“Escrevivências”: rastros biográficos
em Becos da memória, de Conceição Evaristo1
Luiz Henrique Silva de Oliveira*
Resumo: a proposta deste artigo é discutir estratégias de construção da obra Becos da memória, de Conceição Evaristo, a partir do conceito “escrevivência[s]”, formulado pela própria autora, o qual oferece rastros da inserção do sujeito autoral na narrativa, através de seu desdobramento na personagem Maria-Nova.
Palavras-chave: literatura brasileira; Conceição Evaristo; romance memorialístico.
Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela.
Conceição Evaristo
Literatura e identidade
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduada em Letras pela UFRJ, trabalha como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior. É Mestre em Literatura Brasileira pela PUC/RJ. No momento, conclui Doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.
Em 2003, veio ao público o romance Ponciá Vicêncio, pela Editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início de 1980. Ficou engavetado por cerca de vinte anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro para a leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007. A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de transcodificação para o espanhol.
A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada sobretudo por excluídos sociais (“lumpesinato”), dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta por empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros. Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros, Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio, Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vô Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam no plano da ficção o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.
Como bem apontam Duarte e Lopes (In www.letras.ufmg.br/literafro), os romances em específico são marcados por intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira. No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.
Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectual afrodescendente para com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.
Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. O projeto autoral empenhado pulula aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebra-cabeça literário/biográfico. Uma das peças deste jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço auto-ficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral incorpora-se e ajuda a criar imagens de outra(s) Conceição Evaristo, projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se o que Phillipe Lejeune (Lejeune 1980: 62) chama de “exercício de elasticidade de um eu central”. Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros. Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem ao gosto do narrador popular benjaminiano. Nesta perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.
Neste livro de corte tanto biográfico, quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de “escrevivência[s]”, ou seja, “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil” (Evaristo, In Alexandre 2007: 20). Ao menos, é o que podemos entrever por suas próprias palavras:
o que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semialfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção de vida. (...) Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura dominante, escrever adquire um sentido de insubordinação (Evaristo, In Alexandre, 2007: 20-21).
A leitura antecede e nutre a escrita para Evaristo, razão pela qual suporta a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado para que ele componha as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens.
Se a leitura desde a adolescência foi para mim um meio, uma maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que eu vivia, a escrita também, desde aquela época, abarcava estas duas possibilidades. Fugir para sonhar e inserir-se para modificar (Evaristo, In Alexandre, 2007: 17).
Em outro momento, ela reafirma seu projeto de escrita:
e se inconscientemente desde pequena nas redações escolares eu inventava um outro mundo, pois dentro dos meus limites de compreensão, eu já havia entendido a precariedade da vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando alguma consciência. Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de autoafirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra (Evaristo, In Alexandre, 2007: 20).
O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino. Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se de rastros do sujeito autoral: menina, negra, na infância, habitante de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria. Ou seja, Conceição e Maria Nova cumpriram no espaço familiar em que estiveram o papel de “mediação cultural” que “aperfeiçoa o processo de bildung” de uma e de outra, para usarmos palavras de Gilberto Velho (Velho 2001: 19). Vejamos depoimento abaixo, da própria de Conceição Evaristo, reeditando as reflexões de Maria-Nova em Becos da memória:
precisávamos do tempo seco para enxugar a preocupação da mulher que enfeitava a madrugada com lençóis arrumados um a um nos varais, na corda bamba da vida. Foi aí, talvez, que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita. É preciso comprometer a vida com a escrita, ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida? (Evaristo, In Alexandre, 2007: 17)
A hipótese com a qual pretendemos trabalhar é a de que a obra se constrói a partir de rastos (cf. Ricoeur, 2007) fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo; condição e experiência. O primeiro, reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. Lê-se o passado e a tradição contrabandeando-os, saqueando-os. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. Ergue-se o que Maurice Halbwachs (2004) chama de “memória coletiva”, já que o processo de identificação entre os personagens e a autora é latente. O terceiro, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e persuasão à narrativa. Aqui, o relato pode ser lido como resultado de experiências e aproximações entre a própria autora e Maria-Nova, esta entendida como desdobramento ficcional daquela e, se quisermos, de tantos e tantos que compõem o enredo, donde se pode dizer que a obra é impelida de um dever de memória/dever de escrita. Assim como o narrador popular, tal como entende Walter Benjamin (1987), em Becos da memória a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Este “jogo especular” presente no texto procura construir parte da credibilidade do relato. Vale destacar que o estatuto de cunho biográfico aqui está muito marcado por uma “forma retórica de representação e dramatização” do sujeito-empírico/personagens (Miranda 1992: 40).
