A tradição e o rastro em Exuzilhar, de Cidinha da Silva

Cristiane Côrtes*

 

Exuzilhar é a mais recente coletânea de crônicas publicada por Cidinha da Silva. São 39 crônicas curtas, mas de uma intensidade rara. Aliás, a capacidade de síntese e profundidade não é novidade nos textos da autora mineira. A escrita potente e densa acompanha Cidinha desde as primeiras publicações, não foi à toa que Um Exu em Nova York (2018) foi coroado pela Biblioteca Nacional.

A cronista e a historiadora se fundem entre os curtos textos que dialogam com a religiosidade africana, como um rizoma que se entrelaça a outros temas: racismo, desigualdade social ou exploração do trabalhador. As crônicas, ora ácidas, ora líricas, conquistam o leitor, na medida em que se percebe a profundidade com que a ex-presidenta do Instituto Geledés (Instituto da Mulher Negra) tece uma crítica aguda às tramas sociais que subjugam as minorias ou praticam a intolerância religiosa sob a égide da proteção aos animais, por exemplo, como mostra, de forma ainda bem humorada, o texto “Sou vegetariana! Meu orixá, não!” (pp. 41-42). A crônica evidencia a superficialidade do discurso de um vereador baiano eleito “para defender os animais indefesos” que se posicionava contra o sacrifício de animais no candomblé. O questionamento “por que é o animal que ofertado nas cerimônias do candomblé que precisa ser protegido?” abre uma fenda no texto para uma denúncia muito mais profunda, apontada no parágrafo em que a autora dialoga diretamente com o vereador e sugere “caso o senhor esteja procurando tarefas grandes, vereador, confronte a indústria da carne” e mais adiante: “volte seu olhar diligente para os abatedouros, lá existem animais sofrendo”. A dimensão que as duas páginas da crônica alcança denota o cuidado na escolha do tema e da reflexão proposta que, refinados pela ironia, evidenciam o talento da escritora.

A temporalidade é outro tema caro aos cronistas: um gênero que tem como matéria prima o cotidiano, o que está acontecendo agora, e a cronista é desafiada a abordá-lo e, ao mesmo tempo, evitar que o texto fique datado, ou seja, que tenha um sentido restrito e dirigido traçado na obra com maestria. A aparente narrativa despretensiosa surpreende o leitor por revelar uma crítica sagaz ou uma beleza lírica, o que torna a leitura fluida e interessante. Em “Oração da terça!”, esse lirismo surge no diálogo com um leitor de uma igreja que promove toda terça-feira uma batalha espiritual contra o mal. O suposto leitor conhece os orixás, sabe que terça-feira é dia de Ogum e também de sua força como guerreiro. Nesta interlocução, o texto nos apresenta a força das divindades africanas e sua beleza em sintonia com o universo, pois “tudo varia na intenção de quem manipula a força”. O desfecho traz poeticamente uma resposta à intolerância religiosa ao constatar: “Oxalá é poesia. É amor. É lamparina acesa na noite dos tempos. É o zelo silencioso pela energia vital e pela harmonia da vida na terra”.

Cidinha da Silva construiu, ao longo de suas 20 obras publicadas, um projeto estético em que a africanidade e a orixalidade se configuram em um estilo conciso lírico. Em Exuzilhar, é possível notar uma maturidade da cronista na tranquilidade com que transita pela cosmologia africana sem cair na armadilha do didatismo sacal. Os temas circundam a orixalidade como ponto de partida, aguçam o leitor com uma terminologia própria do candomblé e abre um universo de possibilidades para o enfrentamento das tensões sobre desigualdade de raça e de gênero, por exemplo, tão presentes em nosso cotidiano. A crônica “Coisas que nem Deus duvida” nos coloca diante dessas situações em que o racismo surge como elemento capaz de desestruturar um indivíduo. A narrativa relata um sarau com a presença de autores e a leitura de suas obras, quando uma senhora se resvale da idade avançada para dizer que os termos politicamente corretos são um problema atual: “No meu tempo (como vocês podem ver, eu sou velha), gente chamava os pretos que a gente gostava de negão, quando era homem, neguinha, quando era mulher. Era carinhoso. Hoje, se a gente não for politicamente correto, pode até ser preso”. A narradora abre espaço para a fala racista, expõe uma ferida e a deixa sangrar, mostra-se perspicaz, a partir do momento em que traz para o corpo do seu texto o elemento que poderia desestabilizá-la, opta por desviar do confronto direto, invoca Exu e Iansã, fecha seu corpo, ergue seu tridente e afasta a quizila com a ajuda das divindades: “Nessa hora, seus olhinhos de Madame Mim encontraram os meus e, de pronto, tratei de exuzilhá-los, fechei meu corpo com a mão direita e, com a esquerda, levantei meu tridente” (p. 37). A comparação da senhora com a vilã decadente dos Studios Disney revela a ironia afiada da autora e nos remete ao fato de que, tal qual a personagem, o discurso proferido pela velha poetiza também o que está em desuso, haja vista as parcas palmas mencionadas pela narradora ao final da fala infeliz.

