Para viver nos séculos

Edimilson de Almeida Pereira*

Escrever uma apresentação para a presente antologia de Oswaldo de Camargo é tornar pública uma admiração que dialoga com o pertencimento do autor ao complexo da Literatura Brasileira. Ao considerar a sua trajetória – iniciada com a publicação de Um homem tenta ser anjo (poemas, 1959) – penso no poeta, no ficcionista, no crítico, no jornalista, enfim, no amigo que, por compreender as tensões do meio social e literário brasileiro, mostrou-se capaz de confrontar e de ultrapassar as restrições que esse meio impõe, desde sempre, aos herdeiros da afrodiáspora em nosso território.

A admiração aqui declarada reforça os laços entre dois companheiros de São Paulo e de Minas Gerais, mas vai além dessa experiência pessoal porque se alia a um esforço coletivo, que aposta no direito à vida, sobretudo quando nos damos conta de nos relacionarmos num país onde o risco de morte assedia, de forma incisiva, crianças, jovens e adultos negros. Viver para criar e dialogar, como o faz Oswaldo de Camargo, há seis décadas, constitui o testemunho de um sujeito que cobra, para si e para os excluídos, um olhar justo e interessado por parte da sociedade brasileira.

No que diz respeito aos poemas desta edição, há dois movimentos, simultâneos, que merecem atenção: um desenhado pelas mãos do poeta ao visitar o seu próprio campo  semeado  e, outro,  cifrado  pelas mesmas  mãos que  reconhecem  o  gosto álacre imposto  aos  frutos  pela  ação  do  tempo  e  das circunstâncias  históricas.

Através do primeiro movimento, Oswaldo de Camargo seleciona – dentre a série de seus poemas publicados – aqueles que, segundo o seu parecer, mantêm a sua ductibilidade. Sob esse aspecto, o poeta enfatiza os poemas que se referem aos dilemas da sociedade brasileira ainda não solucionados, particularmente aqueles relacionados à vida diária do sujeito negro.
O segundo poema desta antologia descortina uma questão de ordem filosófica: ao perguntar-se “que posso dizer à vida?” (Eh, coisas), o poeta cria o mote para tecer uma série de respostas, que decorrem do substrato histórico-social desfavorável às populações negras cerceadas pela violência do sistema escravista e suas infindáveis rearticulações contemporâneas. A par disso, o poeta tensiona o seu discurso para criticar a exclusão étnico-social (“a Liberdade que desce às praças/ nos meados de maio,/ pedindo rumores,/ é uma senhora  esquálida, seca,  desvalida/e nada sabe de nossa vida.” – Em maio), convocar os oprimidos à resistência social (“Os vossos doces punhais/ recolho-os com meu disfarce/ e  atrás do muro de um riso/ escondo o meu pensamento...” – Adendo) e denunciar a violência praticada contra as populações negras (“A bala.../ chispou rumo a um espaço aberto,/ onde não estava ninguém, /raspou na trave de um campo,/ apitando como trem,/ seguiu, trombou com o vento,/ entrou nele como alguém/ que tem pressa na viagem,/ e, zunindo, foi além.” – A bala que matou Ninico)

Um dos resultados do retorno da mão àquilo que ela mesma semeou pode ser, em certa medida, a confirmação de uma linha de força que atravessa a obra de Oswaldo de Camargo. Essa linha se alarga e se aprofunda de modo a nos oferecer uma perspectiva das complexas relações que envolvem a sociedade brasileira e as populações negras no âmbito da diáspora.

Uma das contribuições marcantes de Oswaldo de Camargo, que faz coro com nomes como Langston Hughes e Aimé Césaire, por exemplo, consiste na recusa dos valores impostos pelo modelo cultural derivado do colonialismo e do escravismo. Tal recusa se resolve como uma abordagem crítica do discurso oficial, que “escreve” as narrativas das populações negras na diáspora e, simultaneamente, como uma rasura dessas narrativas. Nesse ponto, Hughes, Césaire e Camargo encontraram, cada um à sua maneira, os instrumentos específicos para transformar a rasura numa outra textualidade, tensionada entre as heranças culturais que constituem as suas dicções literárias.

