Olhos d’água, de Conceição Evaristo1

Marisa Lajolo*

 

Olhos d’água é o livro de contos de Conceição Evaristo (Ed. Pallas/ Biblioteca Nacional), que ganhou um prêmio Jabuti (contos) no ano passado. É também o título da primeira história, história de uma mulher às voltas com a imagem que guarda de sua mãe. Mas… olhos d’ água é também como às vezes ficam os olhos dos leitores das quinze belíssimas histórias que a escritora mineira, reúne neste livro.

Leitores ganham olhos d'água e alma leve pela beleza das histórias que – apesar do que narram – tecem a esperança.

Personagens principais quase sempre femininas. Velhas, moças, crianças. Negras, quase todas e quase todos. Ex-prostitutas, domésticas, pedreiros, traficantes. E outros e outras. Pobres todas e todos.

A perspectiva em que as histórias são narradas faz toda a diferença no coração e na cabeça dos leitores, irremediavelmente envolvidos pelo que leem. Em cada conto, o enredo começa como que de repente: constrói-se aos poucos, descolando-se de pequenas nadas, de gestos cotidianos, de sensações imprecisas. “Coisas nenhumas” que nas mãos da escritora e na voz da narradora fazem toda a diferença. E o leitor não larga a leitura, embora às vezes possa alongar o olhar do livro, para suas próprias lembranças.

Mas com certeza volta ao livro.

Por mais que dor e sofrimento pontuem as histórias, há também em todas elas a chama de uma vontade forte, de uma consciência que desperta, do aprendizado dos extremos da vida e da morte. Raiva. Muita. Lições que se aprendem – leitores e personagens – às vezes no choro do bebê recém-nascido, outras vezes na visão do cadáver que o camburão recolhe numa manhã carioca.

Para registrar histórias como as dos homens e mulheres que povoam seu belo e premiado livro, Conceição Evaristo compõe uma voz narradora forte e envolvente. Ainda que desataviada. Direta. Às vezes enriquecida por um ou outro vocábulo africano (creio), alguns Ys e Ks, ao lado dos nomes de muitas personagens conferem ao livro a marca da mestiçagem de nossa cultura.

A solidariedade da voz narradora com o que narra expressa-se tanto na atenção aos detalhes do cotidiano como na absoluta recusa ao sentimentalismo. A mais absoluta recusa que se possa imaginar... O leitor que se envolva. E como se envolve! Na raiva e na esperança. Esta sábia opção de Conceição Evaristo por uma dicção narrativa enxuta, confere extraordinária beleza ao livro e constrói sua identidade. Em várias das histórias, imaginação e fantasia temperam um cotidiano de carências e ausências. Nuvens, algodão doce, uma festa de aniversário.

É a vida e a esperança que nascem, esgueirando-se – na voz que narra a história – entre tiroteios onde não faltam balas perdidas e mortes acidentais. Raiva. Pois, como sabe Natalina, são “frágeis os limites entre a vida e a morte”. E são mesmo, não é? Mas também – como se aprende com a neta Querença, há que não esquecer os sonhos.

A menina, que encerra a história "haveria de sempre umedecer seus sonhos para que eles florescessem e se cumprissem vivos e reais. Era preciso reinventar a vida".

Aqui e agora.

E não será esta reinvenção da vida que este belo livro de Conceição Evaristo engendra e deixa nos leitores vontade de juntar-se a ela na tarefa?

Acho que sim.

 


1 Texto disponibilizado no Facebook da pesquisadora em 29.05.2016.

* Marisa Lajolo é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professora da Universidade Presbiteriana Mackensie, em São Paulo. Pesquisadora sênior do CNPq, tem inúmeras publicações nas áreas de história da leitura e de literatura infantil e infantojuvenil. É autora, entre outros, de trabalhos premiados como Monteiro Lobato livro a livro: obra infantil (IMESP, EdUNESP, 2008) e Gonçalves Dias, o poeta do exílio (FTD, 2011).

 

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