MILHO OU FEIJÃO

Aidil Araújo Lima

 

Elas despem as afrontas e cantam, suspendendo os rastros de dor; tornam-se sombra, entregam-se ao sagrado. Dizem que quem canta seus males espanta. Elas espantam a tristeza com seu canto, trajadas de cores simbólicas, enfeitadas com contas de sentido sem tamanho. São mulheres de santo negras, mulheres de fé. Acordam no pensamento a todo instante, a proteção do seu orixá, é só distrair a mão no pescoço, que as contas iluminam as trevas no caminho. O clarão vem como um raio antes do trovão quando elas passam em cortejo, vestidas de branco, espantando fantasmas da existência. Vozes ecoam, desassombrando o tempo, que acompanha o compasso num passo de eterno abrigo, assustando a tristeza, soltando a felicidade em qualquer ocasião. Certas lembranças acesas pelo toque dos atabaques embalam a memória, o toque do agogô acorda o transe, elas dançam pelas florestas, rios, mares, retornam suadas e felizes. Regressam a vida desesquecidas por instantes, o orixá Ogun acende o caminho no mato. Pegaram certezas neste reencontro inesperado, esperam uma vida de alegria demorada, com esta luz que ilumina a floresta. Toda noite elas cantam convidando os orixás e, dormem um sonho de felicidade. As mulheres de santo a cada dia estavam mais felizes, alegria vista, atraindo mulheres negras cheias de sofrimento. Dessa maneira se tornaram Irmandade. Milho ou feijão decide o nome. O milho confirmou o nome Irmandade da Boa Morte. Elas aprenderam a perder a memória da dor, coagulando o tempo na felicidade, servindo para as duas finalidades, vida e morte.

(In: Mulheres sagradas, p. 65)

Texto para download


LIVROS E LIVROS

Ficção

L. C. Lawa - Além das águas de cor
Além das águas de cor marca a estreia no romance de L. C. Lawa, pseudônimo do escritor e cineasta mineiro Eustáquio José Rodrigues. Engenheiro de formação, com mestrado em Administração Pública, e autor de alentado estudo sobre o setor elétrico brasileiro, seus primeiros contos surgem no volume Cauterizai o meu umbigo, de 1986, a que se seguiu a publicação de Flor de sangue, em 1988. Já então o ficcionista dava mostras de pleno domínio da narrativa curta, como no impactante “Pão da inocência”, selecionado mais tarde para o volume ...

Poesia

Marleide Lins de Albuquerque, Ernesto Moamba (Orgs.) – Antologia poética Brasil-Moçambique
 Criar caminhos de diálogos entre Brasil e África sempre esteve em pauta no cenário literário brasileiro. Seria perverso olvidar que os primeiros escritos produzidos por brasileiros/as tiveram a presença da África como parte inegável de nós mesmos. Todavia, a maneira como foi poetizado ou narrado o continente, o ethos populacional, o fluxo diaspórico e as heranças aqui deixadas sofreram intermitentes desvalorizações, uma vez que a historiografia li...

Ensaio

Beatriz Nascimento - Todas as distâncias
Um retratoUm retrato,Um espelho.Um rosto,Um outro rosto.Quantas faces de si em si mesma? (Beatriz Nascimento, p. 36).   O livro Todas [as] distâncias: poemas, aforismos, e ensaios de Beatriz Nascimento, organizado por Alex Ratts e Bethânia Gomes, é uma importante publicação, lançada pela editora Ogum's Toques Negros em 2015, por reunir escritos de Beatriz Nascimento. Ela, “mulher, negra, nordestina, migrante, professora, historiadora, poe...

Infantojuvenil

Helena Theodoro - Os Ibejis e o carnaval
A epígrafe inscrita acima é um dos orikis2 para os ibejis, divindades gêmeas do panteão nagô que, no movimento de sincretismo religioso à brasileira, foram associados aos santos católicos Cosme e Damião. (Re-)configurado e (re-) contado, o mito de origem yorubá é presentificado e atualizado por meio do rito que tem nas festas de Cosme e Damião (Erê, Vunji, Ibejis), comumente realizadas no fim de setembro, o seu traço mais vult...

Memória

Clarice Fortunato – Da vida nas ruas ao teto dos livrosMistérios de uma nova Clarice   Simone Pereira Schmidt* A poderosa escrita de Clarice me atingiu em cheio. Lembro-me perfeitamente da noite em que seu texto me chegou de Exeter, na Inglaterra, onde ela estava realizando parte do seu doutorado. Quando comecei a ler sua história, fui sendo tomada pela surpresa e emoção. Nos conhecíamos havia muitos anos; como pode uma pessoa com quem convivemos há tanto tempo desvelar diante de nós, assim de repente, a narrativa de uma vida de que sequer suspeitávamos? Minha primeira lembrança de Clarice são seus olhos, inquietos, curiosos, assustados. Se me ...

Newsletter

Cadastre aqui seu e-mail para receber periodicamente nossa newsletter e ficar sempre ciente das novidades.

 

Instagram

 

YouTube