A Carta da escravizada Esperança Garcia, escrita por ela mesma, e a formação do cânone literário afro-brasileiro

The Letter of the slave Esperança Garcia, written by herself, and the formation of the African-Brazilian literary canon

 

 

Elio Ferreira de Souza*

 

Resumo: A Carta de Esperança Garcia, de 6 de setembro de 1770, foi endereçada ao Governador da Capitania de São José do Piauí (MOTT, 1985, 2010), Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, uma “inusitada reclamação” (MOURA, 2004) por se tratar de uma escravizada que se dirige à principal autoridade do Piauí colonial setecentista. A epístola, resguardada as peculiaridades, é um marco parecido com a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500), missiva da chegada do branco ao Brasil. Significa afirmar que a petição de Esperança é o registro mais antigo da escravidão no país, de autoria de uma mulher negra, brasileira e cativa. Isso confere a essa narrativa o status da escritura de uma gênese da formação do cânon da literatura afro-brasileiro. Estabeleceremos também relações da carta de Esperança com o livro Incidentes da Vida de uma Escrava Contados por Ela Mesma (1861), de Harriet A. Jacobs, escritora estadunidense.

Palavras-chave: Esperança Garcia; carta; narrativa dos escravizados; Brasil; Estados Unidos.

Abstract: The “Letter” of Esperança Garcia, from September 6th, 1770, was addressed to the Governor of the Captaincy of São José do Piauí (MOTT, 1985, 2010), Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, a “non-precedent complaint” (MOURA, 2004) it is about a slave who addresses the main authority of the eighteenth-century colonial Piauí. The epistle, guarded the peculiarities, is a similar mark to the Carta de Pero Vaz de Caminha (1500), letter about the arrival of the whites in Brazil. It means that Esperança’s petition is the oldest written record regarding slavery in the country, authored by a black Brazilian, and captive woman. This concedes this epistolary narrative a scripture status of a genesis; of the formation of the African-Brazilian literary canon. We will also establish relations between the letter by Esperança and the book Incidents of the life of a slave told by herself (1861), by Harriet A. Jacobs, an American writer.

Keywords: Esperança Garcia; letter; slave narratives; Brazil; Estados Unidos.

1. Introdução

Eu Sou hua escrava de V.S. dadministração do Cap.am

Ant° Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am Lá foi

adeministrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia

co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella

passo mto mal.

A Primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas

enhum Filho meu sendo huã criança q. lhe fez estrair sangue

pella boca, em mim não poço esplicar q Sou hu colcham

de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada;

por mezericordia de Ds esCapei.

A segunda estou eu e mais minhas parceiras por

confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.

Pello q Peço a V.S. pello amor de Ds. e do

Seu Valim.to ponha aos olhos em mim ordinando digo

mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle m. tirou p.a

eu viver com meu marido e Batizar minha Filha

 

 

de V.Sa. sua escrava

EsPeranCa Garcia1

 

 

 

Figura 1 – Título

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Foto de Paulo Gutemberg, cedida ao autor deste artigo.

Teresina-PI, Brasil, 2015.

                         (AHU-Piauí, cx. 11, doc. 21).

 

Defende bell hooks que, quando produzimos conhecimento, os nossos discursos não incorporam apenas palavras de luta, mas também de dor – a dor da opressão. E, quando escutamos os nossos discursos, também se escuta a dor e a emoção contidas na sua precariedade: a precariedade, segundo hooks, de ainda sermos excluídas/os dos lugares a que acabávamos de “chegar”, mas onde dificilmente podemos “ficar”.

Grada Kilomba

2019

Entendo por narrativa dos escravizados no Brasil a obra escrita por eles e elas mesmas, homens e mulheres negras que resistiram à escravidão, cujo texto autobiográfico conta as experiências pessoais, coletivas e episódios relacionados aos incidentes fatídicos do cativeiro, narrados e protagonizados por esses heróis e heroínas negras da história. A carta de Esperança Garcia endereçada ao Governador do Piauí (1770) é a saga de uma mulher escravizada, que viveu no interior do Brasil. O relato escrito incita uma cronologia da “performance” (TAYLOR, 2013) a partir da escrita de dor e recusa à violência do regime de escravidão. Isso se traduz na “oralitura” (MARTINS, 2000) de uma escrita gestual do corpo, que narra cenas de crueldade para persuadir o branco/destinatário acerca das injustiças e brutalidades do sistema escravagista e, reivindicar os direitos que foram retirados de Esperança e colegas do cativeiro. Essa dinâmica da oralidade/escrita dos autores e autoras escravizadas instaura a formação de um cânon da literatura afro-brasileira. Essa forja e safra ou bigorna de artefatos e estratégias de contar histórias e temas são evocados em “Atlântico Negro”. (GILROY, 2001).

A exemplo, “o ponto de vista do narrador” (DUARTE, 2010), a narrativa de dentro, “incluindo aí a sua subjetividade” (CUTI, 2010, p. 57), a premonição da negritude na escrita, a herança oral de matriz africana (SOUZA, 2017), resistência, reivindicação por igualdade de direitos, resiliência. Esse arcabouço textual torna-se peculiar à episteme da obra literária de autoras e autores negros do Brasil, especificamente nos séculos XVIII e XIX, cujas estratégias de narrar perpassam as cortinas do passado para significar lugares de encruzilhadas e experiências dos autores/as afro-brasileiros contemporâneos. A escrita dos escravizados/as revela a gênese e a formação da narrativa autobiográfica de autoria afrodescendente. Diria algo mais como forja e safra na cosmologia de “escrevivências, em que o ato de escrever se dá profundamente cumpliciado com a vivência de quem narra, de quem escreve; […] o sujeito da escrita apresenta em seu texto a história do outro, também pertencente a sua comunidade” (EVARISTO, 2020, p.18). Essa narrativa é peculiar à obra de autores/as negras, que hoje têm publicado experiências pessoais e coletivas em forma de autobiografias, biografias, canções, cartas, contos, crônicas, diários, fábulas, poemas, repentes, romances etc.

