Derivar para buscar o humano integral:
a esperança no corpo

 

Alen das Neves Silva*

Anamaria Alves**

 

No ano de 2020, Edimilson de Almeida Pereira oferece à sociedade brasileira três obras. São elas: Front, O ausente e Um corpo à deriva; este último, publicado pela Editora Macondo, abordará o movimento em que a vida impele o sujeito a estar na universalidade e na intimidade. Enquadra este movimento como ondulatório, pois as partes que compõem a obra direcionam quem a lê em cristas e vales sobre o relacionar-se consigo mesmo, com a sociedade e com o mundo.

Um corpo à deriva se inicia apresentando a intimidade na universalidade e vai aos poucos ampliando o escopo narrativo ao apresentar a noção de que somos compostos por vestígios; os quais possibilitam experienciar as possibilidades, para que haja a compreensão da universalidade dentro da intimidade. A composição desta trajetória é a materialidade linguística, que compõe os títulos concedidos a cada parte: o que podemos considerar como um prefácio – “Um quarto na cidade”, o experenciar de ser uma parte que compõe o todo –, e nos blocos narrativos “Vestígio”, que desnuda do que somos compostos, e “Outra flora”, que escancara as possibilidades de recriar e renascer para se atingir a universalidade dentro da intimidade. Já “Uma cidade no quarto”, que se pode considerar o posfácio, encerra a obra com uma reflexão sobre o particular que ressoa, reverbera e rompe as amarras para que os sujeitos se enxerguem uno na multiplicidade, que segue sem uma rota, à deriva na existência e na essência humanas.

A obra apresenta referências a distintas culturas, este fato é passível de percepção a partir das escolhas dos nomes das personagens. Edimilson de Almeida Pereira tece um diálogo filosófico acerca da noção de esperança, ao nomear um de seus personagens de Tesfa, que significa esperança em ahmarico etíope e, também, por ser um anagrama de festa, que é uma situação na qual os envolvidos depositam diversas formas de esperança: sejam amorosas, de diversão, de conhecer novas pessoas. Logo no início, tem-se que Tesfa haveria traído a pessoa amada e, por isso, ela rompe a possibilidade de esperança que seu nome carrega. Esta traição é potente, pois não ocorre entre corpos, mas dentro do pensamento. Almeida documenta a sensação deste sentimento, assim: “refutei aquilo que combinamos: fazer da morte um ato livre para confrontar as mortes tramadas pelo ódio. Mas, como uma sombra, a traição se estendeu sobre meu pensamento. Emudeceu meu corpo” (p.16). O prisma da morte sobre a liberdade e da liberdade na morte foi abordado ao longo da obra de Pereira, trazendo uma percepção diferente da ideia de morrer. A dança entre a morte e a esperança transcorre nas linhas de Um corpo à deriva, esse bailar pode ser sentido a cada parágrafo do romance. Segundo Montaigne,

essa morte que alguns chamam de a mais horrível das coisas horríveis, quem não sabe que outros a denominam o único porto contra os tormentos desta vida? O único esteio de nossa liberdade? E receita comum e imediata a todos os males? E enquanto alguns a esperam trêmulos e apavorados, outros suportam-na mais facilmente que a vida. (MONTAIGNE, Ensaios, XX)

O livro segue como uma carta, ou uma conversa, e discute o negro desde o porto em África até a violência da atualidade. A lógica do corpo à deriva perpassa o livro por meio de contradições e ideias, que são citadas e retomadas dentro do movimento de fazer e refazer. No início temos descrita uma espécie de "memória de não ter memória", porque essa nos foi negada, presente no exercício reflexivo que o narrador se propõe; ele percebe que é urgente que um discurso de pertença, propriedade e identidade seja reverberado na sociedade.

O fenômeno linguístico, e literário, vai ao encontro das ideias de Conceição Evaristo, apresentadas e discutidas em sua dissertação de Mestrado, Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, ao afirmar categoricamente que "a literatura negra é um lugar de memória" (EVARISTO, 1996, p. 90) e, também, que a negação das lembranças concedeu ao povo o nascimento de sua própria memória. O autor se aprofunda na universalidade, proposta em Um corpo à deriva, e desvenda a hipocrisia da sociedade onde a população negra, por vezes, possui o desprazer de ouvir que a escravidão foi boa para a economia e os escravos eram bem tratados. O autor fala da tomada de poder e espaço por meio da língua e da escrita. E afirma: “estamos num lugar que é nosso, eles precisam saber disso tanto quanto nós mesmos” (p. 18).

