Dois homens, duas perspectivas, um só tema: o negro

Elaine Aparecida Lima *

Creio que para ela era melhor ter nascido azul.
Machado de Assis

Machado de Assis e José de Alencar nasceram distintos. O primeiro pobre e mulato. O segundo filho de família branca e tradicional do Ceará. Homens atentos ao século XIX brasileiro, sem dúvida muitos paralelos são possíveis entre eles, não necessariamente por suas características étnicas ou pelo simples contraste de estilos literários e de destinos, mas, sobretudo, porque ambos viveram, em grande parte, o mesmo momento histórico e manifestaram- se, cada um a seu modo, diante dos acontecimentos que buscavam forjar no país um sentimento coletivo do estado-nação moderno. Neste trabalho, analisaremos como José de Alencar e Machado de Assis avaliaram por ângulos diferentes os negros e a escravidão. Para tanto, lançaremos mão, principalmente, dos romances Tronco de Ipê e Til, de autoria alencariana, e das narrativas Iaiá Garcia e Memórias Póstumas de Brás Cubas, escritas por Assis.

Talvez pudéssemos iniciar apontando os diferentes espaços em que estão centrados os enredos de Tronco de Ipê e Til, por um lado, e Iaiá Garcia e Memórias Póstumas de Brás Cubas, por outro. Enquanto as mencionadas obras de José de Alencar são ambientadas no interior brasileiro, as aludidas composições machadianas possuem como cenário o Rio de Janeiro. A nota desta distinção parece imprescindível, pois podemos tê-la como resultado de estratégias distintas na concepção dos trabalhos literários dos autores. Alencar está posicionado como desbravador do território brasileiro, seu objetivo primo é a detecção da autenticidade nacional e, neste percurso, o interior do país simboliza a evolução cultural, política e social brasileira, relativamente mais autônoma, e, por isso, mais autêntica em relação aos gastos valores europeus. Já a escolha do Brasil urbano encaminha Assis à análise de um ambiente fraturado pelos hábitos europeus e, evidentemente, por sua proximidade do poderio social e político, arruinado por uma ordem permeada de equívocos. Nesta conjuntura, o espaço alencariano ganha uma positivação e, consequentemente, uma idealização inexistente na ambientação machadiana, condição que, em parte, explica os diferentes posicionamentos dos autores em relação aos negros. Cabendo a Alencar forjar um passado ideal ao Brasil de natureza exuberante e relações sociais pacíficas, era incongruente que o fizesse por meio da figura de homens marcados pela condição servil, bem como pareceria incoerente com seus propósitos assinalar as injustiças escravocratas presentes no nascente país. Trata-se, portanto, de uma situação oposta à de Machado de Assis. Livre das amarras de um missionário, o último pôde avaliar criticamente as incongruências sociais, políticas e culturais que envolviam os negros e a condição do escravo no Brasil.

Entretanto, esta é apenas parte da explicação. Sem recair no biografismo, podemos asseverar o quanto as origens sociais diferenciadas fizeram de Alencar e Assis homens de pensamentos equidistantes no que se diz respeito ao negro e à escravidão. Político e conservador, o primeiro; mulato e pobre, o segundo, eles expressaram, tanto na literatura como na vida, posicionamentos ideológicos apartados. Ao passo que, por exemplo, José de Alencar se colocou radicalmente contra a Lei do Ventre Livre, afiançando que a intervenção direta do governo na questão escravista e, em especial, a aplicação dos dispositivos dessa lei violariam os “direitos” senhoriais, gerando o caos social; Machado de Assis, como funcionário público responsável por acompanhar a aplicação da supracitada legislação, não mediu esforços para interpretar a lei em benefício dos escravos (CHALHOUB, 2003).

Ao retratar o Brasil interiorano, Alencar o constrói calcado em uma pretensa harmonia, cuja existência elevaria o país frente a desgastada Europa. Diferentemente do ocorrido com Machado de Assis, o ambiente que descreve é aquele em que a exuberância da natureza está em perfeita combinação com o caráter amistoso das relações sociais. No mundo alencariano, a hierarquia é forte e inquestionável, sendo descrita sem nenhum toque de violência. Logo, parece óbvio que, em Tronco de Ipê e Til, as relações entre senhores e escravos não possam fugir a esta regra. Em meio à descrição da beleza agreste e harmônica, senhores e escravos convivem sem atritos: aqueles, felizes com a posição de domínio, e estes alegres por possuírem senhores dignos e bondosos. Cenas de segregação e violência, comuns aos romances de Machado de Assis, são impossíveis em Tronco de Ipê e Til. Segundo Silviano Santiago, a harmonia peculiar das relações sociais dos romances de Alencar nasce da aura feudal que cobre aquele ambiente.

Recobertos pelo campo semântico feudal, não há necessidade de que haja poder coercitivo por parte do chefe contra as camadas que lhe são inferiores. Cada um sabe o lugar que ocupa e que é certo, visto que as possibilidades de transferência, de mobilidade, de ascensão, estão banidas do universo textual de Alencar. (SANTIAGO, 1982:105) 

Ainda que, nos quatro romances, o leitor possa verificar a pouca ou nenhuma importância dada ao negro na sociedade do século XIX. Embora em todos eles, os estes surjam atrelados às personagens brancas, apenas em Assis este feito é marcado pela descrição das humilhações sofridas pelos africanos e seus descendentes1 . Somente Machado,

escapa ao papel de defensor das idéias hegemônicas, provenientes da elite senhorial. [...] a crítica machadiana não visa apenas ao “aprimoramento” dessa ideologia, mas à sua denúncia. Deste modo, a autoria há que estar conjugada intimamente ao ponto de vista. [...] conjunto de valores morais e ideológicos que fundamentam as opções até mesmo vocabulares presentes na representação. (DUARTE, 2007: 04)