No segundo movimento, algumas das estratégias escolhidas pelo poeta para confrontar a exclusão social e estética dos afrodescendentes são testadas pela própria realidade histórica que as fundamenta. Ou seja, contra a agressão às heranças das matrizes africanas, o poeta reage adotando o processo arqueológico de escavação da memória, com enfoque específico em determinados sítios, a exemplo da retomada de um norte cultural africano (“Que farei do meu reino: um terreno/ no peito,/ onde pensei pôr minha África” – Oferenda) ou da recuperação das cenas cotidianas do trabalho árduo nas áreas derivadas do sistema escravista de produção (“A messe de sons errantes/ no tempo em que nos andamos/ por dentro deitou raízes/ por fora nuvens e ramos” – Cantilena dos negros da Fazenda Soledade).

A reavaliação dos frutos recolhidos, depois de afetados pelas incisões do tempo e das circunstâncias históricas, constitui um desafio para as tendências poéticas que elegem determinados territórios como fontes de certos modelos identitários. Essas poéticas nos recolocam diante do processo de reinvenção da África como o locus de identidade das populações negras na diáspora. Essa África, que o discurso literário reescreve sob várias perspectivas, funciona como uma referência capaz de suprir as demandas de reconhecimento que a sociedade brasileira nega aos sujeitos afrodescendentes.

Contudo, ao convocar seus interlocutores para essa viagem ao lugar da origem (“Ainda vamos embora, vamos embora,/ viver na terra do Congo!” – Festança), o poeta e ensaísta Oswaldo de Camargo nos impele a analisar as contradições que perpassam essa cena reconstruída através da memória. Ou seja, a idealização de África como um recurso de enfrentamento da exclusão das populações negras não nos exime da responsabilidade de pensarmos criticamente sobre esse território, considerando as suas reais contradições.

Desse modo, a antologia recoloca em cena poemas escritos num determinado período em que a idealização do continente africano significava um processo de afirmação da afrodescendência no território da diáspora. Todavia, à luz da contemporaneidade, o recurso da idealização não pode nos impedir de ressaltar o seu caráter restritivo. Em face dos dilemas que colocam em risco muitas das sociedades africanas – tomadas de assalto pelas forças do neocolonialismo econômico, político e cultural – não há como acreditarmos na resolução de nossas contradições mediante o ocultamento das contradições específicas do próprio continente africano. Sob esse aspecto, Oswaldo de Camargo reinaugura para as novas gerações e para a sua própria geração o desafio de repensarmos os modos de  relações  objetivas e subjetivas que estabelecemos com as muitas Áfricas.

Muito do que há para ser dito sobre a obra de Oswaldo de Camargo pode ser encontrado na presente antologia, a exemplo de sua preocupação com os destinos históricos das populações negras e com a articulação de uma perspectiva literária erigida pelas vozes de poetas negros e negras. Além disso, perpassam essas páginas cifradas pelo autor de O carro do êxito algumas das estratégias de resistência que as populações negras articularam e articulam, apesar das condições desfavoráveis que as ameaçam. De maneira sutil e marcante, Oswaldo de Camargo aponta para um campo epistemológico que, se por um lado, permaneceu imperceptível para a sociedade brasileira, por outro, infiltrou-se nela de modo a constituir, com outros fios culturais, um tecido social tensionado, cujos valores, ao longo tempo, são negociados no fio da navalha.

Enfim, há muito para dizermos sobre a poética de Oswaldo de Camargo, porém, o mais importante é ouvirmos as vozes que lhe dão forma e sentido. Ou seja, as vozes do poeta e as vozes dos outros eus com os quais ele se identifica. No momento em que a sociedade brasileira se vê novamente ameaçada pelo retrocesso político, a voz de Oswaldo de Camargo ressoa como um chamado ao tempo presente, irmão do futuro: “Súbito um grito – ô ! – cresceu depressa/ ante as portas do ouvido, um  ‘ô!’ tão longo/ para viver nos séculos.” (Lembro-me, sim, estive lá!).

Ouçamos esse chamado, a poesia de Oswaldo de Camargo insiste.

Juiz de Fora, primavera de 2017.

 


* Edimilson de Almeida Pereira é poeta, antropólogo, ensaísta e professor de Literatura na Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Autor de dezenas de publicações nos campos da poesia, do ensaio e dos estudos antropológicos. Dentre seus escritos poéticos destacam-se Zeozório blues (2002), Lugares ares (2003), Signo cimarron (2005) e Homeless (2010). Como crítico, possui diversas publicações, entre elas o recente Entre Orfe(x)u e Exunouveau (2017), fruto de sua tese de Professor Titular na UFJF.