Dandara dos Palmares

 

Elisio Lopes Jr.

 

 

QUEM: Mulher nobre com olhar de tigre e face de rainha.

STATUS: Convicta da sua eternidade.


(Colhendo três peças de roupas brancas de menino no varal do tempo.)

 

(Colhendo três peças de roupas brancas de menino no varal do tempo.)

 

Eu pari três filhos pretos e, quando eles ainda não conheciam direito o mundo, tive que deixá-los. A minha luta não pesava só no meu ombro. Eu queria proteger meus meninos. Eu não fiz isso por gosto, mas com a boca amargando de dor. Eu me fui. Me matei! Preferi a morte à escravidão. Sem pensar duas vezes, me joguei daquela pedreira direto pro fundo. Eu já estava morta. O corpo vivia, mas a certeza já estava finada. Arrancaram minha coragem pelos olhos, entupiram meu nariz com medo, furaram meus olhos de tanta culpa. Eu vivi coisa que nem o Diabo pinta a sangue. Eu caí no abismo que cavaram para mim e pra Zumbi, e só me restava o caminho pro fim. Eu precisava parar de respirar pra salvar um pouco de ar, pra deixar minhas crias vivas. Ou eu me matava, ou eles matavam meus filhos. A história não explica, só condena. Quem conta não sente nada, só espreita. Quem ouve nem sempre entende, mas julga. Mulher assim como eu, que nasceu pra ser gente, não aceita cabresto. Ah, o ódio é um veneno eterno. Eu morri toda coberta por ele. O meu companheiro foi traído na luta por um irmão que se dizia aliado, um irmão que tramava em suas costas. O pior dos açoites é a gente acreditar que pode ser um deles. Quando a traição parece com você, é como se o espelho o enganasse. Aquilo que não falha estilhaça na sua cara, e o seu próprio reflexo não é real. Zumbi preferiu se entregar aos inimigos para evitar um mal maior. Foi fuzilado, seu corpo foi cortado em partes. Membros, tronco, cabeça, ele todo espalhado pelo Recife. Mas os meus filhos Motumbo, Harmódio e Aristogíton, eles viveram. Todos os meus filhos sobreviveram. No entanto, de suas bocas ninguém nunca ouviu sequer uma palavra. Pois eles aprenderam cedo que o ar, quando é pouco, é só pra respirar. Seguir vivo é o nosso primeiro ato de luta. Eu vivo neles e eles se multiplicaram. Hoje eu sou mãe de milhões e milhões de filhas e filhos, e meu ventre recebe cada um de vocês de fora pra dentro. Quero que pouse sob meus pés todas as devidas oferendas que mereço. E cada mão alivia o ódio que me matou. Sim! Eu lutei por nós. Eu morri pela nossa cor. Sou o espírito livre de Dandara dos Palmares.

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 147-8)

 

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