Neste perâmbulo, pelo qual Edimilson nos guia, ele pontua a relação da criança com a possibilidade de absorver, aprender e manter em si ensinamentos, histórias, vivências etc. Pereira traz as frases; “(...) o choro abafado de uma criança.” e “(...) a maceração de uma folha sem escrita, enigmática” ( p.19); nestes trechos a relação estabelecida entre os vocábulos “criança” e “folha sem escrita” evidencia-se por serem o receptáculo, porém o que a preenche é dolorido por não haver uma comunicação. Esta se materializa na escolha dos adjetivos “abafado” e “enigmática”, para o que precisa ser dito. Este ambiente doloroso e sofrido é endossado pelo trecho em que se lê “é urgente ser assim, antes rasurem os dicionários e me atribuam um riso domesticado ao invés de perceberem que sou, há muito, a própria consciência sobre o sofrimento” (p. 23).

Na literatura de Pereira não ficaria aislado o tom político e econômico. O autor estabelece uma relação com a concepção de oficina e as atividades que podem podem ser executadas neste espaço. Desta forma, é preciso que se entenda que oficina é “para esses, a recuperação vem com a ferida escrita” (p. 25). Assim se expressa a noção de reparo, de construção e de criatividade: “para ser eu mesmo não há outro jeito senão, quebrar a mim mesmo. E recomeçar” (p. 24). Assim, deixa claro que a compreensão de que o poder está com aqueles que detêm o político e/ou financeiro, o autor aponta que

(...) se contar é tornar realidade uma realidade que não se terá com certeza, há muito poder nas tristes oficinas. Quero uma para mim, trabalhei em tantas, em troca de um salário de fome: travei, sangrei e poli os ossos entupidos. Quero uma rua aberta de corpos sonoros para desdizer o que disseram de mim. (PEREIRA, 2020, p. 24)

Diante deste refazer-se, a violência é uma constante e como forma de combatê-la a população negra lança mão do sarcasmo, o narrador confessa à Tesfa que é com a ajuda do sarcasmo que conseguirá demonstrar sua autoria. E afirma:

sabes, Tesfa, meus obstáculos não são nem o passado nem o futuro, menos ainda a mão de quem não se solidadriza com a minha raiva. Sou agradecido ao sarcasmo. Com ele aprendi à necessidade de medir a altura da voz e a extensão do gesto. Sem reservas, me disseram onde era o meu lugar, Tesfa: entre os dejetos. Mas o sarcasmo me salva. Fiquei com suas palavras, os meus lugares são meus (p. 26).

Com um tom político, o texto inscreve a tomada de consciência do narrador de que a escravidão o perpassa: “entre o azul e o vermelho, foram muitas vidas vendidas revendidas. Incitadas ao escárnio de si durante a noite. Incendiadas por si mesmas” (p. 33). O romance condensa em um curto espaço físico todas as etapas que marcam e afligem a população negra e, para tal, utiliza-se de metáforas para que o leitor se compreenda como parte da escravidão, pois ao dizer que “entre o azul e o vermelho” é clara a relação entre os escravocratas e os abolicionistas e que no meio destas disputas, muitas vidas, as negras, foram eliminadas até pelos iguais.

A desumanização do negro, que caminha lado a lado com a escravidão e a truculência dela herdada, deságuam nas páginas de Um corpo à deriva com frases como, "por mais de três séculos fomos ancinho, enxada, arado e esporão. Gado. Caça. Bicho do mato. Cão na varanda. Por mais de três séculos não tivemos direito à linguagem" (p. 36). A desumanização presente reflete o passado como herança das tentativas de justificação de todas as atrocidades cometidas pelas mãos escravocratas. Sobre isso, Mbembe afirma que, "a escravatura atlântica é o único complexo servil multi-hemisférico que transforma pessoas de origem africana em mercadorias. É por esse facto, a única a ter inventado o Negro, isto é, uma espécie de homem coisa" (MBEMBE, A. 2014, p.19).

