Vozes afropoéticas em Cadernos Negros 37

 

Rafaela Pereira*

 

Persistência

pode ter barulho à pampa
supimpa o poema
sobe e desce a rampa
na mais fina estampa
de metáfora em metáfora
espontâneo dança.

pode ter ruído à beça
sem pressa o poema nasce
e nada impede
que ele cresça
na praça de um coração rebelde

pode ter rancor e mágoa
no meio dessa estrada
o poema passa
pelos vãos de pedra
que só ele enxerga
e alarga
[...]

Cuti,
2014

Em dezembro de 2014, seguindo uma tradição de mais de três décadas, aconteceu em São Paulo o lançamento de Cadernos Negros 37: poemas afro-brasileiros. O evento ocorreu na Biblioteca Mário de Andrade, no centro da cidade, reunindo escritores, estudantes, militantes, jornalistas e apreciadores da literatura negra. Quando cheguei havia poucas pessoas no local. A chuva de verão resolveu se manifestar justamente horas antes do lançamento, o que fez boa parte do público se atrasar. Enquanto o evento propriamente dito não se iniciava, fiquei contemplando e refletindo sobre os livros, camisetas, chaveiros e vários artigos de artesanato que estavam disponíveis aos interessados e pude identificar o quão grande é a diversidade envolvendo a cultura da negritude.

Tomei conhecimento da série Cadernos Negros tempos atrás, quando me integrei ao Grupo literafro. Foi então que comecei a entender o projeto de uma literatura expressivamente negra e brasileira, o que não quer dizer que basta citar ou incluir o negro nas tramas, conforme se lê em alguns textos modernistas e outros. É preciso estar atento à forma como ele é inscrito, que remete ao ponto de vista que orienta a representação.

Cadernos Negros é uma antologia que, desde 1978, reúne escritos de autores identificados a essa tradição. Tem-se, então, uma longa trajetória em que muitos deles iniciaram a sua carreira publicando na série. Em 1980, surge o Quilombhoje Literatura, grupo paulistano de escritores composto inicialmente por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Henrique Cunha Jr. e vários outros, cujo principal objetivo era discutir e aprofundar a experiência da escrita afro-brasileira. Outra proposta do grupo era o incentivo e a promoção do hábito de leitura, com o propósito de difundir informações sobre essa vertente das nossas letras. E desde então o Quilombhoje é o responsável pela edição anual da antologia. O primeiro número reuniu poesias e o segundo, contos. Esta lógica permaneceu e o gênero textual alterna a cada ano. Nessa linha, Cadernos Negros 37 apresenta uma coletânea de poemas de autores veteranos, como Cuti, Márcio Barbosa, Esmeralda Ribeiro, e autores que participaram pela primeira vez, como Juliana Costa e Raquel Garcia.

Na noite do lançamento, segui para o auditório e foi interessante perceber que havia ali um público majoritariamente negro. E eclético em termos de faixa etária, com leitores de várias idades aplaudindo jovens estreantes, que dividiam o palco com autores membros do Quilombhoje desde as primeiras edições dos Cadernos. Ali tive a oportunidade de conhecer de perto alguns nomes que compuseram a última edição, além de ouvi-los declamar os seus versos e dar depoimentos sobre a importância de se fazer uma poesia afro-brasileira. No auditório lotado, era visível a empolgação da plateia, fruto de sua identificação com os termos e os tons das falas. Ao entusiasmo dos aplausos seguiram-se as longas filas em busca dos autógrafos e das fotos ao lado dos poetas – provas cabais de que estes estão falando por si e pela comunidade que admira seus textos.

Naquela noite, notei uma forte interação étnica, que me fez pensar sobre o que está sendo feito e o que se pode fazer para uma convivência respeitosa entre os diferentes estratos sociais. Nas filas, refletindo sobre a acessibilidade cultural, vários questionamentos surgiram, como por exemplo, quais os livros a que os jovens, e até mesmo o público escolar, estão tendo acesso? Por que, em determinados meios, muitos desses autores ainda são pouco conhecidos? Seria mesmo pouca acessibilidade ou desinteresse em conhecer e apresentar o que a literatura afro-brasileira está produzindo?

