O véu das infâncias em Chupim,
de Itamar Vieira Junior
Kelvin Jorge Batista Silva*
Em agosto de 2024, Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado (2019) e do mais recente ganhador de Jabuti, Salvar o Fogo (2023), publica sua primeira obra dedicada às infâncias. Chupim segue a história e vida de Julim, uma criança como muitas outras de sua comunidade que ajudam seus pais na plantação de arroz, espantando os chupins que se alimentariam desse grão: “ ‘Menino, menino’, a voz do pai chamou / pela casa antes do sol nascer. / Era um convite para o despertar.” (p. 4).
Assim começa os dias de Julim, acordar tão cedo, antes mesmo dos pássaros. A realidade do menino não é novidade para os leitores de Torto Arado (2019), no qual acompanhava a vida das pessoas da comunidade de Água Negra que trabalhavam em uma plantação. Chupim é um pássaro preto que possui penas brilhantes e que é considerado uma “praga” pelos produtores de arroz, pois esses animais se alimentam dele. No livro, o chefe do pai de Julim instrui que os trabalhadores levem as crianças de manhã cedo para os campos para que elas corram na plantação e assim “as pragas, assustadas, vão embora” (p.10). O livro, apesar da sua aparente leveza e ingenuidade, traz uma forte crítica social sobre as condições trabalhistas e sociais no meio rural, assim como no primeiro romance do autor. Entretanto, essa crítica é apresentada através do ingênuo olhar de uma criança que ainda não compreende a situação em que ela e sua família estão inseridas. Existe um véu, um véu das infâncias, que é representado por meio do olhar do menino Julim. Esse véu “mascara” a realidade para aquela criança, servindo como um escudo para a preservação de uma infância que poderia ser retirada muito cedo, devido ao contexto de sua vida. O véu se torna uma ferramenta importante de proteção para que Julim possa viver, até onde é possível, uma infância “normal”, sem a necessidade de gerar uma conscientização da realidade em uma fase inicial da vida.
Por meio de um trabalho primoroso e cuidadoso, Itamar realiza diferentes associações e representações do chupim em relação aos personagens apresentados no livro. O pássaro é um ser que migra, pois, assim que uma plantação acaba, ele voa em busca de um novo lugar para se alimentar. Logo, o pássaro se assemelha às famílias da comunidade que se mudam em busca de emprego em outras plantações. O pássaro que dá título ao livro, assim como os trabalhadores, são seres que resistem e lutam para (sobre)viver onde se estabelecem. Além disso, a visão desses animais como pragas se expande para a visão que os donos das plantações têm sobre os trabalhadores, que são forçados a trabalhar em uma terra em que não podem se estabelecer, em condições precárias e por um valor muito abaixo do que seria o ideal. Uma outra face do chupim é a visão de Julim sobre o pássaro, um pensamento inocente e sem julgamentos que só uma criança é possível de imaginar. O menino enxerga os pássaros como seres injustiçados, seres que também mereciam poder se alimentar bem. Julim acredita na possibilidade de que todos possam coexistir em perfeito equilíbrio e isso traz à tona a base da luta dos trabalhadores pelo direito ao trabalho e à moradia adequada. Logo, o pássaro de asas negras oferece também essa imagem da liberdade, pois seu voo abre portas para uma vida sem amarras, e cujo destino está nas asas do próprio ser. Julim é esse menino “avoado”, esperançoso, gentil, ingênuo e inteligente, assim como o chupim que tanto ama.
Julim saiu feliz para avisar o pai:
“Encontrei um novo campo de arroz”.
Enquanto corria, ouvia o chacoalhar
das folhas e o vento dizer: “Menino,
menino, voando pelo caminho você
mais parece um chupim”. (p. 28)
Além de trazer uma história sensível e graciosa, a narrativa é acompanhada pelas pinturas magníficas feitas por Manuela Navas, uma artista visual cuja produção artística é voltada à representação e tematização dos corpos negros, do feminino e da maternidade. Em Chupim, as imagens ilustram a rotina das pessoas apresentadas na narrativa. As pinceladas da artista trazem uma ternura e ao mesmo tempo uma sensação de realismo à obra, apesar de não haver detalhes dos rostos das pessoas nas pinturas. Talvez por isso, as imagens abrem portas para realizar a representação de diversos rostos que se encontram na mesma situação dos personagens da narrativa. As telas que ilustram o livro carregam não só o individual, mas também o coletivo. As cores nelas presentes criam ainda uma gama de sensações no leitor, cores frias revelam um aspecto mais reflexivo e cru da realidade, enquanto cores quentes podem evidenciar o sentimento de aconchego, o olhar mais doce da criança perante a vida e as sensações de esperança e liberdade, além de realizar uma releitura de uma realidade mais forte.
(p. 23)
Portanto, Chupim é uma obra que demonstra que a boa literatura destinada às crianças é capaz de promover discussões e debates relevantes, formando, assim, desde a tenra idade, o leitor crítico. Este livro se torna essencial para quem deseja iniciar o desenvolvimento da reflexão em crianças que, assim como Julim, costumam ser subestimadas por acreditarem que elas não são capazes de desenvolver pensamentos críticos. Porém, Chupim é um convite de leitura não só para as crianças, mas também para as infâncias que residem em todos nós.
Belo Horizonte, novembro de 2024.
Referência
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Chupim. São Paulo: Baião, 2024.
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*Kelvin Jorge Batista Silva é graduado em Biomedicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), graduado no bacharelado em Inglês pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente é mestrando no Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. Atua como pesquisador no literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira disponível no endereço http://www.letras.ufmg.br/literafro .