A herança afro-brasileira em suas vozes: dos longes
da senzala à fala e ato de agora
The Afro-Brazilian heritage in its voices: from the distant
slave-quarters to the speech and act of today
Heloisa Toller Gomes
Em memória do grande sociólogo e pensador do Brasil, Clóvis Moura
Resumo
Este trabalho realça o veio sociocultural afro-brasileiro a partir da leitura de três poemas do século XX que imprimem a força da presença negra no país, do passado escravista aos dias de hoje. Os poemas em pauta são “Vozes mulheres”, de Conceição Evaristo, “Sou negro”, de Solano Trindade e “Infância” de Carlos Drummond de Andrade – os dois primeiros pertencentes ao cânone afro-brasileiro, o terceiro, da série literária consagrada. O eixo a ligar os referidos textos é a questão da família: filiação e ancestralidade, maternidade e paternidade. Através de seus respectivos recursos discursivos, os poemas estabelecem loci de enunciação em que alguma determinada (e representativa) família ocupa um lugar, ou não-lugar, no quadro social. Na tessitura poética, isto se realiza pela elaboração de um certo presente, sempre com a necessária referência a um passado implacável. Como fundamentação teórica, considera-se aqui o papel de uma nova hermenêutica já apontada por Michel Foucault, assim como recentes possibilidades interpretativas a partir da crítica pós-colonial brasileira e internacional (Stuart Hall, Silviano Santiago, Néstor García Canclini).
Abstract
This paper looks at the Afro-Brazilian social and cultural heritage, through the reading of three 20th century poems which emphasize the strength of the Black presence in Brazil, from the slave past to the present. The poems are Conceição Evaristo`s “Vozes mulheres” (Women voices), Solano Trindade`s “Sou negro” (I am Black) and Carlos Drummond de Andrade`s “Infância” (Infancy) – the first two from the Afro-Brazilian canon, the third belonging to the established literary canon. The issue of the family – filiation and ancestry, motherhood and paternity – connects the poems. In their respective discursive resourses, they establish loci of enunciation in which a certain representative family occupies a place, or “non-place”, in the social scene. In the poetic texture, this concerns the re-elaboration of the present, always with the necessary reference to an implacable past. As theoretical support, the role of a new hermeneutics (already pointed out by Michel Foucault) is considered, as well as recent interpretative possibilities offered by postcolonial criticism – Brazilian and international (Stuart Hall, Silviano Santiago, Néstor García Canclini).
As novas distribuições e atribuições dos saberes e os deslocamentos das identidades de classe, gênero, sexualidade, etnia e nacionalidade têm suscitado o crescente interesse acadêmico em questões de identidade cultural, gerando debates que atravessam a teoria social e os estudos literários desde a segunda década do século XX. Acelerou-se o colapso da noção iluminista e romântica do “eu unificado”, da pessoa humana como indivíduo centrado, dotado coerentemente de razão e emoção, consciência e capacidade de ação. As polêmicas daí resultantes representaram (ou mesmo resultaram de) um processo de abertura para uma nova hermenêutica, lembra Michel Foucault, detonado ainda no século XIX, na esteira do pensamento iconoclasta de Nietzsche, Marx e Freud – para Foucault , os responsáveis por irreversíveis rupturas e por “três grandes feridas narcisistas na cultura ocidental”: aliás, ele apropria a expressão de Freud, tendo este se referido a Copérnico, a Darwin e a ele próprio (Foucault, 1975/1987). A perda de um “sentido de si estável”, acentua Stuart Hall, acionou a erosão dos quadros de referências norteadores do processo civilizatório, dos até então sólidos valores que forneciam localizações filosóficas, morais, espirituais aos indivíduos enquanto seres sociais:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. (Hall, 1992/ 1997, p.12)
A passagem do conceito de identidade iluminista para o conceito sociológico - e, depois, para as noções de sujeito “pós-moderno” (segundo muitos críticos, dentre os quais o próprio Hall) ou “pós-colonial” (segundo Homi Bhabha) ou “híbrido” (conforme descreve Néstor García Canclini, em Culturas híbridas) – em outras palavras, a atual descentralização do conceito de sujeito e, consequentemente, de subjetividade, é tão perturbador quanto fecundo, do ponto de vista interpretativo.