Destarte, basta-nos lembrar a cena em que Brás Cubas, menino, faz de cavalo o escravo Prudêncio, para verificarmos o quanto ela seria inverossímil ao Mundo harmônico de Alencar. Frente ao exemplo, o leitor mais atento e incrédulo poderia conjecturar sobre uma das cenas de Tronco de Ipê. Lembrando-se da escrava Eufrosina, ao ser atingida por uma jaca atirada pelo menino Mário, e achincalhada pelos risos das crianças brancas e seus respectivos pajens, o referido leitor afiançaria a brutalidade da cena alencariana. Cabe-nos, contudo, marcar as devidas diferenças entre as duas situações. Parece-nos manifesto o quanto a adjetivação das aludidas cenas torna-se essencial para este procedimento, pois identifica a negatividade alencariana direcionada à escrava enquanto a negatividade do texto de Machado aponta para o senhor. Desta feita, para Machado, Brás (o senhor) é o “menino diabo” (ASSIS, 1997:20) que por maldade e/ou por mau hábito social fazia de Prudêncio seu “cavalo de todo dia” (ASSIS, 1997:21). Já para Alencar, a figura de Eufrosina, coberta de jaca, era por si (não pela violência) “grotesca” (ALENCAR, 198[-]: 33), resultado da “vingança” (ALENCAR, 198[-]: 33) do senhor, cujo nome de seu pai morto vira na boca da escrava e, diante da ofensa, quisera ensinar-lhe, “adoçando a língua” (ALENCAR, 198[-]: 33). Como se vê, enquanto para Machado, as relações entre Prudêncio e Brás são estreitamente relacionadas aos maus tratos de um ser humano em relação ao outro, em Alencar a violência da cena é amenizada, na medida em que se traduz como um ato de justiça, cuja finalidade era estancar os maus hábitos da escrava, ser inferior, a quem cabia aos brancos educar. Aliás, este pensamento do narrador alencariano é muito similar às expressões do próprio autor sobre a pretensa não civilização do negro. Em discurso, Alencar chega a afiançar a América como a terra da salvação dos amaldiçoados homens de cor. Leiamos suas palavras:

Para educar uma raça são necessárias duas cousas: grande capacidade e vigor do povo culto para imergir a massa bruta e insinuar-se por todos os poros; longo tempo para que se efetue essa operação lenta e difícil. A raça africana tem apenas três séculos e meio de cativeiro. [...] Essa família do gênero humano, em cuja tez combusta a tradição mais antiga do mundo lê um estigma da maldição divina, e eu vejo apenas o símbolo da treva moral em que havia de perdurar; essa família infeliz, esteve sempre condenada ao desprezo e ao animalismo, desde Cam, seu progenitor, até Colombo que a devia remir descobrindo a América, sua terra de promissão.(ALENCAR, 1867: 289)

Sob este mesmo prisma, observamos na construção alencariana a mudez das personagens negras. Em momento algum o mutismo abrolha descrito de maneira a que o percebamos como consequência da imposição violenta do branco sobre o negro ou devido à inexistência deste como ser social de direito. Diversamente do ocorrido em MPBC, escrito no qual Brás, para obter a sujeição emudecida de Prudêncio, utiliza expressamente a coercitiva declaração “cala boca, besta” (ASSIS, 1997:21), nos romances de José de Alencar, os instantes em que se estabelece o silêncio das personagens africanas são dados como exigências naturais, tendo em vista a situação espontaneamente subalterna do negro. Nem mesmo o narrador observa o mutismo como emergente de algum tipo de imposição. Em O tronco do ipê, podemos encontrar bons exemplos que vão da demonstração do simples silêncio das personagens negras até o total apagamento das mesmas. Na cena em que Alice, já adulta, vai ao quarto de Mário, acompanhada da escrava Eufrosina, é interessante verificar como esta permanece muda e os senhores conversam como se ela não estivesse ali. Algo semelhante ocorre na continuação da primeira cena do romance, quando os escravos simplesmente desaparecem da segunda fase da cena, dando vazão ao império totalitário das vozes brancas, mesmo que infantis.

Certamente não podemos dizer que os negros machadianos dominem as cenas com suas falas. De acordo com Gizelda Melo do Nascimento, nas obras de Assis, o negro muitas vezes está “sem fala, sem discurso” (NASCIMENTO, 2002: 61). Mas, nestes casos, o modo como Machado constrói suas narrativas demonstra que o negro se cala porque assim lhe impõe a sociedade, o que se destaca não é seu conformismo, mas sua vida humilhante. Lembrar de Raimundo parece essencial, neste ponto. Raimundo fala e, discordando de professora Gizelda, dizemos que ele possui um discurso. Nascimento acredita que os colóquios com Luís Garcia provam que “embora tenha fala, Raimundo não possui um discurso para sustentar um diálogo de conteúdo significativo” (NASCIMENTO, 2002: 56) com seu dono. Em se considerando que, conforme expõe Foucault, “em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos [...]” (FOUCAULT, 2005: 34), parece-nos plausível que uma visão sobre a totalidade do enredo de Iaiá Garcia contradiga a afirmação da professora. O papel essencial de Raimundo no desfecho da narrativa, sua titubeante, porém existente, desobediência à ordem da sinhá-moça e, mesmo, sua fala resoluta ao explicar os motivos que o levaram a contrariar a senhora, provam que Raimundo é capaz de construir um discurso, é capaz de se posicionar racionalmente e sozinho sobre um fato ou uma situação e, mais do que isto, é capaz de defender seu ponto de vista sobre ele. O cerne da análise das conversas de final de tarde, entre Raimundo e Luís, portanto, não está na suposta incapacidade discursiva da personagem. Novamente é Foucault o auxiliar no entendimento das mesmas. Segundo ele,

Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito (FOUCAULT, 2005: 29)

Em outras palavras, as conversas “com o antigo senhor” (ASSIS, 1994:14) apenas versavam sobre o “pequeno mundo, as raras ocorrências domésticas, o tempo que devia fazer no dia seguinte, uma ou outra circunstância exterior” (ASSIS, 1994: 14-15) por alguns motivos básicos: Raimundo sabia onde estava (a casa do senhor), Raimundo sabia quem era (um negro liberto), Raimundo sabia com quem falava (seu ex-proprietário) e, principalmente, tinha plena certeza de que no século XIX, no Brasil, negro não tinha vez, era preciso conquistar certa autonomia, discursando conforme seu interlocutor. Falar de amenidades (em que pese o fato de que todos o falam em circunstâncias de descanso) era então, meio de sobreviver em um mundo no qual o poder estava com o outro e, foi, em muito, por ter agido assim, que Raimundo conseguiu espaço suficiente para atuar da maneira como atuou ao final do enredo.