Na questão da violência, Pereira traz reflexões sobre as políticas de extermínio que existem no Brasil, mais adiante pode-se ler: “vês, a mão assassina assina decretos, leis e permanece tranquila, amparada por outras iguais” (p. 37). É nítida a crítica à política que existe no Brasil, desde seu “achamento”, ou seja, a nossa sociedade apenas reestrutura e atualiza as ações às épocas para garantir a permanência dos grupos hegemônicos nos espaços de poder. Edimilson apresenta a violência como a marca insuperável que se impõe àqueles que estiveram (e estão) sob seus efeitos e assim demonstra que há uma possibilidade a que a vítima se apega, a sublimação. O autor aborda uma espécie de síndrome de Estocolmo quando afirma, "tirar de mim o que me fez fiel a quem me fere é um luto" (p 64). A mão da escravidão dos tempos passados é a mesma da violência nos tempos atuais, e o livro aborda a violência e o medo da população brasileira como um todo.

Como exemplo de não superar a violência, tem-se que “essa era a casa prometida. Nada mais: o mais eram esqueletos de uma violência que não se deixa sepultar”(p. 63). O interessante é a escolha dos vocábulos “casa” e “esqueleto” que irão reforçar a noção de acolhimento do insuperável, a violência contra a população negra que, por mais tempo que decorra, sempre nos perturbará, uma vez que o que perdura da violência é maior e os traumas dos violados são gritantes. Para superar, minimamente, as atrocidades cometidas pela Escravidão será preciso que haja uma mudança:

Mudo lentamente. Tirar de mim o que me fez fiel a quem me fere é um luto. Para escapar a essa prisão precisarei ser outro, antes de voltar a ser eu mesmo. São muitas operações, muitos os descartes, muitos os encaixes a refazer (p. 64).

No processo de refazer-se, o sujeito negro percebe que se encontra imóvel porque percebe-se incapaz, por medo das represálias, que não o permitem reagir. A narrativa inscreve a palavra como um meio para esta reação:

A língua é um detonador. Não farás nada? Ela deveria nomear os teus vários nomes e fazer de ti uma reação contra o que nos oprime. A língua não é para encobrir o eclipse. Os tiros continuam atravessando escolas e corpos de crianças: não farás nada? Não farás mais do que secares ao sol a tua consciência? O que eu poderia fazer – retruco com mal humor – se ainda me assombra a língua arrancada a um dos meus ancestrais? Não posso disparar contra os agressores, mesmo tendo razão. Não posso atirar e sair ileso (p. 65).

A partir da língua há a cobrança de uma ação e de uma não compactuação, pois é preciso entender que a atuação deve ocorrer na fala, o que se nomeia pode atuar e tentar reverter o que está preestabelecido hegemonicamente. A voz narrativa retifica a força da expressão linguística ao escrever que “a luta crucial é pela reconquista da língua: mutilada e incompleta é por ela que ainda resisto” (p. 66), o que explicita seu vínculo com a identidade negra e aponta que a luta deve continuar de forma perene e incisiva.

A falta de ação é recorrente na obra. Em conversa com Tesfa o narrador a questiona, e se questiona, sobre o imobilismo deles, negros e subjugados. Recorre à voz de seus antepassados e indaga: “estou irado, Tesfa, porque minha vó também esteve. Ela salta do retrado e nos interroga: Por que ninguém reage?” (p. 72, grifo do autor). É clara a cobrança dos antepassados quanto a um posicionamento e uma ação, pois já demonstraram que sofreram, mas foi para que os seus tivessem forças e noção do seja a solidão e o sofrimento.

Ainda sobre os antepassados, a narrativa oferece uma reflexão sobre a morte e as repercusões que pode ter na e para a vida daqueles que estão subjugados. E a voz impertinente e questionadora que a conduz não deixa por menos: “a conta, segundo minha avó, é que precisa ser modificada: para valer a pena, nossa morte não pode ser uma determinação vinda deles” (p. 72). Para a avó morrer/suicidar é a opção do sujeito e não da sociedade opressora, até que percebe a inversão que os algozes impuseram ao suicídio. “Aceitar o suicídio parecia uma solução. E não parece mais. O que fazer com esta calma particular? Entendes o que eu digo, Tesfa? Tua voz me empurra de encontro à letargia” (ibid.). E ainda: “eles furtaram nosso passado e nosso futuro. Por termos apodrecido nos porões e estarmos ameaçados pelo proxímo tiro, só nos resta este tempo, no qual temos alguma chance para mudar o passado e o futuro” (p. 73). Em outras palvras, a ação deve ocorrer no presente para justificar o passado e modificar o futuro. A morte, o resultado do suicidio, transcorre pelas páginas em suas mais variadas formas. Ora é solução, como no início da narrativa, ora injustiça, como nos versos que abordam o passado e a época das "conquistas" europeias.

