Um prefácio para (a alma nua de) Abdias Nascimento*

 

Denise Carrascosa

 

Os escritores costumam redigir os prefácios dos seus livros – ou deixá-

los aos cuidados de outrem – quando a obra já se encontra terminada e nas

vésperas da publicação. Eu, por motivos mui especiais, vejo-me na

contingência de inverter essa norma: a mais forte razão desse procedimento

reside no fato de não ser eu um escritor.

 

Abdias Nascimento

 

Submundo (2023) é um livro de cadeia. Foi nela, mais precisamente na Penitenciária do Carandiru, que Abdias Nascimento escreveu um importante capítulo da jornada que fez de sua vida uma intensiva inscrição biográfica do Herói Negro no imaginário social brasileiro e afro-atlântico, a despeito e por conta de seus sortilégios de homem de Orixá. Projetando o ser e não ser de sua condição de intelectual habitando um corpo em regime de tortura e sob a custódia violenta do Estado, dribla o tempo com seus propósitos de escrita, ginga na posição de escritor-não escritor, recua de si para escrever-se um próprio primeiro prefácio e, assim, avança sobre nós, neste, o segundo, que nos chega tal encomenda negaceada pelo dono do corpo, aquele que “matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Sortilégio.

Eis que nos vemos instados a voltar àquela penitenciária para – trinta anos depois, e num período em que o ódio desgovernou a nação – revisitar um dos episódios mais ultrajantes de nossa história recente: o assim chamado Massacre do Carandiru. Recuperar essa memória traumática é como um mergulho nas zonas abissais do inconsciente político de uma sociedade regularmente gerenciada por massacres, chacinas, execuções sumárias e pelo Genocídio do Povo Negro e dos Povos Indígenas.

 

Explorados à exaustão pela mídia, estes fenômenos constituem as vigas mestras de nossa nacionalidade. Não obstante, a impressão é que não teríamos correta ciência disso não fossem as vozes dos sobreviventes narrando o impossível – a vida nua a que cada corpo racializado, gendrado e/ou empobrecido é assujeitado nos jogos econômicos violentamente predatórios do poder soberano do Estado que nos espreita, a cada esquina, com camburões, armas de fogo, algemas, grades, flagrantes forjados e autos de resistência.

Submundo é, pois, testemunho. Obra singular, que passa em revista, de trás pra frente, a história da República Brasileira fundada nos úteros de suas prisões, umbilicalmente ligadas aos navios negreiros.

Carandiru! Carandiru! É nada mais que uma várzea perdida na neblina fria, de onde ecoam vozes torturadas, vozes sem nome do Carandiru. Aqui estou no território dos proscritos, podridões, escombros repelentes da sociedade, mundo de dor que eu vi, mundo em agonia, mundo submerso no maior de todos os sofrimentos: o da perda da liberdade, e o do desprezo dos seus próprios irmãos!

Escrevo como sentenciado. Sou um dos renegados, um dos que vertem lágrimas e sangue... Por isso mesmo, escrevo em linguagem agreste e sem me preocupar com o que sobre nós já disseram os criminalistas, as doutrinas penitenciárias e teses dos doutores no assunto.

 

Nesse curso, Abdias Nascimento nada ombro a ombro com intelectuais como Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis, Lima Barreto, Luís Gama, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Bule-Bule, Mãe Stella de Oxóssi e tantas outras autorias que sedimentaram as margens do rio caudaloso e pujante de nossa literatura negra abolicionista. Essa expressão conceitual designa um corpo de textos narrativo-dramático-poéticos que foram disseminados em fluxos transatlânticos e, por meio de transmissões orais e escritas, atravessaram os séculos, chegando até a contemporaneidade. São tecnologias afro-ancestrais de circulação, que adensaram caminhos de reinvenções subjetivas e comunitárias de nossa humanidade e de nossa história na diáspora.

 

A publicação de Submundo: cadernos de um penitenciário introduz Abdias Nascimento em um arquivo internacional de memórias prisionais que se trançam em obras como Cemitério dos Vivos (Lima Barreto), Detento: o diário de prisão de um escritor (Ngugiwa Thiong’o), Cartas da Prisão de Nelson Mandela, 491 dias: prisioneira número 1323/69 (Winnie Mandela), Uma autobiografia (Angela Davis), Assata: uma autobiografia (Assata Shakur), Memórias de um Sobrevivente (Luiz Alberto Mendes), entre muitas outras produções culturais. Tais obras traçam sua genealogia de volta a cantos de trabalhos forçados em ritmos que passam a compor a música da diáspora negra entre o samba e o blues, até o rap, atravessando os tempos a narrar a continuidade dos suplícios escravistas que os corpos sobreviventes aos diversos terrorismos de Estado guardam na memória da carne negra – arquivo vivo de torturas, a contrapelo dos regimes políticos das nações e suas historiografias oficiais.

