As tranças de minha mãe:
Imagens e desdobramentos para além do tempo

Hildalia Fernandes[1]

 

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Sou leitora atenta da escritora Ana Fátima. Acompanho seu caminho pela poesia, contos, ensaios e mais recentemente, o embrenhar-se pela produção destinada a crianças e jovens, tão cara e necessária para as gerações que nos sucedem, carentes que são de narrativas que apresente o povo negro de forma digna e positiva.

Fazemos parte de uma geração, ainda que eu anteceda a de Odara, (como assinava anteriormente Ana Fátima) que não chegou a alcançar, pelo menos não na infância, histórias que apresentassem os traços constituintes do nosso diverso e belo fenótipo de forma que nos auxiliasse em nossos processos de nos tornarmos o que somos. As pazes com a imagem refletida no espelho, o amar nossa corporeidade negra, como nos ensina hooks (2000) não era possível a partir da leitura dos títulos disponíveis para nós enquanto crianças e jovens negros. Ocorria o contrário disso. As diversas coleções, usadas, no mais das vezes como paradidáticos, quando não desapareciam com o nosso povo preto, apostava, quase sempre na caricaturização via animalização e/ou demonização dos nossos, causando zombaria, asco, ojeriza por parte daqueles que se identificavam com a ideologia da branquidade, que se sentiam autorizados para efetivar o racismo e seus derivados.

Nossas crianças negras, sedentas que estavam de se verem, também, representadas positivamente em tais histórias, pois aprendiam em casa que eram bonitos e inteligentes, buscavam respaldo na produção literária destinada a elas em diferentes períodos da história e se deparavam com duas possibilidades: ausência ou negativização de nossos corpos e existências, e, assim sendo, iniciado estava o processo que Ana Célia da Silva denomina de

(auto)rejeição, podendo avançar para a perseguição de ideal de ego branco (COSTA, 1984), as denominadas identidades fantasmáticas (NOGUEIRA, 1998) culminando nas feridas narcísicas (SOUZA, 1989) que tanto nos fazem zanzar, perdidos nas encruzilhadas identitárias.

Leva tempo para compreendermos essa perversa engrenagem, tanto no aspecto teórico de se conseguir nomear os fenômenos que já sentimos, literalmente na pele, desde a mais tenra idade. Desmontá-la revela-se como exercício ainda mais árduo e demorado, visto que trata-se de uma arquitetura eficiente e eficaz que se preocupa em se (re)atualizar sempre para que não se perca os ganhos reais com tamanho investimento que é o de desumanizar o outro, o diferente, aqui implicando, pela lógica do coloniza-dor/opressor em inferioridade e, assim sendo, não há o que se aprender nem trocar. Muitas das nossas mais velhas, ègbón mi, semearam profundo e fértil para que hoje pudéssemos produzir narrativas outras, opostas as até então existentes que tanto mal causaram ao nosso psíquico, a nossa subjetividade.

Desenho esse percurso para que possamos compreender e alcançar os ganhos quando somos presenteados com a publicação do livro “As tranças de minha mãe”, em 2018, pela editora Uirapuru. Autoria de mulher negra, sensível e belamente ilustrado por outra mulher negra, Quezia Silveira.

Leitora dos Cadernos Negros, importante escola para a geração que agora desponta como autores, Ana Fátima se faz presente, initerruptamente, desde o número 37 e 39 com poemas, seguindo nos números 38 e 40 com contos.

“As tranças de minha mãe” segue o fluxo já firmado e investido anteriormente, o de assegurar a difusão da nossa ancestralidade negro-brasileira, apostando na sustentação de suas produções literárias a partir dos valores pertencentes a esse continnum civilizatório.

A religiosidade é outra marca e alinhavo fino e preciso da autora. Omo Òrìsà de Ewa, a dona da beleza, esse é outro recorte recorrentemente em seus negros escritos.

Akin, menino príncipe, filho de Najuma e Amin, conta, ainda, com a proteção de Osumare e Ewa. Enquanto o primeiro nos ensina o trato com a diversidade e realiza a comunicação entre os dois mundos: Òrun e Aiye, a segunda tem como domínio a beleza. São conhecidos nas religiões de matrizes africanas como DAN, cobra. O macho e a fêmea, respectivamente.