Reafirmo que, a priori, pretendo investigar a missiva de Esperança, endereçada ao Governador da Capitania de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. Contarei um pouco da história, a vida da autora/protagonista e os eventos de dor em que esteve envolvida – o registro escrito e factual da resistência da escravizada contra os horrores da escravatura no Brasil da segunda metade do século XVIII. Almejo elucidar acontecimentos a partir da leitura de fontes primárias como os manuscritos de época, a memória oral, as ruínas das antigas construções, os sítios e peças arqueológicas. Itinerários que talvez nos guiem à revelação de fatos e enigmas relacionados à fuga, ao paradeiro – à vida dessa mulher negra, que deu novo significado à história da escravidão no nosso país e, especialmente, no Piauí. Até então, não há quaisquer registros do que teria sucedido a Esperança, uma vez consumada a denúncia por escrito contra o hostil e poderoso “Procurador” dos Algodões, e administrador das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth. Tudo nos leva a crer que o Capitão Antônio Vieira do Couto fora intimado a justificar-se perante o Governador, em consequência das práticas abusivas e excessos contra os escravizados das fazendas dos antigos Regulares da Companhia de Jesus. Contudo, pelo que se sabe ou consta nos registros escritos posteriores ao incidente, assinados por Couto, datados entre 1770 e1774, como o relatório de exportação de boiadas para a Bahia, não há quaisquer indicativos de punições mais graves, imputadas a ele pelo Governador do Piauí. Embora seja o único registro escrito conhecido de autoria de uma escravizada ou escravizado no Piauí colonial, a carta de Esperança não foi a única denúncia por escrito contra o sadismo, a violência e as mazelas do Capitão, além do seu favorecimento ilegal através da apropriação de manufaturados e alimentos produzidos pelos escravizados das fazendas do Fisco Real, sob a administração do referido algoz.

2. Narrativa de formação do cânone literário afro-brasileiro

A carta autobiográfica de Esperança antecipa o ideário de feminismo negro, “sororidade e solidariedade” (HOOKS, 2018, p. 28) entre as mulheres negras e cativas no sertão do Piauí colonial, praticamente duas décadas antes da Revolução Francesa, ocorrida em 1789. O relato de dor, persuasão, recusa, negaça, ginga e mandinga eleva-se de modo incisivo contra o algoz ao denunciar, em petição escrita, as agressões, e põe em dúvida a reputação do administrador dos Algodões perante os olhos do Governador. Suponho que, uma vez surpreendido pela inusitada carta de Esperança, o destinatário, ao ler os relatos e episódios de dor e coragem de uma mulher jovem e cativa, mãe e casada, a qual lhe confiara o próprio destino, de certo o Governador foi enredado pelo senso de responsabilidade do cargo que exercia, pela veracidade e contundência da trama narrativa escrita e instigante da cativa dos Algodões. Enfim, a crônica de “escrevivências” de Esperança é uma espécie de teia mágica. E, ainda, a forja e bigorna/safra de uma escrita do real cenário de dor e crueldade da crônica social dos escravizados no Brasil. Tal episteme torna-se peculiar à escrita oralizada e autobiográfica dos autores e autoras afro-brasileiros escravizados ou ex-escravizados. A exemplo, a carta “Sou tratado com pouco respeito” (1650), escrita pelo soldado alforriado Henrique Dias ao Rei de Portugal; os repentes e pelejas do afro-paraibano Inácio da Catingueira (?-1879), poeta não alfabetizado, contra o preconceito racial e o racismo de seus contendores; o livro de poemas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1859-1861) e as cartas de Luiz Gama, escritor afro-baiano e ex-escravizado; o livro Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua: uma Narrativa de Zoogoo (2017), publicada pela primeira vez em 1854, de Mahommah Gardo Baquaqua, autor africano escravizado no Brasil que, durante viagem num navio mercante aos E. U. A., foge do cativeiro e, anos mais tarde, escreve sua autobiografia.

Por conseguinte, temos conhecimento da existência material de apenas três documentos acerca da vida de Esperança Garcia: a carta endereçada ao Governador do Piauí, escrita por ela mesma, datada de 6 de setembro de 1770, corpus da nossa investigação; uma carta anônima, sem data e identificação, localizada no Arquivo Histórico do Piauí, Teresina; o documento “Escravos dos Algudoens”, constante na Relação dos Escravos das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth, de 1778, assinada por Manuel Antunes da Assumpção e, parte do acervo da Biblioteca Nacional, do Brasil. Neste sentido, a heroína negra, que conspirou contra a violência e o terror do cativeiro em razão dos incidentes cruéis e humilhantes da Fazenda dos Algodões, uma das onze estâncias da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth. A carta é a história pessoal de uma mulher cativa de apenas dezenove anos de idade, casada e mãe de dois filhos. Sob esse aspecto, devo admitir, que “a autobiografia não comporta graus: é tudo ou nada” (LEJEUNE, 2014, p. 29).

O escravizado era uma “peça”, objeto ou coisa do regime escravista. Ocupava a mísera condição de bem semovente, pois assim eram tratados os reféns do cativeiro (homens, mulheres, crianças) nas fazendas de gado, roças e, engenhos de cana-de-açúcar no interior do Brasil setecentista, tais quais os bois, cavalos, cargas de rapadura, fardos de algodão, açúcar, farinha etc. Nesse sistema de desumanização de homens e mulheres negras, Esperança dá significado a sua recusa, por excelência, ao escrever a carta e empreender sua própria fuga da “Caza de Residência”, casa e sede da administração das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth, para onde fora levada, junto com os filhos, Pedro e Paula, contra sua própria vontade, para ser “cozinheira” na casa do Capitão Antônio Vieira do Couto, o algoz do incidente narrado na carta.