 

Na dobradiça entre literatura negra abolicionista e memórias prisionais, o texto que aqui se publiciza produz um feixe de conexões que ora cartografa a tecnologia carcerária de governança colonial, ora ensaia e divisa horizontes de emancipação para a subjetividade encarcerada do escritor-poeta. No movimento de intercalar narrativas e poemas pessoais a narrativas e poemas coletados dos sentenciados, Abdias Nascimento instaura uma amplitude de visão sobre si na medida de sua compreensão e empatia pela visão do outro, que desloca a mediação por julgamentos morais. Esta poética de relação à alteridade lhe concede uma mirada autocrítica ímpar, que fica registrada em passagens como a seguinte:

O que me irritou ao máximo nesse pavimento foram as tais visitas. Como é duro ser olhado assim pelo buraco da espia como se fosse fera! Nunca me conformava. Nos dias marcados para a visitação, eu arranjava qualquer coisa para ler e virava as costas para a porta da cela. Nessa postura ficava horas esquecidas. Deu resultado, porque não me lembro de uma vez sequer que tivesse tido o infortúnio de dar de cara com a curiosidade de qualquer visitante através do buraco da vigia. Afinal de contas, eu cá vim por causa da datilografia e não para me exibir como bicho raro de porta de feira...

Essa possibilidade de olhar-se de fora, a partir de um entendimento profundo sobre como a sociedade brasileira e já midiatizada construía o imaginário criminalizador sobre um homem pobre e negro, prenuncia a sagacidade do jovem intelectual que cria estratégias corporais para esquivar-se dos estereótipos lançados a si e sua comunidade pelo racismo científico da criminologia de extração lombrosiana. Ao mesmo passo em que Abdias se deixava seduzir pelos discursos jurídico-midiáticos das sobre-humanas façanhas dos “criminosos célebres” de então, sua capacidade etnográfica rasurava a animalização de suas figuras através das entrevistas que se empenhava para realizar e os métodos de linguagem que usava para mediar suas narrativas, devolvendo-lhes a humanidade estrategicamente extirpada pelo sistema prisional.

 

Submundo realiza uma leitura minuciosa das técnicas prisionais de embrutecimento das pessoas encarceradas. O catálogo é longo: a arquitetura do prédio e das celas, as técnicas de isolamento e castigo, a alimentação insalubre, os tratamentos de saúde e sua produção de insanidade através dos diagnósticos viciados da ciência criminológica, as péssimas condições sanitárias, a inacessibilidade à assistência jurídica, o controle externo autoritário do processo penal tudo isso é coisa que Abdias passa em revista. Ao longo desse percurso, examina uma série infinda de abusos sádicos de poder, desde o ingresso do sujeito preso no sistema carcerário até sua saída.

 

Entrelaçando monólogos interiores e diálogos com os demais companheiros de cadeia, Submundo materializa uma certa esperança na reforma do sistema prisional, creditada pelo jovem Abdias à figura do novo diretor do Carandiru (um médico, suposto humanista). Não obstante, do começo ao fim, a obra aponta para o sem- número de ferozes técnicas de tortura a que aquelas pessoas eram submetidas e levanta sérias questões sobre a capacidade de “ressocialização” que qualquer ser humano teria ao conseguir a Liberdade:

Todos eles são discípulos do torpe Dr. P..., o covarde indivíduo que não trepidou, quando delegado do porto, policial de Vila Mariana, a mandar asfixiar com gás vinte infelizes detidos e presos sem culpa formada. Depois da chacina, chamara uma carroça de lixo e as vítimas seguiram o caminho do Araçá, para o forno de incineração...

Você crê na regeneração?

Um homem preso há trinta anos constitui um perigo social, porque, em primeiro lugar, aprende a odiar a sociedade. E, em segundo, ele não mais consegue lutar pela vida. Sai esquecido que deve lutar e também sai combalido, não servindo para mais nada.

 

Lida e registrada pelas lentes do intelectual negro em formação, essa dimensão crítica ao sistema prisional pode ser vinculada ao ceticismo negro de Lima Barreto, em Cemitério dos vivos, quanto às instituições de internamento manicomial, sua seletividade racial e sua estratégica ineficácia na função sciocientífica a que estavam destinadas. No contexto histórico intensamente reformista da primeira metade do século XX, lastreado por religiosa crença na ciência criminológica e seus pactos institucionais com a Igreja católica, as capacidades de observação detalhada e relato vigoroso de Lima e A, incluindo a dimensão autobiográfica, sinalizavam, entre Rio de Janeiro e São Paulo, um olhar negro crítico autoetnográfico para as tecnologias institucionais que fundamentaram o projeto eugenista nacional e que incluíam, programaticamente, prisões e manicômios.

