LANDE ONAWALE:

 A LITERATURA-TERREIRO COMO CAMINHO

Henrique Freitas*

SAUDAÇÃO AO ORI
Quem carrega um nome
Saúda a honra à cabeça
do homem
- cabaça -
em toda toda p-arte.

 

Em Kalunga: poemas de um mar sem fim (2011), Lande Onawale já anunciava sua poesia como uma escrita "incansável que come com as mãos" (2011, p.35), e, mais que isso, "letra que dorme em esteira e, como a própria noite, é povoada de ancestres" (Idem). De acordo com Fu-Kiau1, para os bakongos a Kalunga pode ser pensada como força completa em si mesma que tem a capacidade de transformar a Terra e transmutar-se depois no Oceano, significando ainda imensidão, N'kisi bem como portal entre dois mundos. Pretices e Milongas carrega os sentidos dessa kalunga-palavra como força motriz vital, como vetor que gera uma literatura-terreiro multimodal que ultrapassa o registro escrito e assume a canção da capoeira, a ladainha, a cantiga de roda, o canto do candomblé, o corpo em transe e o provérbio como literatura yorubantu (FREITAS, 2019) confrontando-os ainda com outras experiências criativas a exemplo do haikai.

A literatura-terreiro (FREITAS, 2016), sobretudo a de base yorubantu (yoruba e bantu), é aquela que se produz desde o corpo negro e orienta-se por princípios éticos, cosmogônicos e estéticos legados por matrizes epistemológicas africanas presentes majoritariamente nos terreiros, mas também em outros espaços. Tais matrizes estão fincadas de forma incontornável em uma filosofia da ancestralidade (OLIVEIRA, 2007) que se constitui como potência-devir de uma virada epistêmica para as letras no Brasil desde nossxs escritorxs sem livros impressos das linhagens dos Mestres Bimba e João Grande, homenageados por Lande nesta obra, mas passando também por figuras importantes que deixaram um legado escrito como Mestre Didi, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Yemanjá, Makota Valdina, dentre outrxs. Há ainda uma gama de escritorxs que atravessam os Cadernos Negros, como o próprio Onawale, mas que também produzem em outros lugares. A literatura-terreiro é aquela ainda que orienta-se pela circularidade, pelo axé, pelo princípio comunitário de corresponsabilidade e cuidado mútuo presente no ubuntu e que, na sua dimensão mais radical, como a apresentada neste livro, faz do ato da leitura uma iniciação literária que vai desde as línguas africanas rituais (yoruba, fon, kimbundu e o kikongo) mobilizadas por Lande junto com seu pretoguês brasileiro até a experiência quântica de um espaço-tempo bantu que organiza todo o livro. Por isso, é o próprio autor que nos estende a disisa (esteira) em poema homônimo, antes de oferecer-nos seus versos-obi2:

 

disisa é a palma de olorum
estendida sobre o chão
acolhe quem nunca se viu
e as faz irmãs
irmão

Sentadxs na esteira, na condição de leitorxs, é hora de confiarmos para além dos nossos olhos, em nossos oris, para que eles saúdem e também sejam saudados pela literatura de Lande que dança no tempo e espaço bakongo da kala/kunseke (mundo físico) à mpemba/kala (mundo imaterial/espiritual):

Seu Moço,
Lande é
Quem-Kala
a
palavra
- Kalunga-poço -
que no escuro fosso, f a l(h) a. 

Seguindo o mapa do cosmograma bakongo realizado por Fu-Kiau, podemos acompanhar melhor os movimentos, as coreografias e as cronologias de Lande, por isso deixa a Jira girar...

KALA  

Seu Moço,
não me censure, não,
eu só ouço
Foi Lande,
e o n’kisi,

quem disse
O (b)ori
antes da orientação
psi 

Um Mais Velho ensinou-me a respeitar a potência da noite: todo ser se gera é na escuridão, pois é lá que a noite imprime seu véu anímico como pele recobrindo cada ar, cada célula, cada átomo com seu sopro átono no ventre de todas as coisas para que vivam. É o ovo, é o útero, é o de dentro da semente: só depois do pretume da criação, se traz o ser à luz e, no nosso caso, começamos a aprender a olhar para fora.

Olhando para fora, é a Jira, a/o Unjira ou a/o Nzila que anuncia logo nas primeiras páginas da obra de Onawale a inscrição do muntu (pessoa) na dimensão espaço/tempo bantu circular anti-horária desafiando: o inconsciente como infraestrutura normativa no modelo freudiano que colonizou a psiquê do sujeito ocidental, pois nós, iniciadxs nas religiões africanas ou vinculadxs aos tempos/espaços yoruba, bantu ou fon, somos regidos pelo ori e não pelo inconsciente; a cronologia sucessiva que organiza e normatiza tradicionalmente os corpos para exatamente, dessa forma, ser noutro tempo ancestral ou  apenas ser como o próprio N'kisi Kitembo:

se hoje me perdi
ontem me acharei
e o amanhã faço

Ou ainda no poema Sankofa: 

