Literatura negra e literatura marginal/periférica:
muito mais que uma questão de conceitos

 

Rafaela Pereira*

O que é literatura? Responder a essa pergunta tem se tornado uma tarefa complexa, devido às particularidades envolvidas. Publicado em 2013, A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2000), de Mário Augusto Medeiros da Silva, apresenta uma pesquisa categórica mostrando como se dá o surgimento de variantes literárias no Brasil no século XX: negra, periférica, marginal. Afinal, o que distinguiria cada uma delas? Teriam aspectos tão distintos ou partiram de algo comum? Será realmente necessário falar em literatura negra? E o que especifica (ou classifica) a literatura marginal e a periférica? Questionamentos semelhantes são encontrados neste trabalho que investiga um percurso histórico e literário da década de 60 até o final o ano 2000. Vários questionamentos são feitos, principalmente no que diz respeito à forma como os autores apareceram, à temática que adotaram, à representação do negro nestes escritos, agora também como protagonista e, é claro, como se deram essas produções.

Dividido em dez capítulos, A descoberta do insólito, reflete inicialmente sobre a relação da literatura negra com os resquícios da escravidão no Brasil; os ideais, os encontros de escritores, o ativismo, até chegar à literatura marginal/periférica. A segunda parte aborda várias perspectivas sociológicas para explicar de que forma ocorreu o processo de surgimento destas literaturas, dentro de um contexto político e social; e a terceira e última parte foca nos autores e nas ideias envolvidas na elaboração de seus escritos.

Sobre a literatura negra, o primeiro ponto a ser notado é a “análise histórica da literatura negra brasileira”. Segundo o autor, ela foi primeiramente abordada por autores que não pertenciam necessariamente à crítica literária, mas à área das ciências sociais e à história (p.35). No que diz respeito à relação da literatura com a escravidão, o pesquisador afirma:

Destarte, a história literária do negro no Brasil está associada intimamente à formação social que o trouxe a este país: a escravidão. Contudo, como ressaltam alguns autores, nos primeiros momentos da história literária brasileira, o menos importante enquanto tema do negro é o sujeito social escravo. (SILVA, p.36)

Podemos então pensar na forma mais comum em que o negro aparece na literatura: como escravo, na condição de subalterno, estereotipado de forma pejorativa e caricata, principalmente nos romances urbanos. No teatro, a presença do negro também não tinha destaque, não lhe cabendo nenhum papel de relevância. Ainda nos dias atuais não é difícil encontrarmos situações desse tipo. Tanto na televisão quanto no teatro a presença do negro é muito controversa, sendo objeto de muitos debates a partir de um olhar atento sobre sua aparição na mídia.

Em relação à literatura marginal/periférica, Silva apresenta a forma como esta literatura é produzida nas bordas da produção canônica, tanto geográfica quanto socialmente; o lugar onde estão pessoas que agora querem escrever suas vivências, falar de suas experiências, e de uma realidade crua que é seu lugar de enunciação. Sobre a marginalidade, o autor faz a seguinte observação:

A assunção da ideia de marginalidade não implica algo essencialmente bom ou ruim. Infelizmente, no caso brasileiro, a marginalidade literária está condicionada, em grande parte, à precariedade, ao desinteresse ou ao amadorismo do próprio sistema literário maior, refém de um mercado enxuto, de editores pouco percucientes; e de condições sociais para a leitura inóspitas (vide a escolarização pública e privada médias, primária, secundária ou superior). Sem tratar das relações sociais desiguais e racializadas, articuladas com a literatura. (SILVA, p. 164)

Observa-se então que este tipo de literatura é visto como algo inferior e, se estudado, é com muita desconfiança. Obviamente, tudo isto está relacionado com uma tradição literária, que passa a ser questionada e que tem muitos de seus padrões tomados agora em outra perspectiva. Aqui o negro nem sempre aparece como elemento secundário, assumindo muitas vezes o papel de protagonista. O social passa a fazer parte da constituição desta literatura de forma contundente e provocadora. Mário Augusto aborda ainda a problemática envolvendo as publicações, pois muitas histórias escritas por negros, narradas por negros ou que o negro seja o personagem principal ainda são desconhecidas pelo público. Tal questionamento se volta para o mercado editorial, não sendo difícil perceber as razões pelas quais muitos desses escritos são descartados, sendo possível pensar em tentativas de silenciamento desses escritores.