A autora tem o cuidado, primoroso, de quebrar com vários estereótipos, destinados, historicamente, a nós negros(as). Akin é cercado de afeto. Carinho e dengo não lhe falta. O toque, tão importante para nos sentirmos amados é farto em toda a narrativa. Com a mãe apreende a ver beleza em seus traços, guarda na memória afetiva o cheiro bom do belo e macio irun, cabelo, materno. Outro ponto importante e que não pode deixar de ser mencionado é a busca desse jovem guerreiro pelo saber. Muitas são as páginas nas quais encontramos Akin, debruçado sobre livros, além de complementar o conhecer da sua história pelo contar dos pais, orgulhosos que são de sua negritude.

A narrativa compartilhada por Ana Fátima é Odara, tudo de bom. Para muito além de colaborar na efetivação de uma educação antirracista, ela, contribui, ricamente, para o tornar-se o que se é, o que se veio para ser, negro(a). Revela caminhos de (auto)conhecimento, gostar-se e realizar-se que precisam começar logo cedo para que o racismo não faça morada e danifique nossos processos de construção identitária.

Ana Fátima revela o amadurecimento trazido pela maternidade que a autoriza a entrar na senda que é cuidar da geração que nos sucederá a gostar de ser, gostar de si, e, sobretudo em processos de “aprender a conduzir a própria vida” (SILVA, 2003). A mãe dedicada soma sensibilidade e leveza à educadora e pesquisadora das relações etnicorraciais.

Que bonito é presenciar a continuidade dessa gira, dessa ginga começada lá atrás por todos aqueles que nos antecederam e deixaram fortes rastros para que pudéssemos até mesmo ousar caminhos outros para além dos já trilhados, apontando, sempre possibilidades de insurgências e rotas de emancipação.

Akin nos ensina tanto que só ouso sinalizar o que mais salta aos olhos, ainda que mergulhe plena na leitura. Uma leitura que nos remete ao mais profundo do nosso ser que nos silencia com o barulho que provoca em nossa psiquê. Que acaba por promover, sobretudo, o (auto)amor e o respeito para com o outro, em sua diferença, porque aprendemos, ainda que a dura penas que é exatamente ai que mora a riqueza da humanidade.

Akin, príncipe menino valente e sábio, protegido das cobras, caminhos repletos de realizações, concretizações de sonhos e fico muito agradecida pelos aprendizados. Eles me ajudam a planejar ir cada vez mais longe, mas sempre voltar para contar sobre nossas trajetórias, adversidades e superações.

Se aparentemente o texto parece ser destinado a crianças, o adulto que acessar para realizar a leitura para aqueles será tocado de maneira profunda e inevitável, sobretudo pelo lirismo que conduz e alinhava a narrativa. Texto curto, de fácil compreensão, vocabulário adequado à faixa etária que se deseja atingir e alcançar, apropriado para as crianças que estão se iniciando como leitores. Além de recomendado para profissionais da leitura ou docentes que desejam trabalhar aspectos da infância de uma criança negra que reconhece e referencia sua ancestralidade e sua história.

Referências

COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984. Disponível em: http://www.sedesweb.org.br/Departamentos/Psicanalise/pdf/dacoraocorpo_jurandirfreire.pdf. Acesso em 03 nov. 2018.

FÁTIMA, Cruz dos Santos, Ana. As tranças de minha mãe. ilustrações Quézia Silveira. São Paulo : Editora Uirapuru, 2018.

hooks, bell. Vivendo de amor. In: WERNECK, J. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas; Criola, 2000.

NOGUEIRA, Izildinha Baptista. Significações do corpo negro. São Paulo: USP, 1998 (Tese de doutorado em psicologia escolar e do desenvolvimento humano). Disponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/significacoes-do-corpo-negro-isildinha-baptista-nogueira-tese.pdf. Acesso em 04 nov. 2018.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender a conduzir a própria vida: Dimensões do educar-se entre afrodescendentes e africanos. In: BARSOSA, Lucia Maria A. De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EduFSCar, 2003. p. 181-197.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.


Notas

[1] Doutoranda em Literatura e cultura pelo Instituto de Letras da UFBA. Educadora e pesquisadora sobre escrita de mulher negra pela diáspora.


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