Na verdade, rompendo-se o cerco eurocêntrico, a identidade torna-se “uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.” Instituem-se, assim, políticas culturais de diferença, não mais necessariamente modeladas e adequadas aos modelos europeus consagrados, carregando “os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas.” (Hall, 1997, p.96)
No Brasil, nas Américas mestiças, toda essa mudança de paradigma nos leva inevitável e indiscutivelmente de volta à África e a suas diásporas. Conforme lembra Alberto da Costa e Silva, atestando a nossa formação multifacetada,
... é difícil também encontrar um brasileiro negro que não tenha sangue branco, é muito difícil. De forma que nós estamos, irremediavelmente, condenados a misturar a África com as Américas e com a Europa. (2010, p.72)
Setores progressistas da intelectualidade têm buscado novas abordagens capazes de melhor dar conta desta imensa diversidade, na produção cultural do presente e do passado. Nas alas mais dinâmicas da academia, prevalece hoje a ideia de que a herança ocidental necessita ser revista, reelaborada, reescrita: em suma, descentralizada.
A Crítica Pós-Colonial, na releitura da produção cultural ideologicamente comprometida com o aparato colonial europeu e na simultânea investigação de discursos que expressam projetos de resistência do colonizado, em estratégias de revide na luta pela autonomia, tem contribuído expressivamente neste sentido. A interrogação textual desmistificadora gera formas alternativas de racionalidade que problematizam e desarticulam noções culturais estratificadas, na configuração de novos recortes interpretativos.
Assim, um pensar renovado sobre questões sociais, contemporâneo de dramáticos acontecimentos históricos, acarretou a irrupção de visões mais abrangentes sobre a marca sociocultural de extratos populacionais antes desqualificados pela sociedade abrangente – no Brasil, e nas Américas em geral, basicamente os negros, os indígenas e seus descendentes mestiços. Abriram-se, embora ainda insuficientemente, espaços e canais de comunicação, tendo a noção de alteridade adquirido outros contornos, em inéditas percepções e possibilidades de agenciamento e expressão. Os excluídos, afinal, começaram a ser ouvidos e a falar mais abertamente de si e do mundo, recusando-se a ser apenas falados por outros. Estes reivindicam hoje o seu lugar de direito, não como objetos de estudo, mas fundamentalmente, através do devido reconhecimento sociocultural como sujeitos e autores de um discurso próprio.
Chama-se de selvagem aquilo que não se conhece, provocou a ironia fina de Montaigne já no século XVI, reconhecendo a relatividade dos juízos humanos (Montaigne, 1588/1965, p.303). Mesmo em distantes tempos passados houve quem tocasse na ferida, então raramente exposta ou mesmo conscientizada, do etnocentrismo europeu reinante. Remando contra a maré hegemônica, de forma análoga também assim procederam, já na literatura ocidental anterior ao século XX, Cervantes, Voltaire, Rousseau, Jonathan Swift, Manuel Bocage, Mark Twain, Machado de Assis, entre tantos outros escritores e artistas, muitos deles herdeiros da rica tradição parodística que remonta a Aristófanes, advindos de diversos cantos da Europa e do mundo.
Em tempos ainda escravistas, no Brasil, as obras dos autores negros Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis são exemplos de criação literária do passado cuja produção se encontra hoje crescentemente valorizada. Com esses casos esparsos, reitero aqui a importância da releitura renovada do passado em sua expressão discursiva e seus silêncios, valores e interditos, no indispensável cruzamento de vozes idas e vividas com as que hoje soam – com as inevitáveis tensões que permeiam a todas – para melhor compreensão da(s) sociedade(s) que habitamos, e que nos habitam.
Este trabalho realça o veio sociocultural afro-brasileiro, longamente silenciado e impedido de se manifestar a não ser em discursos alternativos ou clandestinos. Não se trata, aqui, de questões de “influência da cultura negra”, mas da marca negra, indelével, na formação populacional brasileira e na fermentação de nossa expressão cultural.
Autores e autoras afrodescendentes mostraram sempre uma lúcida noção da discriminação sofrida. Luiz Gama disse exercer a sua arte nas “abas do Parnaso” (1861/1974); Cruz e Sousa, em pungente poema e prosa, falou da solidão vivida por ele, o poeta negro, em Emparedado (1898/1995). Mais de cem anos depois, a escritora moradora da favela paulista do Canindé e catadora de papel, Carolina Maria de Jesus, atestava em Quarto de despejo (1960), a perseverança dos mecanismos de exclusão:
Eu já estou tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que há dentro. (...) Ontem eu li aquela fábula da rã e a vaca. Tenho a impressão que sou rã. Queria crescer até ficar do tamanho da vaca.1
No Brasil, como em todo o continente americano, a experiência do colonialismo, o escravismo e suas sequelas foram responsáveis por um conhecimento viciado e deficiente da herança negra que, acoplada a outras forças socioculturais e sempre no dinamismo das trocas, configurou o passado e atua no presente. O legado afrodescendente construiu a sua positividade à revelia do saber-poder hegemônico, a partir da experiência estilhaçada da diáspora e do trauma da escravidão.