O romance mostra nas próximas páginas, a compreensão da morte negra como violenta e sobretudo coletiva. O senso coletivo se fortalece cada vez mais na dança entre Tesfa, a esperança, Eu, o narrador, e agora um novo personagem importante, o Fin, de pronúncia idêntica à palavra "fim". O "Eu" narra a dor da morte de si mesmo junto com outros seis homens:

É pelo estupor que a caixa de dores nos revela seis homens, em contraponto de pés e cabeças silenciosos. Neles, os assassinos viram seiscentos cavalos de potência. Nós, os que morremos, anotamos seis seres humanos, reais e agudos, acondicionados pela violência e enviados ao exílio. (p. 96)

O clamor por uma reação coletiva ocorre novamente em várias passagens do livro, como, "o que farão esses corpos que se levantarão, um dia, apesar do cansaço?" (p. 96). A ideia da ressurreição através da tomada da narrativa de sua própria vida pela população negra brasileira é enfatizada do início ao fim das linhas do texto.

O sistema abordado em Um corpo à deriva é exatamente o status quo brasileiro em sua mais dura realidade, um show de horrores que se retroalimenta a cada dia. Desde o início do domínio truculento sobre os africanos capturados e vendidos, os poderosos agem permitindo que caminhemos só até onde os mesmos permitem. Tal fato é desvelado com mais força quase ao fim do texto com a afirmação de que "devemos dizer o que nos convém. Frequentamos as aulas de anatomia, primeiro como vítimas, depois como doutores" (p. 100). Edimilson baila com a esperança em suas letras, no início ele diz ter sido traído por ela e quase ao fim do livro retoma a esperança de que, um dia, a comunidade negra se una ao dizer "não temos irmandade, ainda, não somos a irmandade sob o sol" (p. 101).

E a ideia de esperança continua a desfilar pelas páginas na personagem Tesfa. Quase ao fim da narrativa o quarto onde os jovens se encontram se enche de boas expectativas, "e as possibilidades de nos olharmos, de um instante para o outro, como um corpo novo, um corpo outro, um fogo ao vento" (p. 101).

Acerca da impressão física que alguns livros podem causar, Edimilson Pereira nos presenteia com páginas nas quais é possível sentir gostos e cheiros. Além disso, a sensação física que se tem ao ler Um corpo à deriva é que, quanto mais o adentra mais se adentra ao azul escuro do mar e é possível sentir o balanço de um navio, ora calmo, ora furioso.

Há tempestades em meio à verborragia que parece sangrar a cada página até que, quase ao fim da leitura, o espectador das cenas pode se perceber com enjôos reais causados pelo vai e vem das ondas e incertezas cravadas ao longo do livro. Logo em seguida, passadas as intempéries e em meio às águas tranquilas, reencontrar Tesfa em seu sentido Ahmarico etíope. O "Eu" fala da esperança no porvir quando em seu discurso afirma que, "com esse aríete não podem os artefatos dos antigos e dos novos assassinos – nós os sinalizaremos no meio da multidão. E terão rasgados, a dentes, os seus miseráveis dias" (p. 102). As linhas seguintes trazem de volta a esperança que havia sido retirada anteriormente, mas o vai e vem das ondas continua e se asemelha à vida da população negra brasileira, ora atrelada à esperança, ora ao desalento.

Em uma potente reflexão filosófica negra brasileira, o personagem Fin ganha espaço na prosa de Edimilson. Ele consegue apresentar um diálogo na maioria de sua participação, mas que pode ser entendido, por vezes como um monólogo. Por fim, quando o narrador fala consigo mesmo, esta conversa se torna entre três sujeitos: O Eu, a esperança e o fim. O baile de encontros e desencontros entre narrador e personagens pode fazer com que o leitor sinta mais forte o balançar do oceano que vai e vem a cada linha. “Se estivesse ao alcance do meu braço, Fin e eu conversaríamos, como tu e eu fizemos incontáveis vezes, Tesfa [...]. O Fin está a poucos centímetros de mim, move a cabeça como a vasculhar algo em si mesmo” (p. 105).