Vale lembrar que os rastros, segundo Ricoeur (Ricoeur 2007: 180), oferecem a possibilidade de interrogações do objeto, uma vez que representam indícios para a elaboração de pontes metafóricas por parte do pesquisador. Estas podem fazer com que o objeto interrogado “fale”, por meio de conjecturas, instaurando, não raro, leituras a contrapelo da tradição. No caso da literatura, mais especificamente a de corte (auto)biográfico, a “impostura” do analista busca romper os contratos de enunciação e fala instituídos, recriando o que Oullette-Michalska (2007) chama de “espaço autobiográfico”. Entram em cena preenchimentos de fendas por parte do leitor, o que ajuda a multiplicar as possibilidades de compreensão do texto em foco, além de problematizar os conceitos de “autor”, “escritor”, “obra”, “(auto)biografia” e “ficção”.
Pactos (auto)biográficos
De acordo com Philippe Lejeune, a autobiografia ou escrita de si se define como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enfocando sua vida individual, em particular a história de sua personalidade” (Lejeune 1980: 14). Além disso, Lejeune, de maneira bastante dogmática aponta a necessidade de correspondência entre o nome próprio assinalado na capa do livro, o nome do personagem principal e o do narrador. Este pacto seria o diferencial entre o referido gênero e o romance. Aliás, este é, por sua estrutura, mais aberto a conjecturas. Preocupa-se com o universal humano, deixando o particular, o individual a cargo da escrita de vidas, não carecendo necessariamente da correspondência entre autor, enunciador e protagonista. Lejeune ainda admite que pode haver declaração do autor como sendo idêntico ao narrador, o que já caracteriza o pacto autobiográfico tradicional (Lejeune 1980: 29). Curioso é que Becos da memória rompe com a conceituação de Lejeune e de boa parte da tradição, o que cria, por um lado, novo espaço autobiográfico através de pontes metafóricas possíveis de serem instauradas pelo leitor; por outro lado, suplementam as dimensões do pacto autobiográfico de Lejeune, pois, embora o nome presente na capa seja diferente do nome da protagonista e da narradora – que não se identifica, embora oscile entre a primeira e a terceira pessoa –, é possível conjecturar um desdobramento da autora em Maria-Nova, ou seja, esta enquanto um “ontem” daquela. Talvez fosse mais apropriado chamar ao texto em questão de autoficção (cf. Souza 2002), pois assim se eliminam os problemas relacionados aos gêneros entre os quais circula o texto, a autobiografia e o romance, entre o “real” e o indubitavelmente imaginário. Isso porque há deformações de dados, é verdade, mas há fidelidade ao modelo biográfico e à disposição memorialística. Senão, vejamos: O primeiro pacto (auto)biográfico de leitura instaura-se já na composição das capas do livro. Espalhadas meio que ao acaso na superfície do papel, vislumbramos fotografias da infância da autora, na qual se percebem parentes e entes queridos. Podemos estender os integrantes das fotografias, metonimicamente, ao conjunto de personagens da obra. Além do mais, outra ponte pode ser instaurada: ficção e realidade entram em estreito diálogo, pois as memórias da autora bem que poderiam ser de vários dos que compõem sua narrativa. A fotografia na porção superior à direita da capa convida-nos inicialmente a desdobrar a autora em Maria-Nova, por exemplo, além de recuperar uma espécie de “passado ainda presente” tanto na vida da autora, quanto na da protagonista, quanto na de seu coletivo. Como bem lembra Wander Melo Miranda,
a reevocação do passado constitui-se a partir de uma dupla cisão, que concerne, simultaneamente, ao tempo e à identidade: é porque o eu reevocado é diverso do eu atual que este pode afirmar-se em todas as suas prerrogativas. Assim, será contado não apenas o que aconteceu noutro tempo, mas como um outro que ele era tornou-se, de certa fora, ele mesmo (Miranda 1992: 31).
A postura corporal séria diante da vida, o olhar penetrante e profundo são caracteres comuns a ambas. Cremos que se intenciona aqui atrair o leitor para o espaço autobiográfico que se pretende dentro da história. Talvez mesmo este olhar, endereçado também ao leitor, seja o mesmo do tempo de enunciação presente ao rememorar uma vida de miséria
Hoje, a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é complicado.
Havia as doces figuras tenebrosas. E havia o doce amor de Vó Rita. Quando eu soube, outro dia, já grande, já depois de tanto tempo, que Vó Rita dormia embolada com ela, foi que me voltou este desejo dolorido de escrever (Evaristo 2006: 20).
