trocas de experiências, de vivências, abrigo, união, encontro de águas, cumplicidade e companheirismo, roda, ciranda, necessidade, sonho, desejo, rede, travessia, atravessamento, lugar da fala e da escuta, da memória, insistência etc. Tratarão de heranças e legados, de chãos “amansados pelas escritoras negras que [...] antecederam” (p. 50).

Contra a invisibilidade e o esquecimento, em favor da continuidade, apontam para aquela que escreve literatura e compartilha suas novidades nas cartas que envia e aguarda chegar. Ela que busca a vida, e a sobrevivência para “eternizar as falas de mulheres silenciadas”

Assim, as novas Cartas Negras serão um incentivo para a continuidade dos projetos de vida e de literatura, como um “voto de confiança” (p. 18) no trabalho de cada uma das envolvidas.

Neste contexto em que a mulher como escritora não é valorizada, a troca de cartas é, portanto, um modo de auto-organização, nesta “euforia e teimosia em crer em nós mesmas” (p. 21), dos projetos de vida e de literatura. Ao trocar cartas além do exercício da escrita há também a construção de pequenas “teias” de resistência negra feminina que perpassam as gerações.

Que esta confraria de mulheres escritoras negras continue a se reunir como um grupo que leva − em suas poéticas e ficções − discussões daquilo que são formas de lutar e de transgredir o que são as regras heteronormativas e racistas estruturais e estruturantes desta nossa sociedade. E que continuem não aceitando o silêncio imposto, tensionando o centro, levando o incômodo e nos ensinando o enfrentamento, sobretudo revelando a subjetividade da mulher negra, e tratar das questões dos sujeitos, negros e negras: seus sucessos e insucessos, suas dores, a solidão da mulher negra, etc., numa literatura que formula questões (das quais a sociedade do mesmo frequentemente não alcança respostas, como um plano de sucessão e continuidade) e nos sugerem respostas para as indagações sobre humanidade.

Natal/Belo Horizonte, 29 de novembro de 2017.

Referências

 OCUPAÇÃO CONCEIÇÃO EVARISTO. São Paulo: Itaú Cultural, 2017.

 PIRES, Antonia Cristina de Alencar. Cartas do escritor: notas sobre a correspondência de Lima Barreto. Boletim CESP, v. 16, n. 20, p. 107-115, jan./dez. 1996).


* Gustavo Tanus, ex-professor da Escola Pública Estadual Professora Benvinda de Carvalho, é mestre em Estudos Literários pela UFMG, autor do livro Africanos e Afrodescendentes nas estantes: a Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (2017) e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, NEIA/UFMG.

** Thamyris Rodrigues é formada pela Escola Pública Estadual Professora Benvinda de Carvalho, ex-aluna da Educafro Minas e, atualmente bacharelanda em Biblioteconomia pela Escola de Ciência da Informação, da Universidade Federal de Minas Gerais.