Em dezessete linhas, com os recursos da linguagem rica em metáforas como: “trovoadas de pancadas”; “colcham de pancadas”. Esperança conta sua saga ao Governador. Ela diz que é uma “escrava”, casada, – “dadministração do Cap.am Antº. Vieira de Couto […]”. Narra que desde a chegada, o referido Capitão havia lhe retirado dos Algodões, onde vivia com os filhos e o marido, para ser cozinheira na casa dele, o que a impedira da convivência com o marido em família. Conta também que ali, na nova morada, passava muito mal. Fala que o filho, Pedro, de três anos, é muito maltratado, uma criança, que chegou a sangrar pela boca, em consequência das - “grandes trovoadas de pancadas”, desferidas pelo Capitão. Conta também que, ela mesma, Esperança, não podia explicar a razão de tantos açoites e crueldades, que se tornara – “um colcham de pancadas”. Certa vez, foi peiada pelo Capitão. Caiu do sobrado escadas abaixo, mas escapou – “por mezericordia de Ds esCapei”. A autora narra que ela mesma e as “parceiras” estavam há três anos por confessar. Além da filha de colo, Paula, e mais duas crianças das colegas de escravidão por batizar.

Por último, pede ao Governador da Capitania do Piauí que interceda no conflito contra os abusos e truculências praticadas pelo administrador da Fazenda dos Algodões, dando ordem para que este, em cumprimento do mandado daquele superior, envie Esperança de volta ao seu lugar de origem, aos Algodões, para ela viver com o marido, Ignácio Angola, e batizar a filha: “Pello q Peço a V.S. pello amor de Ds. e doSeu Valim.to /ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a/Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle m. tirou p.a eu/viver com meu marido e Batizar minha Filha”. Infelizmente, até o momento, não se registraram quaisquer provas documentais acerca da resposta do Governador à carta de Esperança. No entanto, oito anos mais tarde, o nome de Esperança, do esposo Ignácio Angola, dos prováveis filhos Pedro e Paula, além de outros escravizados e escravizadas constam na lista já citada “Escravos dos Algudoens”, no documento manuscrito Relação dos Escravos das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth (ASSUMPÇÃO, 1778). À época, os Algodões e a Inspeção já se encontravam sob a administração do novo Inspetor, Manoel Antunes da Assumpção. Em 1774, Assumpção sucedera ao Capitão Antônio Vieira do Couto, por motivo da morte do último, em maio do mesmo ano (AHU-Piauí, cx. 11, doc. 21), de causa desconhecida por nós.

Reporto-me, aqui, a outro episódio de violência, narrado no segundo parágrafo da carta petição, cuja cena de horror parece transcorrer no interior da casa grande, quando a trama é desencadeada nos degraus das escadas, na parte mais elevada, que dava acesso às dependências do sobrado. Ali, no andar superior, de certo, Esperança fora atirada das escadas pelo Capitão. Por pouco, a tentativa de homicídio não resultou na morte de Esperança, que fora amarrada pelos pés, peiada como se fosse um animal e impedida de se locomover livremente: “tanto q cahy huã vez do Sobrado/abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei”. A provável casa, a que se refere a autora e protagonista da carta, encontra-se, hoje, em total ruína, demolida pelos anos e séculos de abandono. Os escombros estão localizados na zona urbana do centro da cidade de Nazaré do Piauí, onde à época, teria sido a morada do Inspetor algoz, ao mesmo tempo “Caza da Residência” e sede da administração das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth. A casa da sede situava-se num terreno de elevações de frente para um grande pátio. O prédio seria obra dos antigos proprietários, os Jesuítas proscritos por El Rei de Portugal, Dom José I. Da varanda da frente da casa grande, ter-se-ia uma visão privilegiada do grande pátio. Ali os bois oriundos das várias fazendas, trazidos pelos criadores ou vaqueiros das respectivas estâncias, passariam sob a revista e avaliação do Inspetor para o transporte por terra e comercialização na Bahia. A viagem devia durar muitos dias sertão adentro até chegar a Salvador, o destino previsível da boiada, sob os cuidados dos vaqueiros e escravizados.

Na minha infância e adolescência, conheci a maioria daquelas paragens. No entanto, somente durante as três últimas viagens de visitas exclusivas aos sítios, com a propriedade de pesquisador, atentei-me de forma mais sistemática para obter essas informações com as comunidades quilombolas remanescentes, que vivem nessas fazendas. Das construções antigas, localizei, ainda intacta, apenas a casa da Fazenda de Baixo, provavelmente mais recente, do século XIX. Os prédios antigos, em ruínas, foram substituídos, no Povoado Serrinha, São Francisco do Piauí. A antiga Fazenda dos Algodões ficava a aproximadamente 30 km, ou cinco léguas, pela rodovia, e a 18 km “por dentro”, três léguas a pé ou no lombo de animal. Da infância, quando andei por esses lugares remotos, nos engenhos de rapadura e nas farinhadas, tenho algumas vagas lembranças da casa grande avarandada e compartimentos enormes da Fazenda dos Algodões, ainda na década de 1960.

3. A carta autobiográfica de Esperança: uma narrativa de experiência e dor do escravizado no Brasil

A carta de Esperança é a voz da senzala, cuja escrita de experiência pessoal e coletiva assume a forma da narrativa dos/as escravizados/as. Esse relato possui caráter multifacetado da crônica “como expressão literária híbrida, ou múltipla” (MOISÉS, 1974, p. 133). O texto foi escrito dez anos depois da expulsão e sequestro dos bens aos padres da Companhia de Jesus, antigos proprietários dessas estâncias, proscritos por Dom José I, El Rei de Portugal. Os episódios do incidente são narrados em primeira pessoa, cuja autora e protagonista denuncia maus-tratos e requer direitos para si e a coletividade de escravizados. Os estratagemas do discurso literário ganham ênfase no corpus da narrativa, a narradora/protagonista e cativa forja em espiral a dinâmica de narrar por dentro dos episódios vivenciados por ela mesma e escravizados/as da Fazenda Algodões.