O livro enfatiza o estudo da série Cadernos Negros, que surgiu em 1978, com uma reunião de poemas de vários autores. E ressalta que eles “se inserem marginalmente no sistema literário, com uma proposta estética particular”. Porém o autor assinala que nem todos concordavam em fazer do texto apenas veículo da militância, o que os leva a se questionarem sobre o tema, o público alvo e o motivo pelo qual estão escrevendo.

O recorte temporal da pesquisa abrange o período de 1960-2000, tomando como ponto de partida a escrita de Carolina Maria de Jesus, com Quarto de despejo (1960) e Casa de alvenaria (1961), relatos do cotidiano das favelas, que foram silenciados por razões que começam a ser questionadas na atualidade. E chega ao final do século XX com a estreia de Paulo Lins, autor nascido e criado na favela, que se projetou com o romance Cidade de Deus (1997), sucesso de público no Brasil e no exterior. Mário Augusto indaga sobre uma possível recorrência de aspectos que consagraram ambos, por exemplo, a forma como foram tratados pelo sistema literário, a recepção do público e em quê tudo isso resultou, mesmo estando em épocas diferentes.

Ainda sobre literatura negra, a autor destaca sua relação com a história das entidades negras no Brasil – como a Associação Cultural do Negro, a Frente Negra Brasileira, a Legião Negra –, a imprensa e os movimentos negros. Aborda também a atuação dos grupos de escritores, como o Quilombhoje e Negrícia e como se desenvolveram as articulações desses grupos no que se refere à produção literária. Estuda ainda a elaboração das primeiras coletâneas de autores afro-brasileiros, tais como Ebulição da escrivatura: treze poetas impossíveis, em quem surgem nomes como Éle Semog e Salgado Maranhão, e Axé: Antologia contemporânea da poesia negra brasileira, organizada por Paulo Colina.

Em relação à contemporaneidade, o pesquisador destaca Ferréz, autor de Capão pecado (2000), para refletir sobre o conceito de literatura marginal ou periférica, conceito ainda em mdebate, já que nele estão envolvidos aspectos sociológicos, políticos e literários, assim como na literatura negra. Segundo Mário Augusto, o autor paulista se empenha em recriar um movimento estético e político com o objetivo de abordar a condição do negro no Brasil.

De forma geral, podemos dizer que A descoberta do insólito nos faz refletir sobre até que ponto se pode dizer que a literatura negra está distante da literatura marginal/periférica e até que ponto elas convergem, ou seriam manifestações distintas de um mesmo fenômeno. Além de abordar aspectos comuns ao surgimento de ambas, reflete também sobre a relação entre as Ciências Sociais e o ativismo político entre os escritores negros, destacando a tensa relação deles com a crítica literária.

Neste embate percebemos o quanto é delimitado e, ao mesmo tempo, amplo o universo que engloba tais manifestações literárias. Não é somente uma questão de escrita, os aspectos sociológicos ilustram bem o quanto este território está repleto de complexidades, onde são consideradas as questões da desigualdade, do conceito de marginal, da forma como estes sujeitos atuam em territórios muitas vezes hostis e controversos, palco da afirmação identitária destes sujeitos, personagens de um universo pleno de paradoxos.

Referência

SILVA, Mário Augusto Medeiros da. A descoberta do insólito: literatura negra e periférica no Brasil (1960-2000). 1.ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013

* Rafaela Pereira cursa graduação em Letras na UFMG.

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