Para todas as camadas e origens populacionais, a valorização desta marca, deste legado, constitui parte fundamental do (re)conhecimento de nossa identidade pessoal e nacional enquanto indivíduos, enquanto povo. O empobrecimento cultural empobrece a nós todos – sem distinção de gênero, classe, etnia. “A raça negra nos deu um povo”, foram as inesquecíveis palavras de Joaquim Nabuco em O Abolicionismo (1882/1977).
Pretendo, no que se segue, verificar como o calar imposto logrou ser gradualmente rompido, exorcizando-se um silêncio forçado e doentio, gerador de “fantasmas inquietos” como aquele de que falou Freud. Seguindo o fio dessa intricada trama de exclusão e, conversamente, da busca de cidadania tecida ao longo dos séculos, empreendo a análise de três poemas brasileiros – dois deles do cânone afrodescendente, um deles pertencente à série literária consagrada, a saber: Vozes mulheres, de Conceição Evaristo (nascida em 1946); Infância, de Carlos Drummond de Andrade (1902-87); e Sou negro, de Solano Trindade (1908-74).2
Os três poemas são aqui vistos como o microcosmo de um arquivo discursivo (como um grupo discursivo), segundo a formulação de “arquivo” Michel Foucault, especialmente em A Arqueologia do saber.3
Esses poemas do século XX entrelaçam tradições díspares, favorecendo a desconstrução de hierarquias culturais. A leitura intertextual auxilia a desvendar a intricada trama de exclusão/inclusão e, conversamente, a busca de cidadania tecida ao longo dos séculos. Os poemas recriam, lançando mão de seus recursos próprios, o que foi e tem sido a trajetória do negro no Brasil – com Trindade e Evaristo, do ponto de vista pessoal e coletivo da comunidade negra; com Drummond, na rememoração de cunho autobiográfico de sua vida de menino, no universo aparentemente plácido da família patriarcal.
Os poemas
Vozes mulheres recolhe e reconstitui as experiências de sucessivas gerações, sempre seguindo a linha matrilinear. O eu-poético ali se apresenta como uma daquelas “vozes mulheres” que soam e ecoam – do navio negreiro aos labirintos das favelas urbanas, dos “versos perplexos/ com rimas de sangue e fome” às ressonâncias projetadas para o amanhã, na voz libertária da filha. Os acontecimentos são re-escritos pela perspectiva dos/das que configuram a parte negligenciada da história oficial, mas que afirmam a própria positividade na “fala e ato de agora”, diz o poema, e no exercício de um provocador contradiscurso.
Essas vozes murmuradas transmitem uma vasta memória de resistência que abarca todo um cabedal de ensinamentos e estratégias de sobrevivência. Vínculos cheios de significação reivindicam, no poema, o tempo negado. Os subterrâneos da história ocultam aquilo que o poema retoma e recupera: as narrativas das mulheres negras em suas revoluções minuciosas, invisíveis, persistentes.
Vozes aparentemente submissas tramam o tecido discursivo de uma genealogia feminina, investida na figura da mãe. Com sua ênfase na figura materna, como aqui sucede, a escrita de mulheres negras evoca na família uma das unidades básicas de proteção contra pressões tentando silenciar, desestabilizar e desagregar os seus laços. As figuras de maternidade não se limitam à matriz biológica, desempenhando uma função social – que pode ser transmitida de mãe a filha, de irmã a irmã, de avó a neta, no espectro infinito dos cuidados recíprocos. A família é um motivo recorrente a expressar vivências compartilhadas, apontando para sentidos de identidade e perpetuação.4
É uma poesia que constantemente inscreve e preserva, através da escrita, componentes da oralidade fundadora. É o caso do presente poema, uma das muitas jóias na produção literária de Conceição Evaristo. “Vozes mulheres” ressalta o falar que redime, e as mulheres que o poema invoca rejeitam o silenciamento secularmente imposto.
