Carta à Princesa Isabel

Adriano Moura

Senhora Dona Princesa,

Meu nome é Maria Rosa da Silva, tenho quarenta e cinco anos, moro em Campos dos Goytacazes. Escrevo para fazer uma reclamação. Sei que quando a senhora aboliu a escravidão no Brasil, fez com a melhor das intenções. Porém tem ocorrido o seguinte: não sou escrava e preciso trabalhar de alguma maneira, mas estão me tirando esse direito. Vou contar o que me aconteceu recentemente. Vi o anúncio de emprego em um restaurante e fui ao local bastante animada. A vaga era para trabalhar na limpeza. Sou faxineira bastante asseada e competente, já trabalhei em casa de muita madame e sempre recebi elogios.

Sou negra, pobre, estudei apenas até a segunda série do ensino fundamental, não tenho todos os dentes em perfeitas condições e minhas roupas estão bastante desgastadas pelo tempo. A dona do restaurante me olhou constrangida, me conduziu até a porta e disse que não queria gente como eu no estabelecimento dela. Como assim gente como eu? Ela não tirava os olhos do meu cabelo bastante desgrenhado, já que eram três horas da tarde e eu estava desde as oito da manhã na rua procurando emprego. Mas o estabelecimento dela não era lugar para mim.

Moro em um bairro considerado “área de risco”. Desde que comecei a trabalhar, preciso mentir sobre o endereço, para que não olhem para mim com desconfiança. Quando consigo um emprego e descobrem onde moro, sou imediatamente demitida. No entanto apenas hoje percebi que a rua do meu barraco não era o principal problema. Não tenho “boa aparência” e isso agrava tudo.

Soube que uma moça rica da cidade disse no facebook que a gente tinha de voltar pro tronco. A coitada não sabe que eu, por exemplo, nunca saí dele. Agora estou sem trabalho e não sei mais o que fazer. Tenho uma filha de dezesseis anos que está cursando o ensino médio técnico. Esta carta está certinha assim porque foi escrita por ela, eu apenas ditei o que vinha à cabeça.  Também não sei lidar com essas modernidades de computador. Ela disse que vai enviar por e-mail, porque ninguém mais manda carta para os outros. Achei isso uma tristeza muito grande. Queria apenas saber se não dá para senhora usar todo o seu prestígio de princesa e interceder por mim nesta cidade ainda com ares de nobreza pré-queda da Bastilha (Nem sei o que é Bastilha. Coisa da minha filha Verônica que gosta de falar difícil). Prometo: assim que eu arrumar um emprego tratarei melhor da minha aparência. Minha filha saiu hoje cedo para procurar trabalho também. Espero que ela tenha mais sorte do que eu. É “parda”, porque o pai era branco. Ela, pelo menos, tem muito “boa aparência”.

                                                Maria Rosa da Silva

(In: Invisíveis, p. 35-37.
Publicado inicialmente em Todo Verso Merece Um Dedo De Prosa)

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