Ao atentarmos mais uma vez para a Figura 1, e a transcrição ipsis litteris da carta de Esperança Garcia (MOTT, 2010, p. 141), podemos perceber que se trata de uma crônica literária sobre os acontecimentos diários, a história real da vida no cativeiro das fazendas de gado vacum e cavalar da Inspecção de Nazareth, no Piauí. A narrativa é a voz da senzala – a escrita da experiência pessoal e coletiva dos escravizados e escravizadas, com o caráter multifacetado da crônica “como expressão literária híbrida, ou múltipla” (MOISÉS, 1974, p. 133). O texto foi escrito dez anos depois da expulsão e sequestro dos bens dos padres da Companhia de Jesus, antigos proprietários dessas estâncias, proscritos por Dom José I, El Rei de Portugal. Os episódios do incidente são narrados em primeira pessoa, a autora e protagonista denuncia maus tratos e requer direitos para si e a coletividade de escravizados.

Esperança Garcia era uma “escrava”, uma mulher negra. Os contextos histórico e social do cativeiro eram-lhe desfavoráveis à fala e à dignidade humana sob diversos aspectos. Viveu no século XVIII, nas fazendas do interior do Piauí, quase um século antes das campanhas abolicionistas terem início no Brasil. A cativa alfabetizada fala como subalterna e “sujeito consciente” (SPIVAK, 2018, p. 110). Conta sua história para “legitimar” o “lugar de fala” (RIBEIRO, 2017, p. 79), o espaço reivindicado por ela, para si mesma, para os filhos, o marido e o grupo de escravizados negros. Em dezessete linhas de narrativa, diz, com engenhosidade e coragem, quem é e do que se trata sua missiva. Quando escreveu a carta, era muito jovem.

É provável que se encontrasse refugiada, em algum lugar até hoje ignorado. Recompunha-se da longa caminhada de 60 km, ou dez léguas, na estrada, “cortando por dentro”. Segundo o sr. Expedito, morador do atual quilombo Algodões, seria essa a distância do antigo trajeto a pé ou a cavalo, da “Caza da Residência”, localizada na sede das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth à cidade de Oeiras, então capital do Piauí. Hoje, à distância de 69 km pela estrada de asfalto. A antiga cidade recebera o nome em homenagem ao Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, à época influente Secretário de Dom José I, um ano depois da carta, de 3 de setembro de 1759, em que este expulsou os Jesuítas de Portugal e dos domínios do seu Reino, conforme transcrição ipsis litteris de trechos da referida Carta Régia:

Nestas indispensaveis circunstancias tenho pois determinado que os sobreditos Regulares corrompidos; deploravelmente allienados do seu santo Instituto; e manifestamente indispostos por tantos, taõ abominaveis, e taõ inveterados vicios para voltarem á observancia delle; como notorios Rebeldes, Traidores, Adversarios, e Agressores que tem sido, e saõ actualmente da minha Real Pessoa, e Estados, e da paz publica, e bem commum dos meus fieis Vassalos, sejam prompta, e effectivamente exterminados, desnaturalizados, proscriptos, e expulsos de todos os meus Reinos, e Dominios, para nelles mais nao poderem entrar : Ordenando que debaixo da pena de morte natural e irremissivel nenhuma Pessoa de qualquer estado, e condiçaõ que seja lhes dê entrada nos mesmos Reinos, e Dominios ou com elles tenham qualquer correspondencia, ou comunicaçaõ verbal, ou por escripto; ainda que aos mesmos Reinos, e Dominios venhaõ em habitos diversos; e que hajaõ passado a qualquer outra Ordem Religiosa; a menos que para isso tenhaõ immediata, e especial licença minha, os que assim os admittirem, ou practicarem […] (D. JOSÉ I, 1759).

O sequestro das referidas fazendas, orquestrado pelo Marquês de Pombal, foi seguido do desterro dos religiosos da Companhia de Jesus, os padres Jesuítas, o que teria afetado de algum modo os costumes, relações de convivência e a vida dos/as escravizados/as, que passaram a pertencer ao Fisco Real e, consequentemente, a viverem sob a gestão dos novos administradores.

Em uma das várias fugas que empreendera para livrar-se dos açoites e crueldades do administrador da Fazenda dos Algodões, Esperança Garcia teria fugido da “Caza da Residência”, sede administrativa das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth, juntamente com os filhos, com destino à então capital do Piauí, Oeiras. No itinerário de fuga e ao chegar ao destino desejado, suponho que Esperança tenha tido ajuda de parentes e colegas do cativeiro, assim como no trajeto para chegar à sede do Governo e entregar a carta em mãos do próprio Governador, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. De certo, Esperança decidira por si mesma escrever a carta, como também de algum modo recebera o apoio e incentivo de partidários da resistência ao agressor. Esses seriam sabedores da história de violência e crueldade contra Esperança, como também do astucioso engenho do saber ler e escrever da protagonista. Já no limite do suportável, em consequência das pauladas, socos, pontapés e outras formas de agressão, tentativa de violação ou estupro, Esperança, a princípio, deve ter também recorrido ao ex-administrador da Fazenda dos Algodões, que ali estivera como gestor entre os nove e os dezesseis anos de idade da narradora do episódio. Consta em documento oficial da época que, no mesmo ano em que os Jesuítas foram desterrados, José Estevão Falcão assumira a administração da Fazenda dos Algodões, mantendo-se ali como administrador no período de 1760 a 1767. De certo, Falcão conquistara de algum modo a confiança de Esperança, à época criança, e dos demais homens e mulheres cativas. De 1767 a 1774, os Algodões e todas as outras fazendas da Inspecção de Nazareth, inclusive a Casa da Residência, ficaram sob a administração do Capitão Antônio Vieira do Couto – o algoz de Esperança. (PIAUÍ, 1761).

