Futebol, memória e paixão nos escritos de Michel Yakini

Eduardo de Assis Duarte*

 

Crônicas de um peladeiro tem início com uma declaração apaixonada. O texto de abertura – A ciumeira do menino –, como o próprio título prescreve, narra a descoberta do amor por um moleque de cinco anos, talvez seis, na verdade ninguém menos que o cronista que, em seguida, irá conduzir o leitor por entre passes e dribles, gols feitos ou perdidos. Sujeito adulto e na condição de quem trocou a chuteira pelo tênis, e o campo – gramado ou de terra – pela arquibancada, a voz narrativa recupera o tempo da infância para declarar sua paixão pela bola, em sua visão um ente mágico cheio de mistérios. Embora não nomeada, ela ganha vida na crônica inicial para evoluir poderosa livro adentro. Tratada como objeto do desejo, surge emoldurada de charme e feminilidade na reminiscência infantil: “começamos a paquerar, ela namorava um amigo meu, parecia que não sentia ciúmes e chamava toda a molecada quando eles iam namorar.” (YAKINI, 2014, p. 12).

Mais tarde, quem ocupa o trono é ele, apesar das restrições paternas: “a gente vivia andando abraçados, se exibindo, mas ela, danada que só, sempre paquerou outros meninos e percebi que paquerava as meninas também.” (YAKINI, 2014, p. 13). Assim, entre o amor e o ciúme, cresce o peladeiro para lembrar aquela presença marcante em sua vida: “ficamos até noivos, mas meu castelo esfarelou, isso é sonho de muitos e privilégio de poucos.” (YAKINI, 2014, p. 15). Para, ao final, arrematar seu introito:

Ela é exibida, gosta de chamar a atenção, adora ser contemplada, ser musa inspiradora. Só que quanto mais tempo passa, ficamos menos íntimos, de vez em quando nos encontramos e sem o mesmo pique ainda percorro seus giros, suas voltas, sua magia, mas não decifro seus segredos como antes, não acompanho seu ritmo. Ela goza de eterna juventude e poucos veteranos sabem cortejar sua intimidade, e quando eu não tiver mais força pra correr atrás dela, me resta admirá-la, vê-la desfilar por aí e invejar sua paixão por um outro qualquer. (YAKINI, 2014, p. 15).

Já de início o cronista mostra a sua ginga e, como bom peladeiro, não deixa de lado o drible: na mesma frase em que diz não decifrar mais os segredos da amada, afirma que ainda “corre atrás dela” e “percorre” seus “giros, voltas, magia”. Por outro lado, anuncia que a “intimidade” da juventude será sucedida pelo olhar atento e sempre interessado do já agora veterano. É essa paixão – traduzida em narrativas leves, bem humoradas e cheias de intensidade –, que perpassa todo o livro. Michel Yakini mobiliza a memória do menino acostumado aos “terrões” da várzea para mesclá-la com maestria de quem conhece seu ofício à memória do adolescente aspirante a craque e às lembranças do futebol brasileiro das últimas décadas, filtradas pela sensibilidade e espírito crítico do adulto. Nos antípodas de uma historiografia triunfalista e consagradora de mitos, seu discurso passa também pelos momentos de decepção e abre espaço à crítica e ao questionamento.

Senhor do tempo, o cronista põe em diálogo lembrança e reflexão, experiência individual e coletiva, a várzea e a Copa do Mundo. Suas narrativas vão desde o trauma dos pênaltis perdidos pelo goleador do time do bairro às agruras da seleção brasileira diante da derrota. O menino e o cronista trocam passes. Alternam momentos marcantes do passado de quem tinha a missão de transformar o pênalti em gol e acabou acertando a trave, com o comentário, tão isento quanto possível, sobre a trajetória do esporte que toca fundo na alma do nosso povo. Digo trajetória por ver nos textos de Yakini aquela marca subjetiva supostamente ausente do discurso de quem tem a missão de construir a historiografia “isenta”, “neutra”, “científica”.

Em Crônicas de um peladeiro, ao contrário, a rememoração traz consigo toda uma carga de sentimentos que dão a pista de quanto o autor está envolvido com seu objeto. Creio que a boa crônica sempre remete à experiência do cronista: ele pega o fato com as mãos e faz do fato literatura – pedaço do tempo e da vida tocado pela palavra. E aí, como na pelada, vale todo tipo de fato. Se a primeira pode rolar na grama, na rua ou na terra batida e empoeirada, também na crônica vale o fato recente, o remoto, e até o inexistente na vida real ou enfeitado pela ficção.

Essa intimidade entre narrador e autor empírico remete a uma identificação muito própria da literatura negra: a escrevivência, como propõe Conceição Evaristo. Não custa lembrar certos discursos formalistas de tempos atrás, para os quais o traço autobiográfico comprometeria a literatura deixando-a refém do discurso memorialístico... Todavia, em tempos de autoficção e de saberes transdisciplinares; de quebra de barreiras rígidas e de compartimentos estantes, a escrita que se faz às margens da cidade letrada ganha corpo e voz. E reverbera anseios e paixões de jovens escribas que vieram para ficar, como Michel Yakini.

Crônicas de um peladeiro remete, antes de tudo, para estórias-histórias de vida. Ou melhor, de vidas. O resultado é que o leitor começa pela superfície e mal vê quando já está mergulhado e enlaçado pela teia acima de tudo amorosa armada pelo narrador. O livro o envolve de tal forma que só mais tarde irá compreender. Como num bom jogo de futebol, o que se tem é um gol atrás do outro e quem está do lado de cá toda hora “sai pro abraço!” E aí, é ler a próxima e ver o texto balançar a rede de novo.

Referências

YAKINI, Michel. Crônicas de um peladeiro. São Paulo: Elo da Corrente Edições, 2014.

* Eduardo de Assis Duarte integra o Programa de Pós-graduação em Letras, Estudos Literários, da UFMG e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed. 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: antologia e crítica (3. ed. rev. ampl. 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. ed. 2014, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Coordena a Comissão Editorial do Portal literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.

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