território é o que carrego em mim
e me transporta
para onde eu vim 

A capoeira tomada pelo autor literalmente como poema de abertura do livro, além de ser regido pelo mesmo tempo-espaço circular anti-horário, que se dissemina em toda a arquitetura do texto (as três partes que integram o livro organizam-se nesta lógica, utilizando sobretudo a repetição em diferença para marcar essa rotação), aponta o reconhecimento desse legado artístico no Brasil para além de uma dimensão sociocultural, demarcando nos ritos e ritmos das letras dos angoleiros, mas também nesses corpos em movimento na capoeira textos que se re-citam, se narram e se entretecem. Aliás, a ladainha da capoeira no poema de encerramento (?) dedicado ao mestre João Grande reinicia e gira a roda, N’zila, caminho de eterno-retono da vida em busca da sabedoria pois se “o mundo de Deus é grande", "a minha terra é limão".

TUKULA
Vou desaprender a ler
Para aprender a ver
Camará! 

O tempo-presente como auge do poder físico, como ser humano, a Tukula, aparece no texto de Lande em três vertentes: primeiro, como Ori, que intitula toda a primeira parte do texto, depois na dimensão irônica do haikai que comete o sacrifício ritual do harakiri em  Kairakiri (suicídio também na subversão proposital da forma não usual do haikai) ou no haikai a seguir vazado por um léxico africano e uma afetividade negra desviante da tradição nipônica:

KAFUNÉ
antes de ardermos
e depois
encarapinhados nós dois 

Por fim, como vivência do amor em diversos poemas, já que a impossibilidade de amar é um dos fatores históricos de interdição à humanidade negra:

RESGUARDO
meus desejos espremidos
entre esperas
quimeras para amanhã 

LUVEMBA

Perna erguida na roda
A benção na Barroquinha
A benção fora de moda
A benção mestre Pastinha 

Para Fu-kiau "um ser humano é kala-zimakala, um ser-vivo-de-vida-e-morte" (SANTOS, p. 33) e é exatamente essa ponte-limite que os ritos iniciáticos, como os propostos por Lande na sua experiência de escrita, esgarçam para ampliar nossa percepção da vida, da morte, de todas as coisas, alargando as fronteiras de nossos sentidos:

VODUNSI II (HÊLA!)

navego em águas grandes de aruanda
e o meu caminhar de tombos
agora mais flutua que anda 

A morte-vida como trincheira potencial da ancestralidade africana do sujeito negro se desenha também no poema Obi:

se a maza for por mim
se o mel das minhas intenções fluir
e a cortina do futuro se abrir...
se!

MUSONI

Há tempos,
Onde Eu não sou mais quando,
Sou

O espaço-tempo bantu fecha e abre o ciclo Musoni que Fu-kiau mapeou no cosmograma bakongo. Se as forças necropolíticas e os espíritos de morte operam por um lado apontando o sujeito negro como alvo permanente a exemplo da voz no poema Genocida da sessão Ronda; o poema Sererê aponta para um universo dos mortos,  dos não-nascidos, um paraíso como possibilidade do devir-vida que como o sol certamente nascerá em seu ciclo:

morrer não é ir além
mas ali
tirar férias de si

Quis ir ali com Lande neste `posfácio de seu livro e jingar e dançar com ele, em vez de apenas acenar estático para suas letras do outro lado da página e, ainda agora, aceitando o convite de seu texto, continuo cantando para que vocês também se acheguem e rodem com ele, noutros tempos e espaços nas laudas que se seguem:

Deixa a Jira girar, nesse infinito mar [de palavras],

Camará!

 

Referências

FREITAS, Henrique. O Arco e a Arkhé: ensaios sobre literatura e cultura. Salvador: Editora Ogum’s Toques Negros, 2016.

OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação. brasileira. Curitiba: Popular, 2007.

ONAWALE, Lande. Kalunga: poemas de um mar sem fim / poemsofaninfintesea. Salvador: Edição do Autor, 2011.

SANTOS, José Henrique de Freitas. Yorubantu: por uma epistemologia negra no campo dos estudos literários no Brasil. fólio - Revista de Letras, [S.l.], v. 10, n. 2, fev. 2019. ISSN 2176-4182. Disponível em: <http://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/4575>. Acesso em: 31 jul. 2019. doi: https://doi.org/10.22481/folio.v2i10.4575.

SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, Universidade de São Paulo, 2019. Tese de Doutorado inédita.


Notas

[1] Utilizamos em todo o posfácio a tradução do livro AfricanCosmologyofthe Bantu-Kongo: principlesoflifeand living de Busenki Fu-Kiau realizada por Tiganá Santana em sua tese intitulada A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil (Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, USP, 2019).

[2] Semente, noz de cola, que é oferecida a algumas entidades e às vezes comida pelos presentes; também utilizada em processos divinatórios e ebós.

* Henrique Freitas é professor do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Docente dos Programas de Pós-graduação em Literatura e Cultura, bem como do Mestrado Profissional em Letras da UFBA. Coordenador do grupo de pesquisa Yorubantu: epistemologias yoruba e bantu nos estudos literários, linguísticos e culturais. Autor, dentre outras obras, de O Arco e a Arkhé: ensaios sobre literatura e cultura (2016) E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..


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