Aliás, a adequação de Raimundo a seu interlocutor já existira em outro momento do texto. Ao falar com a criança Iaiá, a personagem fala de si em terceira pessoa e infantiliza sua linguagem, continuando a fazê-lo diante da moça, a quem sempre consideraria como a eterna menina, filha de Luis Garcia. Nos momentos de maior intimidade com ela ou, ainda, quando está a lutar timidamente contra a ordem recebida, Raimundo permanece moldando sua fala desta maneira. Todavia, quando cria coragem e confessa não ter realizado o desejo da moça, o negro abandona seus dizeres costumeiros, dizendo sem rodeios: “Não entreguei.” (ASSIS, 1994:138). É certo que diante da imobilidade de Iaiá, Raimundo volta a utilizar-se da terceira pessoa, mas isto não significa que tenha recuado em seu discurso, uma vez que o narrador confessa como a firmeza da personagem continuava viva.

O aspecto linguístico pouco elaborado, dado como esdrúxulo, e a fala de si em terceira pessoa não são elementos intrínsecos, portanto, à expressão das personagens escravas de Machado, porém o são às de Alencar. Os narradores de Alencar, marcando distância das personagens africanas e, simultaneamente, intentando evidenciar conhecimento da cultura daquele povo, procuram veicular um modo de falar dos escravos que se distingue dos homens brancos. Assim, em Til, o narrador chega a utilizar cantigas de escravos e a observar expressões próprias dos trabalhadores negros da lavoura. Há de esclarecer que por si só a opção de resgate de uma tradição africana da linguagem seria bem vinda ao texto alencariano pois, se não gerasse uma legítima literatura que visse e sentisse o mundo pelos olhos do negro, se não formasse uma narrativa em que o vocabulário e os símbolos africanos marcassem a linguagem sem estereótipos (BERND, 1987:18), pelo menos poderia resgatar a memória negra sem preconceitos . Contudo, o empecilho para que o texto de Alencar caminhe por trilhos próximos àqueles de escritores afrodescendentes é que seu narrador impõe à fala dos escravos um caráter de exotismo que lhe retira qualquer conotação humana e natural. É interessante como Alencar, defensor da nacionalização da linguagem literária brasileira e ciente de sua construção a partir da miscigenação dos povos, caiu na armadilha mencionada. Nos romances em pauta, as utilizações das falas estranhas aos moldes formais: “- Gentes, quedê a colcha rica da cama dos noivos?” (ALENCAR, 198[-]: 87).; “-Tição!... tição é seu pai de você [...]”(ALENCAR, 198[-]: 153), aparecem continuamente justificadas pelo narrador. Ele se preocupa em apontar seus objetivos com a utilização, declarando a necessidade de tornar mais vivas e nacionais as obras, mas, em suas colocações, deixa transparecer o preconceito, na medida em que utiliza palavras como “anomalia” e “irregularidades” para comentar as particularidades da linguagem dos escravos, que se assemelharia, segundo ele, à linguagem infantil. 2 :

A linguagem dos pretos, como das crianças, oferece uma anomalia muito frequente. É a variação constante da pessoa em que fala o verbo; passam com extrema facilidade do ele ao tu. Se corrigíssemos essa irregularidade, apagaríamos um dos tons mais vivos e originais dessa frase singela. (ALENCAR, 198[-]: 41).

A tal ponto os narradores de Alencar mantêm a estranheza em relação à linguagem dos escravos que os murmúrios de Zana, acometida pela loucura, eram equiparados aos dialetos africanos, de maneira a rebaixar a cultura e marcar a distância do narrador de um idioma que julgava bárbaro e confuso: “Depois arrancou do peito cavernoso a mesma toada do acalanto, cujas palavras truncava por forma que somente se percebia delas a sonância confusa e estranha. Dir-se-ia que ela cantava em algum dialeto africano, tão bárbara era a pronúncia com que se exprimia” (ALENCAR, 1973: 94).

Retornando à primeira cena de O tronco do ipê, podemos abordar mais um detalhe da formatação do discurso do narrador. Ele, novamente, revela o quanto o mesmo partilha preconceitos correntes na sociedade da época. No fragmento abaixo, é notável como os escravos aparecem excluídos do vocábulo “grupo”, de maneira que, na segunda frase, quando iniciada a apresentação das personagens que compunham a circunstância, são mencionadas apenas as crianças, como se os escravos não lá estivessem: “Na manhã de 15 de janeiro de 1850, saía da casa grande da fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão, um grupo de três crianças, acompanhadas por duas mucamas e um pajem agaloado. Eram duas meninas de onze a doze anos, e um menino de quinze” (ALENCAR, 198[-]: 25). Não se trata do mesmo apagamento que sofrem Prudêncio e Raimundo, pois, nestes casos, as esparsas aparições das personagens não são resultado do olhar do narrador sobre a cena, mas nascem do fato de que os ambientes de requinte dos romances machadianos não admitia a presença contínua e substancial do negro. No demais, é inevitável que digamos que o romance de Machado, em oposição ao de Alencar, não traz um narrador, cujo ponto de vista comungue com a elite. Enquanto os narradores de Alencar esforçam-se em fazer de si boa figura e, por conseguinte, apoiar discursos hegemônicos, os narradores machadianos são homens, cuja perspectiva é aquela “dos setores subalternos” (IANNI, 1988: [s.n.]), mesmo quando oriundos da elite, como Brás, eles olham com desdém, com ironia a alta sociedade brasileira.