Para além do apego à matriarca da família – um valor africano e uma realidade no que diz respeito à estruturação de muitas famílias brasileiras sobretudo nos espaços periféricos – marca a protagonista um dever de escrita, uma ânsia a ser colocada para fora uma cura para que Carlos Drummond de Andrade costumava chamar de “dor de existir”. Vemos também uma estratégia de vida, de combate, tanto da personagem Maria-Nova e seus embates com o cotidiano opressor, quanto de Conceição Evaristo, a mesma que, sem oportunidades em Belo Horizonte, migrou para o Rio de Janeiro em busca de inserção social e lá se tornou professora e escritora. Aliás, o duplo ensinar e escrever parece também marcar o pacto autobiográfico aqui. Os ensinamentos ao moldes de África recheiam a narrativa. Os mais velhos costumam dar conselhos, iluminar os caminhos dos mais novos, reproduzindo o gesto milenar dos griots. O leitor é convidado a beber desta fonte de conhecimentos, escrita em linguagem simples, terna, a qual cria uma noção espiralar para a temporalidade:
Tio Tatão dizia que as pessoas morrem, mas não morrem, continuam nas outras. Ele dizia também que ela [Maria-Nova] precisava se realizar. Deveria buscar uma outra vida e deixar explodir tudo de bom que havia nela. Um dia ele disse, quase como se estivesse que dando uma ordem (Tio Tatão era nervoso, neurótico de guerra).
_ Menina, o mundo, a vida, tudo está aí! Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, libertam-se na vida de cada um de nós que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos (Evaristo, 2006: 103).
Tio Tatão, uma espécie de “voz da experiência” para Maria-Nova, ao refletir sobre os significados da morte/vida dado o episódio de falecimento da prostituta Cidinha-Cidoca, acaba abrindo caminhos para a garota. Podemos ainda, se quisermos, associar a fala de Tio Tatão à atuação de Exu, o orixá que abre caminhos. Mas isto não é nosso propósito. Nas palavras acima, percebemos uma fusão de tempos, fatos e realizações projetadas na garota, quando ela mesma decide a trilhar o caminho da escrita. Muitos outros afrodescendentes ver-se-iam contemplados no sucesso de Maria-Nova. Aliás, a posição de ouvinte atenta aos conselhos de Tio Tatão parece ser a mesma que a autora espera encontrar em seu leitor, sobretudo se afro-brasileiro. Conforma aponta [Luiz Silva] Cuti (2005), o texto afro-brasileiro está imbuído de um desejo de construção e elucidação do leitor negro, o que reitera o caráter muitas das vezes pedagógico da literatura afro-brasileira. Esta postura rompe com o estatuto objetificado da alteridade e a faz sujeito do campo cultural.
Podemos afirmar que as recordações de Tio Tatão, ex-soldado de guerra, metaforizam as memórias das batalhas nas quais se encontraram e encontram boa parte dos negros brasileiros. Assim como as lavadeiras que “chefiam” as famílias de Evaristo e Maria-Nova, Tio Tatão ocuparia também, neste sentido, um lugar de verdadeiro mediador cultural propriamente dito, já que, segundo Gilberto Velho (2001), transita entre esferas sociais diferentes e se hibridiza e hibridiza aos outros com os valores oriundos de pólos sociais diferentes. Nesse percurso, não raro ecoa na voz individual de Tatão a voz de sua coletividade; na escuta de Maria-Nova, a absorção de conselhos dos mais experientes, talvez para não deixar desaparecerem as marcas do passado. Vale lembrar, com Maurice Halbwachs, que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, visto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo pré-determinado. A manifestação da memória individual refere-se à existência daquilo que Halbwachs (2004: 41) chama de uma “intuição sensível”. Tal sentimento, regado de impulsos persuasivos, é o que garante, de certa forma, a coesão no grupo, concebida como o espaço de conflitos e influências entre Uns e Outros.
Um bom exemplo talvez seja a cena por que passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na Escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato - e na Escola - sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as conseqüências da exploração do Homem pelo Homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,
Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (Evaristo, 2006: 138).
A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava a partir de 1530, com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não um arquivamento de vencedores, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia-a-dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Neste sentido, o corpo/texto de Maria-Nova/Conceição Evaristo possuem em comum a “missão política de inventar um outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhe[s] imbui de uma espécie de dever de memória/dever de escrita” (Oliveira, 2007: 110). Vejamos:
A vida parecia uma brincadeira de mau gosto. Um esconde-esconde de um tesouro invisível, mas era preciso tocar para frente. Ela sabia que a parada significava recuo, era como trair a vida. (...) Um dia, e agora ela já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (Evaristo 2006: 161).
E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo.
Não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. Era preciso crer. Vó Rita, Bondade, Negro Alírio não desesperavam nunca. [...] Era preciso viver. “Viver do viver”. A vida não podia gastar-se em miséria e na miséria. Pensou, buscou lá dentro de si o que poderia fazer. Seu coração arfava mais e mais, comprimido lá dentro do peito. O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever (Evaristo 2006: 147).
E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, no afã de “tudo escrever”.
Nota
1. In: Terra Roxa e Outras Terras, v. 17-B, p. 85-94, 2010.
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*Luiz Henrique Oliveira é Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens e da Graduação em Letras (Tecnologias da Edição) do CEFET-MG. Autor, entre outros, de Poéticas negras: representação do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e de Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984).