Cadernos Negros 37 apresenta um conjunto de vozes que exploram diversas temáticas, e a palavra se torna um objeto sagrado para a manifestação e evocação da herança cultural africana em seus diversos aspectos. Por outro lado, ao ler os poemas, fui percebendo tons ecoando incômodo, ironia ou indignação, para expressar os problemas que ainda persistem na atualidade. E, também, como a linguagem é explorada esteticamente para a formação das imagens ali presentes. Páginas que tratam da ancestralidade, do culto à natureza, da diáspora, da luta dos negros contra a exclusão social, do racismo e, também, de personalidades que se tornaram ícones da nossa cultura, como os centenários Abdias Nascimento e Carolina Maria de Jesus.

A diáspora aparece nos versos de Benício dos Santos, no poema “O mar revolto”; Cristiane Sobral exalta a feminilidade como em “Janaína-flor” e “Poesia preta feminina”; Denise Lima louva Carolina Maria de Jesus, em “Bi-ti-ta”: “Bitita, menina, brinca...Que será que sonha?/ Cobre-se de papéis/ Canidé? Prisão de portas abertas./ Negra, pobre, trancada na favela.” (p. 65). Além de Carolina, a autora também dedica seus versos a nomes como os de Angela Davis e Mãe Stella de Oxóssi.

Já Fernando Gonzaga aborda o penteado afro, símbolo da identidade negra nos poemas “Cabelo com cabelo’ e “Falando de Negro”; Helton Fezan, em “Ouvindo vozes”, faz uma abordagem sobre as dificuldades e sobre a resistência do negro para transitar em meio a tantos empecilhos; Jairo Pinto trabalha com as palavras fazendo uma espécie de jogo, como podemos observar nos títulos “Epistemicídio”, “Sobre mo(r)tos” e “Mar íntimo”; em “Apanho”, Juliana Costa versifica sobre sistema que ainda insiste em oprimir; Mil Santos, de forma sagaz, fala sobre as surpresas do cotidiano que muitas vezes acabam se tornando “O pesadelo”. Além destes, o leitor ainda vai se deparar com o quilombo, nos versos de Edson Robson, em “Palmares” e com o navio negreiro na poesia de Fátima Trinchão. Esta reunião de vozes negras é mais uma forma de afirmação que se tornou necessária para propagar o enfrentamento de barreiras ainda sólidas.

Hoje, é possível enfatizar a importância que os Cadernos Negros têm na literatura e em outras áreas do conhecimento. São autores que buscam na vida presente e passada elementos para fazer da palavra poesia, de forma a construir uma literatura negra na expressão e no sentimento. Não me deterei sobre este conceito, há décadas estudado e discutido por pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Mas gostaria de ressaltar uma questão histórica que não deve ser esquecida: o fato da população negra e pobre ter sido (e ainda continuar sendo) excluída do acesso a vários setores e bens culturais, em especial à cultura letrada. Isso fez com que preponderasse a crença absurda e desonesta pela qual tais segmentos não teriam capacidade de fruição, nem de dominar a função estética da linguagem. Nessa linha, a tradição canônica, melhor dizendo, as instâncias de canonização, ainda insistem em manter uma visão alheia à poderosa diversidade cultural e literária existente no Brasil.

Mesmo com o desafio do mercado editorial, que muitas vezes é um obstáculo para o surgimento de novas produções, acredito que a série Cadernos Negros não só resiste, como vem fazendo há trinta e sete anos, mas persiste e persistirá em propagar a escritura afro-brasileira, seja em verso ou prosa. Que a força da palavra continue sendo a principal ferramenta para quebrar barreiras e preconceitos e que as vozes de Cadernos Negros continuem ecoando em todos os cantos.

Referência

Vários Autores. Cadernos Negros 37: poemas afro-brasileiros. Organização de Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2014.

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*Rafaela Pereira é Graduada em Letras pela UFMG e professora de Língua Portuguesa e Literatura em escolas de Ensino Médio.

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