Aos narradores alencarianos, é comum a pouca atenção dedicada à descrição das personagens negras. Os escravos são descritos em Til e O tronco do ipê sem pormenores. Geralmente eles são apresentados por meio de seu nome e sua função: Martinho (pajem), Eufrosina (mucama), Vicência (cozinheira), Florência (doceira), Rosa (mucama), Amâncio (pajem), etc. Sem individualidade e com pouca ou nenhuma influência no enredo, são, variadas vezes, tão somente parte do cenário dos romances. Numericamente expressivos, os negros não recebem as descrições físicas e psicológicas ou, ainda, o relato breve de suas vidas pregressas, tal qual o narrador se esforça em fazer com as personagens livres, mesmo que sejam pouco envolvidas no enredo, como Frederico de O tronco do ipê:

Nesse momento felizmente apareceu o senhor Frederico de Matos, moço de vinte anos, filho de um fazendeiro da vizinhança. A voz o apontava como o noivo de Alice, e afirmava que esse casamento já estava justo entre os pais. O comendador Matos era, depois do barão, o homem mais rico do lugar; todos achavam pois muito natural que essas duas riquezas se atraíssem mutuamente por uma irresistível paixão matrimonial. Frederico era bonito moço, mas tinha um rosto de alfenim, redondo, sem a menor sombra de buço; o que lhe dava certo aspecto afeminado e ingênuo (ALENCAR, 198[-]: 107)

Aqui, é possível contrastar, a voz do narrador alencariano, com a voz do narrador machadiano de Iaiá Garcia, quando da apresentação de Raimundo. Embora o narrador de Machado apresente o velho escravo em meio à descrição pormenorizada que faz da casa de Luís Garcia, Raimundo, contrariamente ao ocorrido nos romances de Alencar, não recebe o mesmo tratamento dado pelo narrador aos objetos. Embora, de início, o narrador diga que, Raimundo, tal qual os objetos da casa, fora moldado para servir Luis, a descrição feita do negro traz em seu âmago as características físicas, os dados psicológicos e o passado de um homem, fatores que minam o aparente conservadorismo do discurso. Também enfraquecendo a aparência conservadora das palavras do narrador está outra sutil ação do escravo, relatada em sua descrição: o recuo diante da possibilidade de dilaceramento de sua carta de alforria. Além de evidente expressão da humanidade do escravo Raimundo, o recuo diante do impulso de destroçar sua própria carta de alforria parece demonstrar uma complexa consciência da personagem machadiana sobre sua posição étnica, social e cultural. Ao desistir da destruição de sua carta, Raimundo, mais do que evidenciar, aos olhos do leitor, sua sabedoria de que aquele papel era a única garantia de liberdade a um escravo em um país em que a escravidão era legalizada, mostrava a fragilidade daquele recurso. Tentado a destruir a carta, Raimundo sugestiona demonstrar o quanto a alforria não vinha acompanhada da possibilidade real de liberdade, uma vez que a subalternidade, a marginalidade acompanhariam o escravo liberto. Assim, recuando da destruição, o negro parece querer, de um lado, guardar para si uma prova simbólica, mais do que concreta da liberdade e, de outro, “proteger- se” da luta inglória para o sucesso de um escravo alforriado na sociedade brasileira do século XIX. Desta perspectiva, a permanência na casa de Garcia e as conversas com o senhor são mais do que um convívio harmonioso, são uma estratégia de quem pouco ou nada pode esperar da injusta e escravocrata sociedade brasileira.

Visto deste ponto, o discurso do narrador de Machado se forma sob dois planos. Em um plano mais superficial, expõe a visão senhorial sobre as atitudes de Raimundo, compreendendo sua permanência na casa de Luis Garcia como ato de generosidade escrava e seus cantos como resultantes da alegria de um negro a viver com um bom senhor. Já em um plano mais aprofundado, Raimundo destrói este discurso, trazendo ao lume a existência de uma luta fracassada e silenciosa dos negros contra a escravidão. Moldada por estes dados, a cena de Iaiá Garcia dilacera a figura do escravo fiel, tão cara à literatura e aponta para o posicionamento de Machado de Assis, em relação à importância do governo para o fim da escravidão. Enquanto José de Alencar defendia que o fim do regime seria algo natural, projetado a partir da benevolência costumeira dos senhores ao distribuírem cartas de alforria, bem como resultaria do inevitável branqueamento da sociedade, Machado, segundo Chalhoub, estava crente da necessidade de leis rígidas para o fim da escravidão, bem como afiançava a importância da preparação da sociedade para a recepção dos negros libertos.

Raimundo, a exemplo de Vicente, personagem de Helena, submete-se à lealdade em relação ao senhor porque a vê como única forma de obter privilégios na sociedade escravocrata. Os dois intencionam “traduzir essa obediência em conquistas ou espaços de autonomia” (CHALHOUB, 2003: 53), no que parecem, guardadas as proporções possíveis para uma sociedade brasileira do século XIX, serem bem-sucedidos. Vicente fumando o charuto do senhor, ao lado de Helena, exemplifica maiormente esta conquista. As conquistas de Raimundo, por sua vez, são menos coloridas aos olhos do leitor, porém podem ser sentidas no decorrer do enredo. Ainda que o narrador insista em dizer o quanto aquele escravo “vivia a alegria” (ASSIS, 1994:16) dos senhores e chorara a morte de Luis Garcia, a autonomia de sentimentos e, principalmente, de pensamentos de Raimundo é bem evidente. Ele sorri “entre os dentes” (ASSIS, 1994: 118) ao ver Iaiá enamorada de Jorge, ele chega a argumentar com a sinhá-moça diante do pedido de que ele entregue uma carta dela a Procópio Dias e, ao final, Raimundo muda o destino da trama por desobedecer à ordem da moça. Mesmo que o narrador afirme que o escravo fora tentado a obedecer por avaliar como “infidelidade” (ASSIS, 1994:132) a não entrega da carta, é a desobediência a sua atitude final. Mesmo que o narrador atribua a ação a um ato de bondade do senhor para com a filha de Gama, o fato é que Raimundo não obedece a uma ordem senhorial e, ao final, assume seus atos de olhos erguidos e falando “resolutamente” (ASSIS, 1994: 138). E, é por ter cultivado o espaço de autonomia que lhe era possível naquela sociedade, que, então, Raimundo sai ileso da situação.

Observados por esta ótica, Vicente e Raimundo fogem ao estereótipo do negro fiel, pois, com maior ou menor culpa, utilizam a fidelidade como barganha, algo que não ocorre a Pai Benedito, Nhá Chica, Pai Quicé e Zana, personagens alencarianas. As citadas personagens, apesar de serem as únicas para as quais Alencar dedica um pouco mais de atenção, são exemplos condignos da fidelidade gratuita ao senhor. Todas elas veneram seus proprietários (vivos ou mortos), sendo incapazes de qualquer ato que modifique sua situação ou, ainda, que transforme o enredo dos romances. Destarte, Zana e Pai Benedito são conhecedores dos segredos da morte de seus senhores, mas ambos não desencadeiam a solução do enredo. Ela, sentindo-se culpada pela morte da senhora, enlouquecera. Ele, diariamente venerando ao morto, não toma nenhuma atitude que interfira no andamento da narrativa, deixando que a revelação do segredo decorra da iniciativa de Mário. Aliás, mesmo a imagem de feiticeiro que assola a Pai Benedito não fora construída por ele, que, por outro lado, também não lutou contra ela: “força lhe foi recorrer ao arsenal de bruxarias deixado pelo pai Inácio, e satisfazer aos rogos dos parceiros. Algumas cousas que disse, aconteceu saírem certas, e tanto bastou para aumentar a fé na sua mandinga” (ALENCAR, 198[-]: 50).