Pelo que nos parece, Falcão tivera por grande desafeto Couto, seu colega e sucessor, o que também nos faz crer que teria sido de fato o primeiro, o provável autor de uma carta anônima (SILVA, 2017), que também põe em dúvida a reputação do último. Se não o próprio Falcão, algum branco de nome ignorado dera o papel, a pena, a tinta e, talvez, lugar seguro e apropriado para Esperança escrever a carta. Isso é o que podemos deduzir, ante a vigilância do sistema escravagista e mesmo a extrema pobreza do escravizado em lugar tão longínquo e isolado como o sertão do Piauí setecentista e colonial, que certamente não lhe permitiria a compra desses artefatos para pôr em prática ação tão incomum aos “condenados da terra” (FANON, 2010), como a hábil iniciativa de escrever a carta do próprio punho para reivindicar direitos e denunciar um agressor muito poderoso.

De outro modo, o que me parece improvável, teria Esperança, no ato da fuga, subtraído papel, pena e tinta da “Caza da Residência”, onde servira à subjugação do trabalho escravo e tortuoso, ao sadismo e às humilhações do Capitão Antônio Vieira do Couto. Caso assim tenha ocorrido, tornar-se-ia motivo de maior agravamento para o algoz justificar as odiosas reprimendas contra a protagonista do incidente.

Supomos que o Governador teria condenado as práticas abusivas levadas a efeito pelo Capitão Antônio Vieira do Couto, o que seria prudente da parte da autoridade superior. Isso haveria na tentativa de inibir os excessos de violência, cujas práticas poderiam resultar em atmosferas de hostilidade, mal-estar e conflitos, como a perturbação da convivência entre a senzala e a casa grande. Essa decisão seria a mais convincente e provável, pois os governadores e funcionários da administração colonial tiveram por compromisso e código irrefutável garantir os interesses e a preservação do patrimônio das fazendas de El Rei de Portugal.

Mediante resposta favorável da carta petição em favor próprio de Esperança, ela teria regressado com os filhos para a Fazenda Algodões para viver com o marido, de quem havia sido separada e tido dificultada a convivência pelo Capitão Antônio Vieira do Couto. Quanto ao futuro de Esperança, não há qualquer registro material de que tenha regressado aos Algodões à época desejada, tampouco se o Governador do Piauí teria lhe dado alguma resposta. Contudo, há o registro escrito do nome “Esperança Crioula 27 anos” oito anos depois do incidente, na relação dos “Escravos dos Algudoens” de 1778, conforme alusão em páginas anteriores. Torna-se prudente ainda considerar outros documentos, que se referem à reincidência de práticas condenáveis do citado Capitão, as quais teriam sido negligenciadas graças à proteção de políticos influentes junto à administração do Governador do Piauí.

Esperança era uma criança, tinha apenas nove anos de idade, quando presenciou a chegada do primeiro gestor da Fazenda dos Algodões, nomeado pela ordem de El Rei de Portugal, uma vez desterrados os extintos Regulares da Companhia de Jesus. A criança negra dos olhos vivos, grandes, puxados, e inteligentes, talvez tenha assistido mais assustada que curiosa à chegada de José Esteves Falcão, que sucedera à administração dos Jesuítas desterrados. A vida de Esperança começou a mudar no dia 10 de março de 1760, “com um novo senhor: El Rei de Portugal […], o então governador do Piauí, João Pereira Caldas, cumprindo ordens do marquês de Pombal, confiscou os bens administrados pela Companhia de Jesus, prendeu os Jesuítas e os remeteu à Bahia” (LIMA, 2005, p. 24).

Uma vez expulsos os Jesuítas e sequestrados os seus bens, foram nomeados novos gestores do Fisco Real. O Tenente de Cavalaria José Esteves Falcão ascendeu ao posto de Administrador das fazendas “Serrinha” e “Algudoens” e da “Rezidência de Nazareth” (PIAUÍ, 1761). No mesmo documento de 1 de novembro de 1760, assinado por João Pereira Caldas, Governador do Piauí, o Capitão Antônio Vieira do Couto fora nomeado para o cargo de Administrador das fazendas “Possoens” e “Campo Grande”, conforme transcrição fidedigna dos documentos abaixo (PIAUÍ, 1761).

Em 1767, Esperança Garcia tinha dezesseis anos. Pedro, o filho primogênito, seria uma criança de colo. Ela teria se casado entre os quinze e os dezesseis anos com Ignácio Angola, trinta anos mais velho que a jovem esposa, um africano, conforme o nome de nacionalidade confere. Foi quando o então administrador José Esteves Falcão, depois de quase sete anos à frente das fazendas de gado Algodões e Serrinha e da Residência de Nazareth, foi sucedido por Antônio Vieira do Couto. O último ascendera ao posto de “Inspetor das Fazendas e da Residência de Nazareth”, ao total de onze fazendas de criação de gado bovino e cavalar, roças e sítios. A partir desse dia nefasto, a vida de Esperança passou a tomar o rumo do caminho mais desditoso, que poderia acontecer a uma mulher ou homem escravizado, como a separação da família, e, consequentemente, dos filhos, marido, esposa, convivas e parentes, tornando de fato o impedimento da união familiar do sujeito negro. O documento datado de dezesseis de agosto de 1767, assinado pelo Governador de São José do Piauí, João Pereira Caldas, refere-se à nomeação de Antônio Vieira do Couto para administrar as onze fazendas da Inspecção de Nazareth, incluindo a Fazenda dos Algodões, onde vivia Esperança e, por último, a Residência de Nazareth, sede administrativa das fazendas, conforme transcrição ipsis litteris:

Em execução da Real Ordem, […], nomeio ao Capitão Antonio Vieira do Couto por Inspector das Fazendas da Tranqueira de Baixo, Serrinha, Algudoens, Olho d’Água, Catarens, Genipapo, Guaribas, Mato, Gameleira do Mimbó, Mocambo, Lagoa de São João, Residência de Nazareth (PIAUÍ, 1767).

