Carolina de Jesus na Casa de alvenaria  

 

 

Aline Alves Arruda¹

 

 

 

 

Como é horrível viver em São Paulo

parece que eles não admite

que uma favelada tenha conseguido

uma casinha

eu sou uma amostra que

Deus apresenta a humanidade,

comprovando que a humanidade,

é egoísta.

Carolina Maria de Jesus

08 de fevereiro de 1961

 

 

 

 

 

 

 

Após um longo tempo esquecida, desde que Carolina Maria de Jesus voltou a ser lembrada, lida e mais estudada (o que acredito tenha acontecido, principalmente, depois do seu centenário em 2014), ela é marcada apenas pelo seu “best seller” Quarto de despejo, publicado em 1960 pela centenária editora e livraria Francisco Alves, fenômeno de venda que alçou a escritora à lista dos mais vendidos e mais traduzidos livros da literatura brasileira. Sabe-se, porém, que a autora publicou outros títulos, que estavam esgotados há anos e há ainda muitos outros, por enquanto inéditos, pertencentes ao seu vasto projeto literário.

Com a nova edição de Casa de alvenaria neste 2021 pela editora Companhia das Letras, os leitores contemporâneos têm a chance de conhecer a vida de Carolina no pós Quarto de despejo. Lançado em dois volumes, a nova edição é muito mais ampla que a primeira, publicada em 1961 e editada pelo jornalista Audálio Dantas, assim como o primeiro diário da escritora, de 1960. O volume 1, intitulado Osasco, tem o primeiro relato datado em 30 de janeiro de 1960, cerca de seis meses após o estrondoso lançamento do primeiro livro que mudou a vida da autora.

Os relatos deste volume vão até 20 de dezembro do mesmo ano, quando Carolina de Jesus e seus três filhos (João José, José Carlos e Vera Eunice) se mudam para a casa recém comprada, no bairro Santana, em São Paulo. Daí, portanto, o título do volume 2. Este último, muito mais longo, começa em 24 de dezembro de 1960 e termina em 18 de dezembro de 1963, embora a maior parte dos relatos esteja concentrada no ano de 1961. Os capítulos são divididos de acordo com os cadernos manuscritos da autora e entre cada um, há um fac-símile de páginas dos cadernos.

A edição da Companhia das Letras faz parte da coleção “Cadernos de Carolina” e possui um conselho editorial coordenado pela escritora Conceição Evaristo e pela filha de Carolina, Vera Eunice de Jesus Lima, que prefaciam as edições destes dois belíssimos volumes. Além delas, participam do conselho as pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Miranda, Fernanda Felisberto e Raffaella Fernandes. Os livros têm belas imagens da artista Lúcia Laguna nas capas.

O volume 1, Osasco, narra a saída de Carolina e seus filhos da favela do Canindé, onde residiram por anos num barracão. Um empresário convida a escritora para morar em seu porão na cidade localizada na grande São Paulo. A família Jesus sai apedrejada da favela e encontrará outros obstáculos em Osasco. A fama é grande e Carolina, por isso, é insistentemente procurada por inúmeros cidadãos, a maioria brancos, que querem seu dinheiro emprestado. Acreditam que, por ela ter origem pobre e ascensão financeira naquele momento, devia isso às pessoas. O resultado é que a escritora não tem paz para viver a nova vida e continuar escrevendo. O mesmo acontece quando ela e os filhos se mudam para o bairro Santana. Nem o “teto todo seu” conquistado através da literatura possibilitou que ela tivesse a paz para exercer sua escrita com a dedicação que ela tanto sonhava!

Além dos muitos compromissos que envolviam o sucesso do Quarto de despejo (jantares, participações em eventos diversos, lançamentos com autógrafos, viagens, etc.), havia o tempo gasto para receber as pessoas ou parar para ouvi-las quando a interceptavam nos lugares. Isso também pode ser visto nos dois volumes. Por isso, uma das falas que mais “ouvimos” da autora em seus relatos é que estava “cansada”: “Eu estava cansada. Juro que estou enjoando de ser escritora” (p.43, Santana); “Eu não posso auxiliar-te, estou cansada. A minha vida tem sido de muito sacrifício” (p. 49, Santana); “Levantei as 8 da manhã porque estou cansada. Não é velhice é o excesso de trabalho” (p. 90, Santana). “Estou cansada, Tenho a impressão que lutei na guerra” (p. 236, Santana).

Ao mesmo tempo, Carolina continua consciente de seus “pensamentos poéticos”, como ela diz, de sua escrita inerente, impregnada ao corpo, necessitada de sair, “pensamento poético ao natural” (p. 236). Totalmente consciente do seu projeto literário, ela queria continuar a escrever literatura, especialmente ficção e poesia, sofre com a escrita do diário, mas ironicamente é ele quem nos apresenta a escritora ao seu natural, na sua “escrevivência” de si. Primeiro, com seu ponto de vista interno, trazendo o quarto de despejo para os leitores da sala de visita. E agora, mostrando sua travessia entre os dois mundos, sua humanidade, sua literatura inclassificável e pungente.

O olhar arguto da escritora, já vivenciado pelos leitores no primeiro diário, continua em Casa de alvenaria. Desta vez, sua palavra, lança potente, vai de encontro à da elite, dos moradores da sala de visita. Carolina continua perspicaz na sua visão de mundo. Faz reflexões sobre os políticos da época, percebe a hipocrisia de muitos que se aproximam dela, o racismo velado e também as falsas amizades conquistadas após a fama. Não é à toa que ela se diz “descendente da bomba atômica” (p. 365). Reflete também sobre a maternidade de modo honesto e nada glamoroso, algo bem incomum para seu tempo.

Ao final do volume 2 de Casa de alvenaria, já sabemos que Carolina tentará novamente a paz mudando-se para seu sítio em Parelheiros, onde viverá até 1977, quando falece. Sua entrada no mundo literário, da fama e dos brancos não foi tudo aquilo que ela esperava, mas aos leitores traz a realidade da intelectual negra que ela é, suas questões existenciais, suas angústias, humanas incoerências, seu cotidiano muitas vezes atormentado e outras de profundo encantamento. Na canção que leva o nome da escritora de Sacramento, o compositor Wanderson Lemes versifica: “Carolina Maria de Jesus/ não se rendeu ao calvário/ nem à cruz”, ela foi, segundo a música “peregrina caminhando entre guerra e paz”. Sorte a nossa que a voz de Carolina nunca se calou e que com estas novas publicações podemos lê-la, como se a ouvíssemos de perto, conquistando seu merecido lugar na literatura brasileira, de onde desde 1960 ela não deveria ter se ausentado.

                                                                                                                                                                                        Belo Horizonte, setembro de 2021

 

Referências

JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria, prefácio de Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, vol. 1, Osasco.

JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria, prefácio de Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, vol. 2, Santana.

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¹Aline Alves Arruda é Doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela UFMG e Mestre em Teoria da Literatura pela mesma Instituição. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG, Campus Betim. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, da UFMG, e coautora de Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI (2.ed., 2019) e de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (2.ed., 2019).

 

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