O neologismo que dá nome ao livro aparece como uma estratégia de neutralizar o discurso racista. O desfecho da crônica nos coloca diante da sábia decisão de afastar o mal com a força da ancestralidade, num movimento que evidencia a escrita afro-brasileira da autora, pois delineia uma voz que não ecoa solitária:

Guardei a distância respeitosa da natureza que não se afina com a casa dos mortos. Kaiogo veio sorridente, me abraçou generosa, só amor. Eu entreguei o era dela: “Toma, Senhora dos Raios, leva daqui essa carcaça, esse egum da mentalidade colonial e racista que inda sibila entre os vivos.” Kaiongo sorriu outra vez, cúmplice, e desapareceu soberana na noite sem lua. (p. 38)

 

A autora explica na orelha da obra que “'Exuzilhar' não é um conceito, é apenas um verboneologismo criado a partir de uma brincadeira com os nomes Exu e encruzilhada”. O termo concentra a essência de Cidinha, uma vez que carrega a fluidez de Exu e a possibilidade de encontro da encruzilhada como estratégia de recuperação e valorização da memória do povo negro, cumprindo o que Édouard Glissant afirma ser a criação de algo imprevisível a partir dos poderes da memória” (2005, p. 20). Para o crítico, esse processo de construção da tradição se dá por meio de recuperação dos rastros/resíduos, preservados para manter viva uma memória que irá ressignificar uma cultura aparentemente perdida, pois, embora o apagamento cultural esteja presente pelo viés memorialístico e pela linguagem, as diversas manifestações dessa cultura resistem dia após dia.

Nesse sentido, a obra aqui resenhada se encontra em plena sintonia com essa recuperação dos rastros diaspóricos a que Glissant se refere, seja por um trabalho estético que recupera culturas africanas e afro-brasileiras, seja pela escrita comprometida com a experiência do corpo negro na sociedade contemporânea, pois retrata as tensões, tradições e memória dessas identidades. As crônicas de Exuzilhar ainda nos conectam com grandes nomes da nossa cultura, referências fundamentais, como Itamar Assunção, Mãe Stella de Oxóssi, Elza Soares, Ismael Ivo, Luiz Carlos da Vila e Marku Ribas, num gesto que ultrapassa a recuperação de rastros/resíduos, pois, como na encruzilhada, facilita o encontro daquilo que nos é caro, mas também nos inquieta, evidencia os percalços que a cultura afro-brasileira ainda enfrenta em seu cotidiano.

 

Vale a leitura!

 

Referência

SILVA, Cidinha da. Exuzilhar. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2022.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

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* Cristiane Côrtes é graduada em Letras, mestre em Teoria da Literatura e doutora em Literatura Comparada pela UFMG; pesquisadora dos grupos de estudo NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, na UFMG; Trabalho, Cultura e Materialismo e GELDIS, ambos no CEFET MG. É professora efetiva de Literatura e Redação do CEFET MG, campus IX. Coorganizadora dos volumes críticos: Mulheres em letras: Diáspora, Memória e resistência. 1. ed. Viçosa: Gráfica Universidade de Viçosa, 2019; Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. 1a. ed. Belo Horizonte: Idea, 2016; Literatura Afro-Brasileira - Abordagens na Sala de Aula. 1a. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2014. Atualmente, dedica-se à pesquisa sobre Literatura de autoria feminina, Literatura afro-brasileira e Teoria da Literatura aplicada à formação do professor de EM.

 

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