Uma verificação atraente é o quanto a ausência de atitude das personagens negras do romance de Alencar se sustenta, também, pelo contraste com as personagens de origem indígena. Para Brookshaw (1983), quando negro surge na literatura romântica, ele aparece em contrapelo à mitificação indígena, marcando-se pela humildade e pela resignação. Assim, em Til, Jão Fera, apesar de assassino, é descrito pela aproximação positivada das características e ações de animais ágeis e ferozes como onças e tigres. Mesmo assassino, ele se via e era visto por sua honradez, coragem e por um significante apreço pela independência, cuja existência o levava a abominar o trabalho braçal e, por extensão, a condição escrava: “Não me torno [...] escravo de um homem, que nasceu rico, por causa das sobras que me atirava, como atiraria a qualquer outro, ou a seu negro” (ALENCAR, 1973: 42).

Execrar o trabalho é comum às personagens não negras de todos os romances que nos são objeto. Em O tronco do ipê, o narrador chega a apontar três formas de ascensão social: a herança, o casamento e o trabalho, porém, no desenrolar da narrativa, nenhum exemplo de ascensão pela labuta é descrito. Em MPBC, pelo lado machadiano, Brás tem verdadeira repulsa pela ação de trabalhar e, não obstante aconselhar que Quincas Borba o faça, deixa de seguir seus próprios conselhos. A percepção do trabalho como humilhação, especialmente o trabalho braçal, não era algo novo naquele momento da história brasileira. Desde os primórdios da colônia, ele foi socialmente visto com falta de apreço e compreendido como “coisa de negro”. Analisando as palavras de Marx, reproduzidas por Bosi, e aplicando-as ao contexto das relações sociais do Brasil escravista, podemos compreender o caráter pouco vanglorioso dado ao trabalho e sua colaboração para a manutenção da injusta estratificação social. Na frase, escancara-se a falta de opções para os socialmente subalternos:

Por certo, o trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, mas choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz beleza, porém para o trabalhador só fealdade (MARX, apud BOSI, 1992: 144)

Reproduzindo discursos correntes na sociedade brasileira do século XIX, também aparecem os escravos alencarianos. As lentes com as quais os africanos se olham nestes romances são as mesmas utilizadas por seus senhores ao julgarem os negros. Não é por outro motivo que, ao conversarem entre si, os escravos de O tronco do ipê e Til julgam sua condição servil com naturalidade. A Martinho, Alice não poderia pegar o fruto que desejava porque a ele, como seu pajem, cabia esta função. A Eufrosina “senhor bom é o que não falta” (ALENCAR, 198[-]: 33) e, ainda a ela, moço branco não deveria ser chamado pelos escravos somente pelo primeiro nome (ALENCAR, 198[-]: 153). Não cessam aí, todavia, as considerações dos escravos que reproduzem preconceitos corriqueiros no Brasil da época. Eufrosina e Florência esclarecem outro deles, pois apontam para a distinção existente entre os próprios escravos. Ao sentir-se superior por ser denominada por sua senhora como “mucama de estimação” (ALENCAR, 198[-]: 37), Eufrosina é instigada pelo mesmo discurso ideológico senhoril de Florência que se sente inferior por não ser escrava doméstica. Ao se diferenciarem entre si, estas personagens negras evidenciam o quanto ignoram o compartilhamento que exercem do cativeiro e, vão mais longe, no uso em comum de preconceitos oriundos da camada social dominante, pois além de humilharem a outros iguais por uma superioridade inexistente na prática, ecoam preconceitos em relação às suas próprias características africanas. Muito expressiva neste ponto é a ocasião em que os escravos desmerecem suas peculiaridades físicas e genealógicas como se não lhe fossem pertencentes a todos. O apontamento do tipo de cabelo, da espessura dos lábios e, mesmo, da origem diretamente angolana dos antepassados formam parte das características que, atiradas ao outro como ofensa, demonstram o aniquilamento da consciência do negro como tal nos escritos românticos:

- Qui-Qui-Qui! Pomada de jaca!... Qui-Qui! Para alisar o pixaim. (ALENCAR, 198[-]: 33)

- Deixa êste tição! Acudiu a Eufrosina. Como ganhou molhadura pela chegada do nhonhô Mário, que não devia ganhar…

- Tição!... tição é seu pai de você, negro cambaio e bichento que veio lá d’Angola... Cada beiço assim! Hi! Hi!

A Eufrosina, cega de raiva, atirou-se ao pajem, que fugia-lhe correndo ao redor da mesa e exasperando a mucama com as caretas que lhe fazia:

- Cada beiço, assim, como orelha de porco (ALENCAR, 198[-]: 153)

Os romances Til e O tronco do ipê trazem à baila, portanto, negros cuja consciência da dominação sofrida esta longe de ocorrer. O ponto de vista adotado é o do branco, ao invés do “discurso da diferença” (DUARTE, 2007:07), há “toda a assimilação cultural imposta como única expressão” (DUARTE, 2007:07), de tal modo isto ocorre que a jovem Eufrosina chega a sonhar com a beleza branca e com a vida na corte. Os escravos alencarianos compartilham os padrões de beleza de seus senhores, ou seja, o padrão de beleza branco. Neste contexto, inexiste qualquer reversão dos valores europeizados (BERND, 1987), perdurando-se os preconceitos correntes na sociedade brasileira. O poema de Cunha Junior parece percorrer caminho oposto:

Cabelos enroladinhos enroladinhos

Cabelos de caracóis pequeninos

Cabelos que a natureza se deu ao luxo

de trabalhá-los e não simplesmente deixá-los

esticados ao acaso

Cabelo pixaim

Cabelo de negro (CUNHA JUNIOR apud DUARTE, 2007: 06)