4. A história de duas mulheres escravizadas: Esperança Garcia e Harriet A. Jacobs

A carta de Esperança Garcia é um testemunho raro e precioso da crônica da escravidão no Brasil, pelo seu significado para a vida, a cultura e a história do negro brasileiro. Esse tipo de narrativa é uma revelação do mundo de homens, mulheres e crianças que fizeram a travessia forçada do “Atlântico negro” (GILROY, 2001) para viver a mais cruel e humilhante experiência humana – a escravidão. Há quase quinhentos anos, a História e a memória do negro brasileiro vêm sendo silenciadas e desvirtuadas e, mesmo nos dias de hoje, têm ressurgido discursos e práticas racistas, colonialistas e, necropolíticas, responsáveis pelo genocídio de milhares de jovens e crianças negras nos morros, comunidades e periferias pobres das metrópoles brasileiras. Soma-se a esses episódios fatídicos o negativismo da ciência, o elogio ao ódio, o preconceito, o racismo estrutural e ações governamentais contra o estudo e ensino sobre gênero, história, filosofia e, sociologia nas escolas de Ensino Básico, agravados pelas políticas do atual governo. O Brasil também ocupa a vergonhosa posição de maior traficante de africanos escravizados nas Américas. Temos um número muito reduzido de obras escritas por aqueles que viveram a experiência do cativeiro no nosso país. No entanto, esse tipo de narrativa dos escravizados no Brasil, escrito por eles e elas mesmas, significa o registro da história real e a vida em regime de escravidão, eventos narrados a partir de experiências pessoais e coletivas, e do ponto de vista do negro brasileiro ou afrodescendente.

Assim, torna-se oportuno, investigarmos a função social das slave narratives dos Estados Unidos da segunda metade do século XVIII à década de 1860, escritas durante os anos que antecederam a abolição da escravatura naquele país, consumada em 1865. Ali, mais de uma centena de escravizados/as fugitivos/as, em geral sob o apoio e incentivo de grupos abolicionistas ou de amigos, escreveram e publicaram a história deles e delas mesmas, de parentes e parceiros, de homens e mulheres que viveram a experiência nefasta da escravidão. Isso foi o que pudemos constatar na leitura do livro Incidentes da vida de uma escrava contados por ela mesma (1861), de Harriet A. Jacobs. A autora conta as experiências de mulher escravizada nos Estados Unidos. Depois de estratégias frustradas e esforços sobre-humanos por manter-se foragida, escondida na casa da avó durante seis a sete anos, em lugares insalubres, totalmente exíguos e com ar irrespirável como o de debaixo do assoalho, e do teto da casa, Harriet consegue empreender com sucesso a fuga do cativeiro, ainda na adolescência, quando a história de crueldades e infortúnios da escravidão se lançou sobre ela e seus familiares. Dessa obra, destacamos um testemunho breve e real, que dá a noção do que foi na verdade a fábrica dos holocaustos e flagelos – a escravidão do africano e descendentes negros, pois:

Seus escravos eram poucos, e quando morreu foram todos distribuídos entre os parentes. Cinco deles eram filhos da minha avó e tinham tomado o mesmo leite que alimentara os filhos de sua mãe. Apesar da prolongada e fiel servidão de minha avó aos seus senhores, nenhum de seus filhos escapou do leilão. Essas máquinas vivas feitas por Deus não são, aos olhos de seus senhores, mais do que o algodão, ou os cavalos que criam (JACOBS, 1988, p. 27).

Do mesmo modo que a autobiografia de Harriet narra a história pessoal dela mesma e a história de luta, dor e infortúnio dos afrodescendentes escravizados nos Estados Unidos, a carta de Esperança Garcia conta também a história real de sua vida e os incidentes do cativeiro no Brasil, na Fazenda dos Algodões. A missiva da afro-brasileira é a crônica dos acontecimentos diários da escravidão nas fazendas de gado do Piauí colonial e escravagista. O estilo, a estética da narrativa autobiográfica são de natureza “negralizada” (SOUZA, 2017, p. 308), “crioulizada”, diria certamente Glissant (2005), cuja peculiaridade dir-se-á também da petição epistolar esperanciana. Admitimos por esse lugar de trânsito a apropriação da escrita do branco, a ressignificação do modelo da petição setecentista pela fala/escrita de uma mulher negra subalternizada pela escravidão. O fluxo em espiral da escrita esperanciana é a tradução da encruzilhada de experiências, a cosmogonia da tradição africana na diáspora, a recusa, a dor, o desespero, algum rastro, algumas pegadas ou qualquer coisa de esperança levadas a feito na oralização da escrita, nas canções, poemas, contos, narrativas que têm sido reforjadas na bigorna/safra das literaturas afrodescendentes.

A escrita de Esperança preenche as prerrogativas da narrativa de “uma escre(vivência) de dupla face” (EVARISTO, 2005, p. 201) por tratar de registro pioneiro: – a escritura de uma mulher negra sobre a vida e o trabalho cativo nas roças e fazendas distantes, no Brasil setecentista, cuja “escrita de nós” (EVARISTO, 2020) prima pela veracidade e dramaticidade dos episódios de dor da vida em cativeiro. Subjetividade, lírica, maestria na forma de narrar a história enredam o leitor numa teia de comoções: “Eu Sou hua escrava de V.S. dadministração do Cap.am/Ant° Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am Lá foi/adeministrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia/co meu marido, para ser cozinheira da sua caza,/Eonde nella passo mto mal”. O ponto de vista da narradora, o “lugar de fala” (RIBEIRO, 2017) da mulher negra e cativa, a solidariedade textual em favor das “parceiras” e escravizadas evidenciam o tom premonitório da negritude literária no Brasil, o ativismo de gênero e etnia. Na missiva ao Governador Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, Esperança fala como sujeito consciente, em nome dela mesma e da dor de uma escravizada, dos filhos e marido: “A Primeira hé q. ha grandes trovadas de pancadas/enhum Filho meu sendo huã criança q. lhe fez estrair/Sangue pella boca, em mim não poço esplicar q Sou hu/Colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado/abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei”.

