Ficção e história em Além das águas de cor

Glauciane Santos*

Além das águas de cor marca a estreia no romance de L. C. Lawa, pseudônimo do escritor e cineasta mineiro Eustáquio José Rodrigues. Engenheiro de formação, com mestrado em Administração Pública, e autor de alentado estudo sobre o setor elétrico brasileiro, seus primeiros contos surgem no volume Cauterizai o meu umbigo, de 1986, a que se seguiu a publicação de Flor de sangue, em 1988. Já então o ficcionista dava mostras de pleno domínio da narrativa curta, como no impactante “Pão da inocência”, selecionado mais tarde para o volume Cadernos Negros, os melhores contos, organizado pelo Quilombhoje em 1998.

No romance, o autor contorna o ambiente de miséria e violência que marca muitos de seus contos, para jogar o leitor no labirinto das relações nem sempre palpáveis entre literatura e história, entre o que foi e o que poderia ter sido. Já na abertura, deparamo-nos com a epígrafe: “... e se a ficção, na realidade, é ficção, então a realidade, na ficção, é realidade...” Está aberto desde logo o instigante quebra-cabeça que parte de um longínquo e perene mar de estórias para de lá trazer, entre remanescentes da república negra de Palmares e de bandeirantes sequiosos do ouro oculto na terra brasilis, o motivo da... busca do tesouro! As tensões entre história e estória, verdade e verossimilhança traduzem o tom da narrativa. O leitor embarca numa viagem em que os signos da luta e da posse, da perda e da procura irão conduzir o enredo entre tempos e espaços distintos: dos séculos XVII e XVIII ao “Brasil Grande” dos anos da ditadura militar; e da floresta quase intacta às modernas metrópoles.

Um dos espaços cruciais da trama está localizado na Amazônia mato-grossense, mais precisamente na reserva Waimiri Atroari de Aripuanã, começo e fim quase obsessivo, ponto nevrálgico que dá nome ao livro:

No pequeno canyon por trás do círculo de pedra, onde as águas, de amarelas que eram, passam, numa estreita faixa, a se tornarem verde-escuras, ali estavam, desenhadinhos, os baús do século XVIII, com seus cadeados, vigas de reforço, alças, prontos para se tornarem meus... Estava bem claro. Não era no pé do morro, nem debaixo da cachoeira. Estava mais além. Além das águas de cor. (LAWA, 2014, p. 210).

A busca do tesouro move o enredo e faz a conexão entre os diversos planos em que se constrói a narrativa. Esta se pauta pelo mecanismo da fragmentação inerente ao romance moderno: passado e presente se misturam, datas como as referentes aos anos de 1711, 1720, 1965,1974, dentre outras, são apresentadas de forma descontínua, entretanto formam um mosaico preciso; tramas distintas, só aparentemente desconexas, se entrelaçam no enredo; múltiplos espaços, como Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, São Paulo, dentre outros, compõem a ambientação; e o foco narrativo oscila da primeira para a terceira pessoa como forma de abrigar as tensões entre discursos e pontos de vista distintos.

O romance tece seu enredo a partir da criativa articulação entre dois importantes fatos históricos: a revolta palmarina, que se estende por praticamente todo o século XVII e mobiliza grande parte das energias do governo colonial; e o Ciclo do Ouro, que marca o desenvolvimento da colônia no século seguinte. O Quilombo de Palmares foi o mais duradouro movimento de resistência contra a escravidão em toda a história do Brasil, sendo derrotado apenas em fins de 1695, com a morte do líder Zumbi. Acaso ou coincidência histórica, é justamente na última década do século XVII que surgem os primeiros indícios e descobertas auríferas na região do Sabarapussu, em Minas Gerais, decorrentes das perseverantes explorações dos bandeirantes Fernão Dias e Borba Gato. Mas que ligação pode haver entre fenômenos tão distantes no tempo e no espaço?

L. C. Lawa inscreve seu texto à margem desses acontecimentos e habilmente os articula ao enredo, tomando-os como ponto de partida para uma viagem que chega ao século XX. A narrativa se inicia com fragmentos transcritos de uma carta do Alcaide-Mor de Salvador, Dom Diego Gomes Furtado, a El-Rey D. João V, por ocasião das bodas de sua filha, a infanta Maria Bárbara, com o príncipe das Astúrias: “... e dos cruzados mandados, dois milhões se dê ao dote, e um milhão se volte à igreja, do Rosário e dos Pretos, para que se construa e termine, tantos males a tal gerou. E dos lavores malês, urdidos...” (LAWA, 2014, p. 14). Destaque-se o fato de que a citação é parte de outra carta, na verdade o capítulo de abertura do romance, datada de 7 de março de 1977, e escrita pelo narrador-personagem a seu amigo Leo. A carta dentro da carta serve como ponto de partida da trama e já anuncia o movimento de por a história dentro da ficção e a ficção dentro da história.

Em seguida, o leitor é apresentado ao jovem quilombola Isaía Kipumbulu, indicado pelos búzios como o que “já nasceu sábio” e como “aquele que deve partir” para uma “Missão Maior”. Assim, em pleno 1695, pouco antes do assassinato de Zumbi, o jovem, que aos quinze anos já fazia parte do Conselho dos Anciãos, deixa Palmares rumo a Salvador para iniciar uma longa peregrinação junto às várias irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos – forma alternativa e pacífica de resistência à escravidão. De Salvador, Kipumbulu segue para a capital da Colônia e, mais tarde, para a grande tarefa de sua vida: furtar as arcas portuguesas cheias de prata e ouro para, em seguida, levá-las à igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Rio de Janeiro. Dos dois desafios, apenas um é cumprido e o tesouro só chegará em terras fluminenses séculos depois.