 

Submundo também faz uma aberta leitura do regime sexual aos quais estavam submetidos os corpos gendrados como masculinos no sistema penitenciário paulista. Aqui, a violência dos estupros entre detentos e de detentos por carcereiros aparece como forma de feminilização e assujeitamento dos presos. Nesse assunto, embora a abordagem do autor ainda não leia o grave problema do gênero, replicando estereótipos, o texto constitui um vívido documento sobre um eixo fundante da colonialidade do poder prisional sobre os corpos vulneráveis da nação: o controle gendrado e sexualizado que se organiza nas dimensões de raça e classe para executar o projeto do estado genocida brasileiro.

 

Como texto de artista, poeta que já era Abdias e dramaturgo que ali se inaugura, a linguagem dramatúrgica de Submundo ganha corpo em dimensão estética coreografada pelo olhar A mirada sensível aos companheiros presos encena um dom de comoção com seus gestos mais cotidianos, conferindo grandiosidade àquelas frágeis existências:

 

As vozes dos meus companheiros dançavam no espaço ensaiando a “Canção dos Detentos”:

Contemplamos os céus estrelados

Pelas grades da nossa prisão

E o luar lindos sonhos prateados

Vem sorrir à nossa ilusão...

e eu me deixava absorver na beleza mística daquele momento. Dir-se-ia o coro sacro de alguma capela, em que os cânticos fossem coloridos pelos raios de sol, tingidos de várias cores, ao atravessar o filtro dos vitrais. A melodia suave, etérea, se casava harmoniosamente com a fisionomia triste dos cantores, parecendo querer elevá-las até a contemplação de paisagens estranhas, mundos de felicidade e de liberdade infinitas... A cabeleira do maestro, toda prateada, no centro das vozes e junto ao piano, era outra sugestão daquelas esferas distantes, país suspirado pelos corações sofredores de todos nós.

Aqui, testemunhamos a gênese do Teatro do Sentenciado. Um teatro feito dentro da penitenciária, com detentos desenvolvendo a íntegra do processo de criação, conduzindo todas as etapas de produção, interpretação e deparando-se com desafios análogos, mas, evidentemente, muito mais difíceis de equacionar do que os enfrentados por qualquer grupo que atue fora da prisão. Abdias Nascimento coordenava a escrita de textos, a criação de cenas, o ensaio de números musicais, a criação de figurinos, enfim, todo o espectro de atividades envolvido na feitura dos espetáculos. Foi no curso desta experiência e, portanto, nas circunstâncias bastante limitadoras da prisãoque o jovem artista Abdias desempenhou não apenas seu primeiro trabalho como ator, interpretando o papel de José do Patrocínio, como também escreveu sua primeira peça (que não chegou a ser encenada), Zé Bacoco, sobre a saga de um imigrante do interior paulista, que chega à capital para ser soldado.

 

Em retrospecto, o Teatro do Sentenciado pode ser lido como experiência dramatúrgica embrionária da fundação, em 1944, do TEN –Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro –, uma iniciativa estético-ética e política fundamental na constituição não apenas do teatro brasileiro moderno, mas de nossa própria modernidade. O mundo moderno a partir da experiência negra implicava uma crítica imanente da nação que ora se formava, alheia a qualquer debate público sobre racismo, sexismo, desigualdade social e lastreada em pactos nos quais – das artes ao planejamento urbano – o “moderno” coincidia com uma sociedade ainda escravista e colonialista. O mito da democracia racial, que se edificava em muitos planos dos discursos da nacionalidade, era seu amálgama. Na contraface desse movimento, Abdias inseminava ideais modernizantes outros na elitista arte eurobrasileira, deslocando os centros de força filosófica e ontológica para Heróis Negros, Heroínas Negras e nossas AfroCivilizações.

 

O visionário projeto ético-político e estético de Abdias Nascimento ainda não foi integralmente compreendido ou lido pela historiografia como um dos movimentos fundantes de nossa modernidade.

 

Embrião de projetos futuros de Nascimento, Submundo vem a público na esteira da rememoração dos trinta anos do Massacre do Carandiru lugar onde foi gestado, na dolorosa experiência de encarceramento e também do centenário da Semana de Arte Moderna. A infeliz coincidência de efemérides poderia bem nos servir de alerta para o pouco esforço que se tem feito para ler a memória do pulso desta nossa “modernidade” desde o útero sagrado e sangrado dos navios negreiros que aqui aportaram.