A narradora se solidariza, especialmente, com as “parceiras” do cativeiro, mulheres negras e cativas, o que também configura de forma premonitória a consciência de gênero e sororidade entre mulheres negras e escravizadas, a que já nos referimos em páginas anteriores: “A segunda estou eu e mais minhas parceiras por/Confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais/por Batizar”. A carta de Esperança assemelha-se ainda ao estilo do roteiro para projeção de uma película cinematográfica sobre a experiência real e traumática de uma mulher negra e cativa na Fazenda dos Algodões, uma das principais fazendas de criação extensiva de gado bovino do Piauí colonial e escravagista.

A carta autobiográfica de Esperança é a história real, breve e comovedora das experiências dessa mulher negra e cativa, filhos, marido, das amigas também escravizadas e dos filhos destas, submersos na condição mais humilhante e cruel – o cativeiro. A respeito disso, podemos ouvir mais uma vez a voz da estadunidense Harriet A. Jacobs que, trinta anos depois de fugir do cativeiro, escreveria sua autobiografia, Incidentes da Vida de uma Escrava Contados por Ela Mesma (1861). No Prefácio, Jacobs fala do sentimento e da dor incurável da escravidão: “Só pela experiência se pode compreender como é profundo, e escuro, e repugnante aquele poço de abominações […]”. (JACOBS, 1988, p. 23). A publicação de Incidentes deu-se no auge das campanhas abolicionistas dos Estados Unidos e às vésperas da Guerra de Secessão, que duraria quatro anos de intensa guerra entre o Norte, abolicionista e o Sul, escravocrata, finalizando-se em 1865, com a vitória dos nortistas e a abolição da escravatura no país.

A carta da cativa da Fazenda dos Algodões foi escrita quase um século antes da publicação da autobiografia de Harriet A. Jacobs. Apesar de toda e qualquer forma de cativeiro se brutal e desfavorável ao escravizado, eram remotas as condições de fuga do cativeiro nas antigas fazendas de gado, pertencentes à Coroa de Portugal em lugares longínquos do Piauí, sobretudo pela dificuldade de sobrevivência em se tratando de mulher e mãe de dois filhos ainda muito pequenos. Além disso, na época, não se cogitava da existência de quaisquer organizações abolicionistas no Brasil.

Esperança Garcia nasceu e viveu no Brasil. Como já nos referimos anteriormente, quando escreveu ao Governador do Piauí, era “escrava” e cozinheira da Fazenda dos Algodões, uma das muitas fazendas de criação de gado no interior do Piauí. Embora naquela ocasião, tenha sido levada contra sua própria vontade para a Casa da Residência, sede das fazendas da Inspeção de Nazareth e casa do Capitão Antônio Viera do Couto. Até o momento, não há notícias da existência de quaisquer registros documentais, que constatem precisamente o ano e o dia do nascimento de nossa protagonista e heroína negra. No entanto, como já mencionado, foi constatada a existência de documentos manuscritos datados de 1778, nos arquivos da Biblioteca Nacional, do Brasil, que registram a idade de “Esperança crioula”, do esposo “Ignácio Angola”, de prováveis filhos do casal e de outras pessoas malfadadas que viviam naquele regime de cativeiro, conforme Relação dos Escravos das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth. Na listagem dos “escravos” da Fazenda dos Algodões, daquele ano, consta que “Esperança” teria 27 anos de idade, e o esposo “Ignácio Angola”, 57. Pelo que se tem observado nos registros escritos, à época das fazendas de gado do Piauí, o termo “crioula” era usado habitualmente pelo regime de escravatura para identificar a mulher escravizada nascida no Brasil, ao passo que “crioulo” teria função semelhante para também identificar a nacionalidade do homem escravizado.

Isso legitima, ironicamente, a nacionalidade de Esperança Garcia, uma mulher negra e escravizada na sua própria terra, o Brasil, e subalternizada às experiências de dor do cativeiro, como violência, violação sexual, humilhações, ódio irredutível, sadismo. Sabe-se muito pouco da vida dessa protagonista. A saga e a história de resistência de Esperança, a cada dia que se passa, tem feito dessa mulher negra e cativa uma estrela guia no céu de crescente esplendor, pelo que ela significa para a História da formação do sentimento de negritude e símbolo de resistência em defesa dos direitos da mulher negra no Piauí e no Brasil.

A Relação dos Escravos das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth, a que tenho me referido, repito, é de 8 de setembro de 1778. Constitui-se em um dos três e únicos registros materiais, que comprovam a existência de Esperança. Pelo que se tem constado ou constatado, até o presente, este manuscrito seria a única prova material de que Esperança teria voltado a residir ao lado dos filhos e marido, na Fazenda dos Algodões e, possivelmente, dado à luz outros filhos e filhas, além dos já sabidos pelos nomes de Pedro e Paula. O documento citado acima foi assinado, precisamente, oito anos e dois dias após a data da carta de Esperança e, coincidentemente, no mesmo mês de setembro, quando viera à luz a narrativa escrita e protagonizada pela “escrava”, cuja escritura registra o amargo incidente dos Algodões, em linhas capazes de comover e transportar para os dias de hoje a imagem real e o significado de ser mulher negra e escravizada no interior do Brasil colonial, no terceiro quartel do século XVIII. A mesma Relação dos Escravos da Inspecção parece também nos revelar alguns episódios de certa forma surpreendentes, relacionados à vida de Esperança, por constar da assinatura de Manuel Antunes da Assumpção, o então Inspetor das Fazendas de Nazaré do Piauí, que sucedera ao antigo administrador e algoz de Esperança, Antônio Vieira do Couto, após o falecimento deste, em 12 de maio de 1774.

