Fábio Mandingo, livro terceiro: contrariando as estatísticas...

Adélcio de Sousa Cruz*

Há uma observação de Ferréz, dada como resposta a uma jornalista, que sempre gosto de trazer à tona, quando se trata de textos literários como os que são escritos por Fábio Mandingo: “morar dentro do tema”. Em seus livros, isto se refere a espaços da cidade de Salvador que não são tão visíveis do ponto de vista da orla que é frequentada por turistas e pela classe média... A pesquisadora Rafaela Pereira arrisca outra definição: “afrovivência”, especialmente em sua análise dos dois primeiros livros de contos do escritor natural de Santo Amaro da Purificação. Em sua terceira incursão pelo gênero, ele não se faz de rogado, envolve o público leitor com o mundo habitado pelos personagens e as hábeis esquivas em cada desfecho: a cena parece terminar, o clímax quase em seu ponto mais crítico e personagens quase se dão por satisfeitos. Talvez estas narrativas em que a experiência surge na crista da encrespada onda da memória sejam um modo rápido e econômico de impressão/expressão. É interessante destacar que há um intervalo de dois anos entre cada um dos livros do autor.

Em Muito como um Rei (2015), a narrativa curta é retomada por Fábio Mandingo em sete histórias que talvez se complementem, pois é possível perceber breves elos de comunicação entre elas, seja pelo espaço ficcional no qual estão inseridas, seja por uma espécie não programada de continuidade do enredo de cada um dos contos. Sete contos musicais... Três deles são explícitos quanto aos aspectos tanto da continuidade quanto das referências musicais: “Infanto-juvenil III” a “Infanto junvenil V” que, aliados aos números I e II, poderiam ser publicados em conjunto, à guisa de uma mini novela. As duas primeiras frases que iniciam “Infanto-juvenil III” são representantes dessa espécie de escrita econômica, em que não há tempo, como na vida dos personagens, para desperdício de palavras: “Então, o amor. Tinha acabado de fazer dez anos” (MANDINGO, 2015, p. 7).

A surpresa do público leitor não se encerra com a precoce experiência amorosa do personagem, há o retrato de um mundo severino ponteado pela agilidade do menino de dez anos, que à sua maneira unilateral experimenta o primeiro amor, pequenas e breves travessuras como falar palavrões enquanto seu amigo insiste em ser o desmancha prazeres, repetindo a visão estereotipada de relacionamento erótico: “Que porra de amor rapaz: “não vai haver amor, nessa porra nunca mais”... isso de amor é frescura.”; [...] “Tudo puta rapá! E você vem me falar de amor... amor, igreja, polícia, gente rica, é tudo a merma merda, tudo enganação.” (idem, 2015, p. 10-11). Parece não haver lugar para algo diferente da crueza do mundo em que os personagens estão mergulhados até os ossos... Enquanto um tenta ser poético, outro é o ensaio primevo de um mundo presente e futuro brutalista, mesmo que a história se encerre com os dois amigos cantando um trecho de “Dona”, música de Sá e Guarabira (tema de personagem da novela Roque Santeiro).

Decidi apresentar em seguida o conto “Lúmpem” pela semelhança de algumas cenas com o espaço ficcional da Havana criada por Pedro Juan Gutiérrez em O Rei de Havana (2001). Embora a relação entre os personagens da narrativa de Mandingo seja diferente daquela retratada na cidade cubana, há momentos do texto do escritor santamarense que não permitem catarse, nada de entretenimento, Salvador e o Rio de Janeiro se confundem, a “Roma Negra”, “A Pequena África”, o “morro”:

Mas às vezes você é somente um entre aqueles que perderam a vida no deslizamento; horas e horas embaixo da terra morrendo sem socorro. Às vezes seu filho é somente alguém em quem ele primeiro atira ao meter o pé em sua porta, um obstáculo no caminho, uma voz chorosa que incomoda...

Às vezes sua mãe é somente aquele corpo arrastado no asfalto, pendendo dos fundos de uma viatura. (idem, p. 25).

Apesar da realidade asfixiante, a vida pulula em “Lúmpem”, o personagem masculino se rende aos encantos daquela parceira ímpar, proprietária de si mesma, no melhor estilo de Orixá guerreira, sem meias palavras, sem receios. Entretanto, exatamente por não dever obediência a ninguém ela parte, no dia seguinte, gingando e se esquivando das correntes do mundo.

O ambiente de “Lúmpem” parece se estender ao conto seguinte, “Travessia”. Ali, o personagem sem nome desfia a vida: “Pensei na tensão permanente que meu corpo trazia a tantos anos. Esse nunca descansar e nunca descontrair a mente na possibilidade de algo ruim acontecer. [...] um bicho. Um ponta de faca contra tudo”. (idem, p. 43). E este fio narrativo parece, simultaneamente, se enrolar e se desenrolar até a história que dá título ao livro – “Muito como um Rei” – e que ecoa um certo eu lírico da letra de rap que afirma: “Vinte e sete anos contrariando as estatísticas”... Talvez o narrador apresentado se reveze entre terceira e primeira pessoa, talvez seus personagens, como na vida real, também permaneçam na mente incomodada do público leitor, contrariando, por sua vez, as estatísticas...

Referência

MANDINGO, Fábio. Muito como um rei. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2015.

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* Adélcio de Sousa Cruz é professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa e autor do premiado volume Narrativas contemporâneas da violência (2011).

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