Sintoma dramático desta insurgência modernista está legível na própria trajetória de vida de Abdias Nascimento. Cabo do exército, ele se recusara a cumprir ordem dada por superior para datilografar um balancete, ato pelo qual foi excluído da força militar. Processado à revelia, é sentenciado a dois anos em regime fechado. É isso que o leva ao Carandiru, onde começa a cumprir sua pena em 03 de abril de 1943. Advogando em causa própria com auxílio de livros jurídicos da biblioteca da penitenciária, consegue que o STF extinga sua condenação. É libertado em 1944.

 

Reparemos: expulso e preso por se recusar a datilografar um documento protocolar em serviço, Abdias Nascimento, no curso do castigo prisional, decide-se por manuscrever da cela e, depois, datilografar as reflexões e memórias de sua passagem pelo cárcere. Leia-se: a ordem institucional descumprida é subvertida e ganha um uso estratégico de escrita política de si que não azeita as engrenagens da máquina-nação; no contrafluxo as corrói.

 

Nas páginas de Submundo, lemos um Abdias em condição de banzo, um corpo gravemente atingido por uma intempérie, mas um espírito altivo que fala consigo mesmo de suas convicções, com intimista beleza:

Foi durante esses instantes que nos tornamos grandes amigos. Meu único amigo durante os trinta e um dias de prova. Libertei-o do problema da bola, usando esse truque, tanto com seus companheiros pardais, como também com as pombas que lhes arrancavam violentamente o pão da boca, sem nenhuma consideração.

[...]

Daí aconteceu que o anônimo e simples pardal aleijado, de perna quebrada, me confortou e alegrou quando me debatia na angústia mais desesperada de minha vida! Como minúscula gota de poesia, o pardalzinho inocente afastou um ser humano de caminhos difíceis e soturnos.

Se você soubesse como eu o amo, pardal, meu único amigo!

 

Conversando com Conceição Evaristo sobre a poesia deste episódio “menor” do amigo pardal, em que Abdias liricamente nos revela como, em seus primeiros dias de prisão, criara um mecanismo para ajudar um pardal de pé quebrado a não passar fome diante dos outros, mais vorazes, minha amiga sagaz e rapidamente dispara: “Olha! Já era o Abdias das políticas de cotas!”

 

Sim! A política fundante de ações afirmativas, nesta cena, revela-se em suas matrizes gnosiológicas africanas mais luminosas, isto é: cosmopercepção da relação orgânica entre humanidade e natureza; perspectiva da alteridade sem que a constituição do “outro” se elabore na chave da inimizade ou da periculosidade, mas da amorosidade pela intersubjetivação e, por fim, a sagacidade do olhar sempre para o fora, buscando as linhas de fuga das condições encarceradoras para o povo africano em diáspora. Esses nossos valores afro-civilizatórios, já presentes nos gestos iniciais da trajetória do jovem Abdias, foram traduzidos em suas posteriores ações e criações intelectuais e artísticas, como fundamentos dos projetos que elaborou para a inserção cidadã da pessoa negra na vida pública desta nação.

Sim! A certeira avaliação da imensa escritora Conceição Evaristo, amiga-irmã deste imenso escritor Abdias Nascimento, nos dá a chave de ouro para mirar a alma nua de Abdias e, por ora, fechar estas primeiras leituras destes escritos lançados à nossa história oficial dos fatos, das ideias e das artes, para acossá-la em uma encruzilhada de força radial espiralar – efeito de sortilégio. Compartilho-as à guisa de prefácio, menos necessário que sorte e privilégio. Para não nos perdermos nos caminhos, uma recomendação apenas: contemplemos os pardais.

 

Salvador, inverno de 2022.

Referência

 

NASCIMENTO, Abdias. Submundo: cadernos de um penitenciário. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

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* Texto escrito originalmente, em 2022, e publicado como prefácio ao livro Submundo (2023), de Abdias Nascimento.

** Denise Carrascosa é Mulher Negra. Filha de Iansã. Professora Associada de Literatura da Universidade Federal da Bahia, doutora em Teoria e Crítica Literárias, escritora de diversos artigos e livros, dentre os quais o fruto de sua tese de doutorado Técnicas e Políticas de Si nas Margens: literatura e prisão no Brasil Pós-Carandiru (2015). Coordena, há 12 anos, um projeto extensionista de remição de pena por leitura, estudos e escritos literários na Penitenciária Feminina de Salvador, no Complexo Penitenciário Lemos Brito, na Bahia.

 

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