5. Considerações finais

A narrativa de Esperança impõe-se como escrita de formação do cânon da literatura afro-brasileira, enquanto relato de experiência pessoal e coletivo escrito e protagonizado por uma mulher negra e cativa. Esse manuscrito constitui uma peça raríssima para a crônica histórica e social da escravidão no Brasil e, em especial, como texto iniciático da narrativa de “escrevivência” (EVARISTO, 2020) de autoria negra no nosso país, que denuncia a brutalidade da escravatura, como também demonstra resistência e cumplicidade da autora na defesa dos direitos de si e do outro – filhos, marido e parceiras de infortúnio.

A carta de Esperança é uma apropriação do modelo de petição setecentista do branco, que a autora utiliza para denunciar os abusos do administrador das fazendas de gado e requerer direitos junto ao Governador da Capitania do Piauí. Nesse sentido, a narrativa estabelece um marco iniciático na cosmologia da escrita afro-brasileira, marcada pela tradição oral africana, pelos ritmos e artefatos da língua falada pelo povo negro não letrado, subalternizado pela escravatura no Brasil. Acrescentam-se a herança e estilos da narrativa griot, como “os griots músicos, os griots “embaixadores”, os griots genealogistas” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.193), cujos guardiães da memória africana, contadores de histórias reais, cantores, conselheiros de reis e imperadores, profetas, detentores de diversos saberes e ciências, exerceram e ainda exercem papel fundamental na transmissão de conhecimento e manutenção da tradição cultural do seu povo ou nação. Também jamais poderíamos negligenciar o legado das narrativas de experiência, os contos, fábulas, canções, memórias dos velhos e velhas contadoras de história, especialmente, “os condenados” (FANON, 2010) pelo sequestro colonial e descendentes em diáspora, no Novo Mundo.

A narrativa de experiência de Esperança; a Autobiografia de Mohammad Gardo Baquaqua, africano escravizado no Brasil; a carta e poemas de Luiz Gama, poeta baiano e ex-escravizado; os versos do poeta repentista Inácio da Catingueira, paraibano, escravizado não letrado; são alguns exemplos formadores de uma episteme da literatura afro-brasileira, cuja tradição tem se afirmado na dinâmica das relações estabelecidas entre as narrativas de origem à escrita de autoras e autores negros, que escreveram e publicaram suas obras durante e depois da escravatura, como também autores e autoras contemporâneas.

Nota

1. In: Aletria, Revista de Estudos de Literatura, 32, n. 1, jan-mar 2022.

Referências

ASSUMPÇÃO, M. A. Relação dos Escravos das Fazendas da Inspecção de Nossa Senhora de Nazareth. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional do Brasil, 1778.

BAQUAQUA, M. G. Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua: um nativo de Zoogoo, no interior da África. Tradução de Lucciani M. Furtado. São Paulo: Uirapuru, 2017.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.

D. JOSÉ I. Carta num. XVII, de 3 de setembro de 1759. Lisboa: s. n., 1759.

DUARTE, E. A. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: Terceira Margem, Rio de Janeiro, n. 23, p. 113-138, 2010.

EVARISTO, C. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R. (Org.). Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. P. 26-47.

EVARISTO, C. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, N. M. B.; SCHNEIDER, L. (Org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005. p. 218-228.

FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.

GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade de Candido Mendes, 2001.

GLISSANT, É. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (Org.). História geral da África, I: metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010, p. 167-212.

HOOKS, b. Não serei eu mulher? As mulheres negras e o feminismo. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro, 2018.

JACOBS, H. A. Incidentes da vida de uma escrava contados por ela mesma. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano. Tradução de Nuno Quintas. Lisboa: Orfeu Negro, 2019.

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.

LIMA, S. O. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação no Piauí: 1822-1871. Passo Fundo: UPF, 2005.

MARTINS, L. M. A oralitura da memória. In: FONSECA, M. N. S. (Org.) Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

MOTT, L. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: APL, 2010.

MOTT, L. R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portela: Governo do Estado do Piauí, 1985.

MOURA, C. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

PIAUÍ. AHU. Ofício do Governador João Pereira Caldas ao ex-secretário da Marinha e Ultramar Tomé Joaquim da Costa sobre o que se fez com as fazendas dos jesuítas. Cx. 7, doc. 11, D. 445, Piauí, 11 fev. 1761.

PIAUÍ. AHU. Ofício do Governador do Piauí João Pereira Caldas ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a nomeação de três inspetores para a administração das fazendas dos jesuítas. Cx. 9, doc. 5, 7. D. 588, Vila da Moucha, 16 ago. 1767.

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

SILVA, M. C. “Não convém negro sem amo”: escravos, índios e jesuítas nas fazendas da Companhia de Jesus na Capitania de São José do Piauí, 1750-1800. África(s), Salvador, v. 4, n. 8, p. 32-45, 2017.

SOUZA, E. F. Poesia negra: Solano Trindade e Langston Hughes. Curitiba: Appris, 2017.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2018.

TAYLOR, D. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

* Elio Ferreira de Souza é Doutor em Letras - Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFPE e Professor do Curso de Letras da UESPI - Universidade Estadual do Piauí, onde atua na Graduação e no Mestrado. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro – NEPA. Publicou sete livros de poesia, dentre eles América negra & outros poemas afro-brasileiros (2014). Escreveu livros de ensaios, entre eles Poesia negra - Solano Trindade e Langston Hughes (2017). Está presente em várias antologias de poemas, entre elas, quatro edições dos Cadernos Negros e organizou mais de uma dezena de livros de ensaios sobre literatura e cultura afrodescendente.

 

Texto para download