Em análise da poesia de Henrique Cunha Junior, Eduardo de Assis Duarte, demonstra como aquele poeta faz, exatamente, o processo oposto àquele que contamina a escrita de José de Alencar. No poema, “o tom carinhoso impresso à linguagem [...] no momento em que trata de um dos principais ícones do preconceito racial, dá bem a medida do esforço de reterritorialização cultural empreendido pela literatura afro-brasileira” (DUARTE, 2007: 06) e não presente em Alencar. No poema, “o signo cabelo enquanto marca de inferioridade – cabelo ‘duro’, cabelo ‘ruim’ [...], é recuperado pelo viés da positividade expressa na linguagem: o diminutivo de ‘enroladinhos’ em conjunção fônica (e semântica) com ‘pequeninos’ remete ao ‘luxo’ dos ‘caracóis’ trabalhados pela natureza, ao contrário do cabelo liso, inscrito como fruto do ‘acaso’” (DUARTE, 2007: 06). Tudo isto contrasta com o campo semântico do texto de José de Alencar, marcado por “pixaim”, “tição” e “beiço”.

Assim, o processo de rebaixamento de um negro em relação a outro negro, ocorrido nos romances de Alencar, não sugere igualdade com o mesmo processo presente em MPBC. O capítulo “Vergalho” traz ao lume Prudêncio já liberto açoitando um negro que havia comprado. Diante da cena, saltam aos olhos do leitor a violência do episódio e sua inegável semelhança (desde a sua brutalidade até suas palavras) com o açoitamento sofrido pelo personagem, quando menino. O amálgama destas características faz dele tão reprodutor das ideologias e das ações senhoriais quanto os escravos de Alencar. No entanto, também o coloca em situação diferenciada em relação àquelas personagens românticas, uma vez que ele está livre e não repete as ações do senhor instigado pelo conformismo natural pelo qual estavam contaminadas as personagens de Alencar. Prudêncio somente rebaixa outro negro quando já ocupa a posição de homem livre, o que determina sua plena consciência da oposição entre livres e cativos e distancia o foco do texto de Machado da sociedade harmônica, entre senhores e escravos, talhada por José de Alencar. Prudêncio conhece a linguagem senhorial, ou seja, a violência e, como o próprio narrador revela, tenta através dela “se desfazer das pancadas recebidas” (ASSIS, 1997: 110). Em um primeiro instante, as pancadas e as palavras de Prudêncio direcionadas a seu escravo invocam certa negatividade à sua figura. O escravo de Machado, como o escravo de Nietzsche, intimamente possui um desejo maior: dominar como foi dominado. Ao invés da transcendentalidade cristã, o homem se caracterizaria pelo prazer no domínio do semelhante. “Machado situa-se além dos mitos burgueses da autonomia e da autenticidade da pessoa [..]” (SCHWARZ, 2001: 195).

Mas, a cena em questão continua. A intromissão de Brás retoma, a nossos olhos, a fragilidade da liberdade dos negros alforriados, concomitantemente, desfazendo o tom de vilania de Prudêncio. O estereótipo do escravo vilão e inapto para a liberdade está também, portanto, frustrado em Machado de Assis. Na narração de Cubas, o que se faz verificar não é uma maldade latente advinda de um descendente de uma raça incivilizada e perversa, o que se expõe por ela é a forma como o negro liberto jamais ameaçara o domínio branco. De maneira extremamente chocante, retrata-se a eliminação do acesso à cidadania pelo negro. De acordo com Florestan Fernandes, o aniquilamento da condição cidadã para o negro liberto ultrapassa a questão racial, apontando para seu isolamento econômico, social e cultural (FERNANDES, 2008) e, mais ainda, para a naturalização deste processo, culminando no mito da democracia racial. O certo é que ser negro liberto no século XIX, como bem demonstra a cena machadiana, não era sinônimo de real liberdade. A narração feita por Cubas comprova a invalidade da carta de alforria frente aos arraigados costumes da sociedade brasileira. Afirmando o ex-escravo ainda como “Meu Prudêncio” (ASSIS, 1997:110) e vendo-o pedir-lhe a benção, Cubas ratifica seu inabalável poderio de senhor sobre o rapaz. Tendo sido ordenado por Cubas que perdoasse o escravo, Prudêncio obedece: “Nhonhô não pede, manda” (ASSIS, 1997:110). Satisfeito, Brás sai e, no capítulo seguinte, lembra-se de um louco, cuja loucura consistia em querer ser rei dos tártaros. O irônico narrador machadiano parece sugerir ao leitor que, naquela sociedade, negro não seria rei, a tentativa de sê-lo o conceberia, aos olhos alheios, como insano, motivo de risos, risos que saem da boca de Brás e que, em uma cartada literária inteligentíssima, encaminham definitivamente a aversão do leitor ao narrador. Prudêncio, absolutamente não era o vilão, o execrável era Brás Cubas, o senhor. Neste instante, parece viável lembrar como Machado desmancha, concomitantemente, o estereótipo do negro vítima. Prudêncio não é o vilão, mas também não se afirma como a vítima calada. Humanamente ele tenta superar seus traumas e ocupar um lugar na sociedade. Para tanto, usa as armas que a elite lhe apresentara. Frustra-se, porque assim seria naquela estratificada sociedade, porém Machado o coloca longe de qualquer estereótipo.

Avaliações sobre a brandura da escravidão brasileira e sua imprescindível existência eram comuns na sociedade da época e podem ser vistas em O tronco do ipê e Til. Mário e o Conselheiro Lopes a despeito dos lugares diferentes de que falam, apesar de moralmente antagônicos, concordam sobre a questão. Na noite de Natal, ao observarem o batuque dos escravos, ambos concluem que “o proletário de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso escravo” (ALENCAR, 198[-]: 162) e crêem ser a escravidão a única solução para suprir a necessidade de “braços” (ALENCAR, 198[-]: 162) no país. Esta era uma concepção partilhada pelo político Alencar que discursara contra a lei de 1871:

Estudando depois a existência do escravo, a satisfação de sua alma, a liberdade que lhe concede a benevolência do senhor; se convenceria que esta revolução dos costumes trabalha mais poderosamente para a extinção da escravatura, do que uma lei porventura votada no parlamento (ALENCAR, 1867: 162).

