BONECAS DE PANO

Aidil Araújo Lima

 

Dandara, menina negra de sorriso aberto, espanta a tristeza por onde passa. Antes das dores do parto, sua mãe sonhou com uma mulher valente, de vestido vermelho, esposa de Zumbi dos Palmares. Deu o nome a filha. Dandara saltitava pelo caminho, pensando ser borboleta. Pés ingênuos descalços pulam as pedras do cansaço da mãe, distraídas dos vazios da miséria, vivia num faz de conta, inventava comida, castelos e princesas que via nos livros que ganhava das pessoas de boa feição. Cedo, a mãe desce da cama, cambaleando a existência, esfrega as vistas para acordar a fadiga relutante. Labuta dia a dia sem esmorecer o desejo, ver a filha formada. Cheia de conhecimento. Mudar a sina da família de dedos borrados na tinta. Glória assombra o pensamento e, através da selva, vê uma porta que se abre. O coração se descompassa, descobre um caminho quase invisível. Corre o olhar até a filha; vê seus cabelos crespos tão gentis, borboletas de cores desiguais passeiam ao lado. – Como são lindos... Deita as roupas sujas na pedra. Pega uma a uma para ensaboar. Às vezes, o vento soprava estranho, pensava naqueles de antes, na vó, na mãe, lavadeiras, será possível ter direito a mudança... Uma esperança voa em sua direção, ela canta, enquanto pendura roupas de linho branco no arame farpado. O sol seca a água que desce das roupas, enxugando as lágrimas que cai do rosto. Glória enxerga com mais clareza, enfia linha na agulha, costurando bonecas de pano negras, cabelos crespos. Dandara se encanta pelas bonecas, brincando com seus cabelos espiralados, enrosca os dedos miúdos nos fios de sua cabeça, sente a parecença e ri. Pendura-as no arame farpado só para vê-las rindo com o vento embalando seus corpos. Ao por do sol, voltam para a casa simples, um espaço onde tudo cabia, até a alegria de sua menina. Dois colchões sobre caixotes de madeira, um fogão, uma mesa e, duas cadeiras. O vento trazia para a menina livros e revistas de moda, eram tantas, que ela virou estilista. Tinha tanta intimidade com os tecidos que ganhou fama e dinheiro. Mesmo crescida em idade, casa com conforto, comida na mesa todo dia, ainda assim pegava a boneca de menina e ia para fonte. O vento lhe soprava ideias que ia colocando no papel. Comprou tecidos na África, a mãe quieta, a acompanha nas viagens pelo mundo da moda. Modelos de todas as raças desfilam suas criações de cor vibrante, com muito vermelho. Só uma exigência, cabelos crespos são bonitos demais para serem alisados.

(In: Mulheres sagradas, p. 52-53)

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