Num ritmo característico do romance contemporâneo, Além das águas de cor insere-nos em seguida no século XX, para encenar os primeiros passos da busca empreendida pelo narrador, outro jovem negro que mais tarde irá se embrenhar pela Amazônia mato-grossense. Concorrem com ele Leo, seu amigo de adolescência, e tantos outros empenhados em enriquecer numa sociedade capitalista regida pelo individualismo. Ainda criança, morando em Minas Gerais, conheceu Leo, na ocasião com doze anos, amante de revistas e livros, estudante aplicado de história e geografia, que “tinha anotadas as lendas, mapas e roteiros de tesouros perdidos nos tempos antigos”. Com sua imaginação, Leo instiga o narrador a se interessar pela descoberta. E dessa amizade nasce o interesse e a posterior obsessão pelas arcas levadas por Kipumbulu e seus amigos para o seio da floresta, “além das águas de cor”.

Aos dezessete anos, Leo parte para Alemanha não sem antes confiar ao amigo sua coletânea de mapas e documentos. Pede a ele que cuide e acrescente a esta o que mais encontrar. Tem então o narrador a oportunidade para demonstrar sua ambição, ao planejar partir sozinho em busca do possível tesouro. Com o retorno do amigo, o narrador continua seus propósitos, Léo se forma em arquitetura e este em Engenharia Elétrica. Diplomado, parte para o Mato Grosso em busca de pistas do tesouro, justifica-se junto a familiares e amigos afirmando que tinha proposta de trabalho em uma hidrelétrica. Desde então, tem consciência que não voltaria. Talvez o mesmo pensasse o amigo Leo, que jamais o veria de novo.

A partir desse momento, a narrativa embrenha por uma sucessão de episódios próximos do rocambolesco, com direito a cenas próprias de um romance de aventuras. Habilmente, Lawa vai tecendo os fios que ligam passado e presente, num vasto painel onde há lugar tanto para a ação persistente de Kipumbulu e seus quilombolas, com destaque para sua aliança com nações indígenas, até a criação da lendária cidade de “Conta Negra do Rosário” e seus “índios pretos”, quanto de inúmeros caçadores de tesouros. É então que surgem figuras como o indonésio Henry Dorian Hermann, filho de pai holandês e mãe russa, um “missionário da eletricidade” e “impenitente caçador”; o peruano Acosta, morador de Sanga Puytã, próximo de Ponta Porã, “bravo boêmio que assolou as noites de Lima e Manaus”; o belga Sirol Canivet, rebatizado Loris de Souza, velho de hábitos e trajes simples, que trazia um mapa tatuado no corpo e cuidava de uma draga instalada na região, aparentemente a serviço do governo; além figuras de índole duvidosa como Lino Cabrera, de perfil inca, mas de misteriosa procedência, ou Arísia, que se aproxima do narrador para roubar seus segredos. Tudo isto ao lado da galeria de agentes do poder colonial, de bandeirantes a nobres e militares a serviço da coroa portuguesa. No trânsito entre a Colônia e o “Brasil Grande”, entram em cena Dom Diego Mendonça Estival, que se juntou à Bandeira de Fernão Dias; e sua esposa Clara de Mendonça Estival, viúva do Capitão-Mor da Coroa, Dom Rodrigo Dias de Figueiredo, e apaixonada por Kipumbulu até morrer.

Além das águas de cor apresenta um narrador em primeira pessoa que não é nomeado, o que só amplia o interesse por sua figura. A não nomeação visaria efeito desumanizador? Seria ele incapaz de se interessar por algo que não fosse a riqueza material? Aos poucos, o texto vai semeando estas e outras dúvidas na mente do leitor, como a que sugere ser Leo membro longínquo da família de Clara de Mendonça Estival e o narrador descendente de Kipumbulu... Nessa linha, o texto descarta o discurso pedagógico e deixa de lado os ímpetos panfletários que sempre rondam o passado escravagista e a resistência negra ao regime. Não há espaço para discussões étnicas e éticas, embora estas estejam demarcadas na ante cena do texto. Os interesses revelados são outros, vazios e sem qualquer propósito para além da ambição pessoal. O heroísmo da luta histórica de todo um povo cede lugar ao salve-se quem puder amazônico e ao posterior desfrute da conquista.

O protagonista engendrado por Lawa segue a lógica de Maquiavel, pela qual “os fins justificam os meios”: faz conchavos, engana os companheiros e deixa atrás de si um rastro de destruição e morte. Ao final, escreve ao amigo Léo para revelar o “anseio” por uma causa:

[...] ultimamente, caro Leo, o que mais me vem atormentando é como gastar sua parte. Olho à volta, não tenho visto nenhuma batalha à altura de minhas forças. Noites atrás veio-me à memória aquela história de Kipumbulu, lembra-se? O construtor de Igrejas do Rosário.

[...] talvez algo parecido... uma causa [...]

[...] sinto falta de uma estratégia que resgate, na modernidade, as lutas quilombolas dos séculos anteriores [...]

[...] que igrejas existiriam para concluir, que novas guerrilhas a fazer? E tu, por onde andas? Abandonaste-me no limiar da luta? [...] (LAWA, 2014, p. 214).

O trecho acima figura como pós-escrito à cena em que as arcas enterradas por Kipumbulu são finalmente resgatadas por seu descendente. Deste modo, Além das águas de cor se encerra indagando à memória – e à consciência – do leitor sobre o destino das demandas históricas do povo negro no Brasil. Ao opor o ímpeto libertário e coletivista de outrora à busca desenfreada em concretizar apenas ambições pessoais, o livro de Lawa nos faz pensar sem abrir mão de tudo o que compõe um bom romance.

Referência

LAWA, L.C. Além das águas de Cor. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2014.

* Glauciane Santos é graduada em Letras pela UFMG.

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