Em se tratando da pretensa benevolência senhorial, é interessante o paralelo entre Machado de Assis e José de Alencar. Apesar de nos quatro romances analisados os senhores manterem figuração central no enredo, apenas nas narrativas românticas os soberanos emergem como homens irrepreensíveis e protetores. Os exemplos de suas bondades para com seus agregados e, principalmente, para com os escravos são inúmeros. Em um paralelo com os senhores machadianos, a idealização de Alencar sobre estas personagens fica ainda mais visível. Enquanto Luís Galvão reina com tranquilidade em sua fazenda; e enquanto o Barão da Espera é soberano em toda a região do Boqueirão e se redime de seu único erro durante toda sua existência; Brás Cubas revela, pós-morte, sem arrependimento, com muita crueldade, ironia, e até certo orgulho, sua vida de desvios, na mesma medida em que Luis Garcia teme desafiar o poder senhorial de Valéria e, fraco, cede ao pedido de que convença Jorge a ir para a guerra. Eis, novamente, Machado de Assis destroçando um estereótipo sem recair em outro. Deixando de idealizar os senhores, Machado também não encaminha seu texto para a construção de personagens cujas ações se reduzam aos maus-tratos aos escravos. Ainda que, especialmente em MPBC, não sejam construídas cenas de benignidade entre escravos e senhores, a humanidade de suas personagens impede que a construção recaia em maniqueísmos simplistas.

Como estamos averiguando, muito importante no processo de construção das imagens relacionadas aos escravos nos romances são os narradores. Vale ressaltar que em José de Alencar e, em maior monta, em O tronco do ipê, o narrador tenta forjar para si uma imagem de ser analítico e isento. Ele desconfia da alcunha de feiticeiro de pai Benedito, observa com desconfiança as crenças populares e se esforça em comprovar sua imparcialidade sobre os fatos, ora fazendo-o através do destaque de sua posição de recém conhecedor dos acontecimentos, ora declarando seus “métodos” para a construção da narrativa. Assim, destaca sobre Mário: “Não hei de encobrir os defeitos desse caráter, como não pretendo exaltar suas qualidades.” (ALENCAR, 198[-]: 96). Sua clara intenção parece ser captar a confiança do leitor, predispondo-o a crer em suas opiniões ao longo da narrativa. Opiniões estas que serão comuns também ao narrador de Til.

Em ambas narrativas, os narradores marcam distância em relação aos escravos, o que possibilita que os julgue como seres intelectualmente inferiores. Mais ou menos diretamente, as conclusões a que chegam os narradores é a de que os negros são “almas rudes, não se compreendem a si mesmas” (ALENCAR, 198[-]: 24) e, por isso, precisam “falar para ouvirem o que pensam” (ALENCAR, 198[-]: 24). A tal ponto os negros são primitivos diante dos olhos dos narradores alencarianos que seus sentimentos são incompreensíveis a todos, inclusive a si mesmos. Por estas vias, pai Bendito não sabe o motivo que o leva a venerar Mário e o detalhista narrador não consegue explicar as reações daquelas almas: Que passava nessa alma para assim transfigurar o rosto grosseiro do escravo? Era dor, era espanto, era unção? Ou tudo isso reunido? Quem o pode saber? (ALENCAR, 198[-]: 41).

Ignorantes de si mesmos, os negros, sob as lentes destes narradores, seriam também marcados pela insensibilidade em relação à beleza natural do Brasil. A comparação elaborada pelo narrador de Tronco de Ipê para traçar esta incompetência demonstra o quanto preconceituosa é sua posição. Ao aproximar crianças brancas e escravos, ele afirma a insensibilidade em ambos, porém os vocábulos “ainda mais” direcionam aos negros a maior brutalidade e reservam a eles a eternidade da indiferença frente a beleza natural: “as crianças, e ainda mais os escravos, conservaram-se completamente indiferentes à beleza desse quadro, que a natureza tropical coloria ao mesmo tempo de luz e harmonia” (ALENCAR, 198[-]: 30)..

As narrativas de Machado, em mais este quesito, fogem às de Alencar. O recorte sem sentimentalismos, ferino, cético e incisivo, impõe à escrita uma contundência social crítica incomparável. Seu narrador não acredita na sociedade e, portanto, não poderia jamais reproduzir afirmativamente seus discursos. Apresentando um descontentamento para como os ideais apregoados, o autor chega à discussão do “fundamento secreto dos valores, da verdade, inclusive, que sem a vontade e o poder social de impô-los, não seriam nada” (SCHWARZ, 2001: 177). Não parece ser por outro motivo que sua maior ferocidade sobre a questão escrava esteja em MPBC, livro narrado por um morto. A perspectiva cética de Machado está intrinsecamente ligada à autoria. A escolha de um autor morto possibilita a Machado discursar de um lugar alternativo. Como se a verdade, a exemplo do que diria Santo Agostinho, só fosse possível fora da vida, a opção por uma autoria defunta permite a expressão livre sobre a miserabilidade humana e, consequentemente, revela a olhos nus o estrume e a terra que formam a elite social brasileira. (ASSIS, 1997: 23)

Outro artifício a marcar, concomitantemente, a distância e o preconceito dos narradores de Alencar em relação aos negros diz respeito ao processo de animalização dos escravos. Ele surge ora para marcar as ações ou sentimentos, ora para aferir as características físicas. Nas duas situações, as comparações são depreciativas, seja pela existência de esclarecimentos dados pelo próprio narrador neste sentido ou pela escolha do animal utilizado no contraste. Desta feita, Monjolo é a “trouxa negra que avançara pelo terreiro aos pinchos como um sapo” (ALENCAR, 1973: 259); Mário amava tamanhamente pai Benedito, assim como apreciava “um cão ou um cavalo” (ALENCAR, 198[-]: 162) e o pajem mostrava “o focinho entre a folhagem da última gripa do jequitibá” (ALENCAR, 198[-]: 89). As comparações e metáforas expressam, de uma só vez, a inferioridade e a submissão a que estão sujeitos os negros no Brasil e a concordância que o narrador parece compartilhar a este respeito.