Há uma conversa amigável entre a voz narrativa e a personagem Fin, esta se compõe por um diálogo espiralado, que se ancora, profundamente, em um tom filosófico que sucita questões feitas e, imediatamente, respondidas, para exemplificar lê-se o trecho:

Para uma sessão de cinema mudo, quem convidarias para ocupar a primeira fila?

Os intérpretes.

 – E para a última?

Aqueles que pretendem amordaçar a história. (p. 108)

A relação entre memória e existência persiste e a tomada do poder da palavra por parte do narrador é patente ao longo da obra e se intensifica quando a mesma está próxima do fim, "esforço-me para retomar as perguntas, mas já não importa se elas ultrapassam os limites dos meus dentes. O Fin está próximo" (p.111). A ideia de memória é retomada e atrelada à própria existência, quando o personagem diz "a existência para mim é permanecer ausente para gerar alguma lembrança" (p.121). Ao longo da leitura, às portas do desfecho da obra, é como se a cada assunto retomado a narrativa fosse capaz de reviver, de se reinventar como diria a personagem Tesfa.

O capítulo final desvenda e desvela a sociedade brasileira como um todo e traz a política nacional e suas mazelas: “eu sinto asco, Tesfa, do país que me restringe, de sua máquina de escárnio que trabalha dia e noite. Ela põe no colo dos corruptos um objeto limpo, uma flor sem cheiro, uma canção sem mácula” (p. 131). Dentro do mesmo quarto, recebendo a visita de vozes e espectros, o diálogo do Eu com Tesfa segue dizendo verdades cotidianas que dão a impressão de poderem cortar como um bisturi, tamanha a perspicácia e força presentes na interlocução final de Um corpo à deriva:

Sobre nós, a máquina despeja a ausência de sentido para a vida. A máquina-burocracia, a máquina-ossos-brancos, a máquina dinheiro – todas essas partes que engendram a máquina maior rolam ao nosso lado. (p. 131)

No último capítulo pode-se ouvir a voz de Tesfa, e o discurso da personagem feminina é dotado de seu significado Ahmarico Etíope. Ela parece ser mesmo a esperança, então ela diz: “Ah, finalmente o toque da presença: conscientes dela, iniciados na arte e na história, poderemos rolar e amar. E inserir dentro da lâmina o nervo que de uma outra forma de exprimir" (p. 142). Tesfa descreve o apartamento onde se encontram e fala dos dois enquanto íntimos, mas resgata toda a universalidade nessa intimidade do casal e enche o universo de Um corpo à deriva de esperança.

É um fogo-helice que acaricia a garganta do país. O fogo em Fin é um desejo de conversa à porta de casa, com janelas abertas e crianças ainda na calçada. É isso que não queremos perder. Temos que redescobri-lo porque não somos estranhos à alegria. Nem ignorantes da vida. (p. 146-7)

O diálogo de caráter filosófico traz o pensamento enquanto ação pungente e o balanço do mar em cada uma de suas linhas. A narrativa se encerra com o prólogo "Uma cidade no quarto" e as falas do "Eu", que afirmam: "o mundo não vai deixar de girar" (p. 151). É possível descer ao porão dos negreiros e, em seguida, subir aos céus com Edimilson de Almeida Pereira. Um corpo à deriva é exatamente o que sua contracapa afirma: uma dança antagônica e filosófica entre personagens que viajam nos tumbeiros mar adentro, dançam tristes sob o vibrar do chicote e, por vezes, lançam-se em alto mar para desafiarem a morte e desaguarem na praia. Um corpo à deriva é pura filosofia negra brasileira e chega à sociedade em um momento crucial para refletir, muito embora possua todos os atributos atemporais de um livro que nunca morre.

Belo Horizonte, março de 2022

 

Referências

PEREIRA, Edimilson. Um corpo à deriva. Juiz de Fora: editora Macondo, 2020.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. 1996. Dissertação (Mestrado em literatura brasileira) - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios IDe como filosofar é aprender a morrer. Tradução de Sérgio Milllet. Consultoria Marilena de Souza Chauí; 5.ed. São Paulo: Nova Cultural. Coleção os pensadores. 1991.

________________________

* Alen das Neves Silva é escritor, professor de Português, Espanhol e Literatura, graduado e Mestre em Letras Estudos Literários, pela UFMG e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – desta Instituição.

** Anamaria Alves é escritora, professora de Alemão e Inglês, graduada em Letras pela UEMG e Pesquisadora do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Alteridade da Universidade Federal de Minas Gerais.

Texto para download