Marlene, a rodrigueana

Elisio Lopes Jr.

QUEM: A esposa infeliz.

STATUS: Dócil e perversa.

 

(Entrando no quarto do casal. Traz na mão uma xícara de café fumegante, com a qual contracena todo o texto.)

 

Trouxe seu café! Está quente, como gosta. Não pense, porque estou seguindo a vida, que esqueci do ocorrido. Sou capaz de matar se duvidar. Duvida? Não brinque comigo, Agnaldo! Sabe bem que sou fraca dos nervos, uma gelatina. Tive um derrame com 22 anos, posso ter outro a qualquer momento. Sou uma gelatina, mas capaz de matar quando escorrego de mim mesma. Às vezes isso me acontece sem que eu perceba, já estou fora de mim. Escorrego de mim mesma e pronto, está feita a coisa. Quando você me disse: “Não há nada, querida! Regina é tão gorda! Você sabe que prefiro as ossudas.” Tinha um não sei que em você! Não sabe a aflição que me deu. Naquele dia, não comi mais nada. Uma lágrima ficou presa na minha garganta. Não coloquei nem vento na boca, fiquei muda como uma múmia. Você me fez uma múmia, Agnaldo. O dia inteiro pensei em você deitado com toda aquela carne branca em cima de você. Os dois na cama! Tive nojo! Por isso vomitei em você. Quando me tocou, pensei na gorda e vomitei. Sou assim, meu filho, fraca dos nervos, e você sabe como sou. Desde aquele dia, tudo mudou entre nós. Não sou mais a mesma Marlene, me conheço, não sou. Tenho verdadeiro pavor de engordar e vomitar com a minha própria imagem no espelho. Tive ódio da gorda, e sei que ela não gosta de mim. Pior pra você! Me trair com a gorda é dupla traição.

Se ao menos ela gostasse de mim... mas não passa um dia aqui na porta sem me dizer um dichote. Passa obesa e me cumprimenta: “Oi Marlene! Como está o senhor seu marido?” Me provoca! E o pior, ontem, quando ela passou, eu golfei todo o meu almoço, tudo misturado. É, aquele golfo sem querer. Eu estava sorrindo para ela da janela, quando me veio o golfo na garganta e não consegui evitar. Me escorreu a vergonha. Me tranquei no quarto e chorei como uma boba.

(Começa a tomar o café da xícara que segurava. Vai tomando goles e alternando com a fala, daqui até o final.) Ai, ai, três dias já que não choro! Foi depois do golfo que percebi. Como uma visão, entendi que não havia mais lugar neste mudo para nós três. Um de nós teria que morrer. Só a morte pode resolver isso. Essa certeza me cegou e desde então busco uma maneira de matar a Gorda. Uma arma de fogo não conseguiria. Fraca dos nervos como sou, não acertaria a direção da bala. Pensei em empurrá-la da escada da igreja, mas, com toda aquela carne, não daria em nada. Então pensei em convidar a Gorda para o churrasco de domingo e, numa distração, enfiar o espeto de calabresa em sua garganta. Sei que isso sou perfeitamente capaz de fazer. Posso até não resistir à imagem da Gorda com a boca arreganhada, com o espeto cheio de calabresa lhe atravessando a garganta, e vomitar. Mas aí o fato já estará feito e consumado. Espeto!!! Passei dias só organizando, até ensaiei como simular... tomaria um tropeço. Todo mundo tropeça e... hum! Espeto na Gorda! Imagine se eu serviria à Gorda na boca a calabresa que o meu marido comprou para o churrasco. Ela, se fosse menos burra, adivinharia, e quando oferecesse um pedaço, ela responderia: Não, Marlene, está muito gorduroso! É a cara dela dizer que a minha comida está muito gordurosa! Imaginar que essa vizinha já frequentou a minha roda! Agora é você, Agnaldo, quem anda frequentando a roda dela, não é? Deve ser uma roda bem grande. Oferecendo calabresa pra qualquer vagabunda gorda! Sinto tanta raiva de você! É um sentimento tão ruim, tão ruim que se torna bom. Sabe que, desde que tomei a bendita decisão, não vomitei mais? Estou forte, meu filho, como uma pedra! Vou sair dessa muito melhor! Sempre fui para você a melhor das esposas. Você mesmo dizia isso sempre: “Filha, você é a melhor das melhores!” Até que tudo desmoronou em nossa casa por causa de Regina, a Gorda maldita! Não foi difícil perceber a sua mudança, tudo ficou muito claro. Você começou a comprar umas carnes cheias de gordura! Isso já era um indício. Tenho certeza de que come o bife com gordura e pensa na vagabunda obesa. Foi nisso que pensei no ato da decisão. De que adiantaria matar a Gorda e viver o dia a dia com esse incômodo? Como posso continuar casada com você? Existem dezenas de gordas soltas por aí. Então tomei a bendita decisão, da qual falava há pouco. Quem deve pagar pela cachorrada é você. Por isso coloquei veneno no seu café. Eu... eu... (Ela olha para a xícara de café envenenado na sua mão e cai.)

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 129-131)

 

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