Os exemplos em relação à zoomorfização do negro em José de Alencar são inúmeros e em muito se aproximam do mesmo processo utilizado em romances naturalistas, uma vez que não servem para demonstrar o tratamento desumano relegado aos escravos, mas constroem seres ontologicamente degradados, bem a contento de uma elite que via na população negra uma raça inferior3 . Neste ponto, a zoomorfização presente em Alencar parece intrinsecamente relacionada à sua afeição por teorias de Darwin e Spencer. Embora romântico, Alencar comungava com estas teorias a concepção de que a inferioridade das “raças primitivas” era biologicamente explicável, de forma que, com o decorrer dos anos a eliminação das mesmas seria irremediável. Assim, ao montar seus argumentos em prol da escravidão, Alencar afirma que ela trouxera ao Brasil a positividade da miscigenação que geraria uma civilização nova e, com a passagem dos anos, branca: “Em três e meio séculos o amalgama das raças se havia de operar em larga proporção, fazendo preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam no Brasil para uma transformação completa” (ALENCAR, 1867: 282).

De acordo com Jean-Yves Mérian, a influência de Spencer e Darwin em Alencar ultrapassa os aspectos ligados ao branqueamento da pele. Para o crítico, em Alencar o processo mencionado ganha, principalmente, um cerne cultural, na medida em que seus livros expressam repúdio à cultura não- branca. Por estas vias, ele explica não só o relacionamento do autor com a cultura negra, mas a construção do mito indígena. Sua conclusão acerca de Iracema ilustra bem seu entendimento sobre o romancista do século XIX:

A índia e o povo indígena ao qual pertence desaparecem dando lugar a um ser híbrido que não transmite nenhum dos valores culturais, linguísticos, religiosos do povo materno. Destarte não se trata de sincretismo mas sim de uma forma de assimilação que se manifesta num processo de genocídio (MÉRIAN, 2008:51)

A cultura negra, portanto, é observada com negatividade pelos narradores alencarianos. Tanto em Til como em O tronco do ipê, os narradores se esmeram em abordar com detalhes a religiosidade e os festejos negros. Se, por um lado, tal dedicação pode estar relacionada à intenção de retratar a cultura do interior do Brasil, por outro, os comentários dos narradores infiltram na história julgamentos que, ora destacam a bondade dos senhores pela permissão dos festejos: “Na noite de Natal os pretos da roça tinham licença para fazer também seu folguedo, e os senhores estavam no costume de por esta ocasião honrar os escravos, assistindo à abertura da festa que principiava pelo infalível batuque” (ALENCAR, 198[-]: 161), ora argumentam em prol da ausência de racionalidade e disciplina que marcavam estes encontros. Em Til, a descrição criteriosa dos movimentos dos negros em uma das festas é repleta de verbos que, dispostos de maneira gradativa, compõem o que o narrador nomeia de “desesperado saracoteio” (ALENCAR, 1973: 251). Aos olhos do narrador, a irracionalidade e a indisciplina a tal ponto dominam a cena que, ao final, a comemoração desemboca em uma briga, na qual todos os escravos se envolvem. Destarte, a abordagem cultural negra, em Alencar, não culmina em um processo de conscientização da originalidade africana, capaz de gerar uma contracultura (SCHWARTZ, 1993). Em Alencar, a tematização da cultura negra, vista pelas vias do exotismo, exclusivamente reforça um discurso já posto: a superioridade da cultura branca.

Certamente preconceituosa em relação à cultura africana, a última cena aludida retoma também a convicção da época sobre a inaptidão negra para a liberdade, tema também passível de discussão diante da condenação de Faustino e Monjolo, escravos que teriam traído a confiança do bondoso senhor. Estes posicionamentos estão de acordo com o político José de Alencar. Para ele, a liberdade dos escravos no Brasil ocorreria, mas paulatinamente, no mesmo ritmo em que o branco fosse conseguindo civilizar ao negro. Afinal, conforme os próprios romances demonstram, os escravos eram objeto e, como tal, cabia ao senhor o mando, cabia a ele decidir sobre o merecimento ou não da liberdade, cabia aos senhores aceitar ou não a validade das cartas de alforria e, neste ponto, diziam muitos: “liberdade ao negro... quando inútil ao trabalho ou quando morto”.

Momentos em que o discurso do narrador seja sustentado pela defesa de preconceitos tão correntes na sociedade do século XIX são, como expusemos, corriqueiros em Alencar. Todavia, não podem ser vistos em Machado. O ceticismo, a ironia, a sátira requintada, a paródia e a carnavalização das obras do autor não lhe permitem que discurse de acordo com a hipocrisia social, com o determinismo ou com o evolucionismo tão em voga na época. Apesar de nunca ter se apresentado como negro, Machado de Assis, ao escrever contra a elite dominante, defendeu os afrodescendentes. Obviamente, tendo por escopo o retrato da sociedade de seu tempo, nas salas das casas de senhores do Rio de Janeiro não poderia expor a cultura negra, não poderia fazer protagonista o negro, porque assim, exilado, discriminado estava na prática o escravo. Desta feita, parece óbvio que, mesmo sem ter gritado aos quatro ventos sua cor, Machado tenha construído uma literatura que “romp[ia] [com] o discurso da cultura oficial, e se manifesta[va] como um elemento de resistência à [...] marginalização social” (MOURA, 1980: 09). Enfim, se fosse de outro modo, não poderia Brás expressar sobre a negra borboleta: “creio que para ela era melhor ter nascido azul” (ASSIS, 1997: 62).

Referências:

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MOURA, Clóvis. Prefácio. In: Cadernos Negros, n. 3. São Paulo: Autores, 1980, p. 07-11

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ZILÁ, Bernd. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

* Elaine Lima é doutoranda em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Londrina.

1Segundo Mailde J. Trípoli (2006), enquanto Castro Alves denuncia a violência explícita a que os escravos e, principalmente as mulheres, negra e mulata, estavam expostos, Machado revela outras formas de violência, nem sempre tão explícitas, mas igualmente cruéis e doloridas.

2É interessante o como a infantilização da linguagem pode pressupor também mais um argumento em prol da falta de aptidão do escravo para a liberdade, haja vista a pretensa falta de maturidade delegada ao negro.

3Contudo, a animalização de senhores e escravos é diferenciada. As comparações de personagens brancas a animais não as rebaixam os desqualificam, antes realçam suas melhores características: “Seu passo era ágil, rápido e sutil como o passarinho, de que tinha a volubilidade e a gentileza. Ela desferia de si ao mesmo tempo três movimentos: cantava, corria e dançava” (ALENCAR, 198[-]: 27).

 

 

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