Já o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade, percorre um caminho diverso e mais oblíquo, ao também estabelecer a força do legado afro-brasileiro – ainda e sempre pela marca da mulher negra. Estamos, agora, no mundo da família patriarcal, que o eu-poético assume como seu. Na evocação de tempos distantes, o poema de Drummond pinta, com delicadeza de textura impressionista, o conjunto do quadro familiar:
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada, cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
“Infância” situa o leitor no espaço plácido de uma cena rural brasileira e na momentânea quietude em que uma criança dorme:
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu ... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... Que fundo!
O narrador, “menino antigo”, prenuncia a sua vocação e desdobra desde então as velas do imaginário literário:
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.
O discurso poético, ao final, retorna ao pai e faz nova alusão à ficção de Daniel Defoe – desta vez diretamente ao personagem-título, efetuando, em relação a este, a valorização autobiográfica do “menino entre mangueiras”:
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Muito se pode dizer sobre as configurações sociofamiliares em um poema como “Infância”, tão denso quanto aparentemente singelo em sua execução. Por exemplo, sobre aquele pai distante e (oni)potente aos olhos do menino, campeando “no mato sem fim da fazenda”; sobre aquela mãe que “ficava sentada cosendo” (aliás, o único verso integralmente repetido no texto), a suspirar “fundo” enquanto velava o sono do filho pequeno; também sobre a inversão das hierarquias vigentes, na tocante homenagem à “história” do menino brasileiro, interiorano, “entre mangueiras”, face ao poderoso eurocentrismo cultural.5
Aqui nos interessa, sobretudo, destacar uma claridade ofuscante no interior do poema: o “meio-dia branco de luz” que incorpora à cena uma voz sem corpo, sem posição familiar nomeada, tão somente aliada a um sexo e cor, que “chamava para o café”. Leiamos o texto:
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
A luminosidade difusa da infância longínqua cede lugar ao jogo definido de tons contrastantes em que se compraz o discurso poético: meio-dia branco, café preto, preta velha. Quase-silêncio dos demais personagens, em oposição à voz nutriente que chama para a refeição brasileira por excelência, o café.
A “preta velha” traz consigo a senzala e seus “longes”, que o poema atualiza. Foi lá que se deu a aprendizagem do ninar, diz a voz narrativa, revivendo aquilo que ela, a mulher negra, “nunca esqueceu” e que o poema reclama, no chamado da emblemática figura feminina.
Retomamos aqui o motivo da mãe, que nada tem dos estereótipos de “mãe preta”. No poema, por detrás da serena esfera da família, a personagem negra remete ao trabalho escravo e suas sequelas. Trata-se de uma voz moldada (e que molda, continuadamente, o seu entorno) na senzala, em contraste à vida assentada, monótona, da mulher patriarcal. O poema instaura o trabalho material e maternal da mulher negra naquele círculo familiar que tanto a inclui quanto exclui, num perto-longe característico de todo o poema e da própria cultura herdada da sociedade escravista.
O gosto do café, em “Infância”, se liga à dimensão econômica dos cafezais e, metonimicamente, a toda a civilização monocultora escravista. A poesia de Drummond segue, nisto, um paradigma de leitura crítico-poética da história nacional de que também se serviu o modernismo de Oswald de Andrade, notadamente em Poemas da colonização.6
O terceiro poema aqui abordado, “Sou negro”, de Solano Trindade, também levanta a questão do trabalho escravo, desta vez através da dupla linhagem (masculina e feminina) remontando à ancestralidade africana, ao “sol da África”:
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro maracatu.
O último verso citado acima confere ao poema um notável diferencial. Ao acentuar o agenciamento da criatividade negra (“fundaram o primeiro maracatu”) o poema interliga determinada e emblemática família à instauração, entre nós, da cultura afro-brasileira – até recentes anos mal conhecida ou ignorada como tal pela sociedade abrangente.7 Em reconhecimento a essa cultura, o poema evoca o maracatu e repercute com forte dimensão sonora, ressoando “tambores/ atabaques, gonguês e agogôs” em orquestração já não mais africana, porém afro-brasileira – o poema abre-se para “o samba/ o batuque/ o bamboleio” na dança, na sensualidade livre do corpo.
Como “Vozes mulheres”, o texto trabalha o motivo da família negra e remete à ancestralidade africana através das gerações. No poema de Trindade a rebeldia é mais direta, o ânimo menos introspectivo, a ação mais aguerrida – porém, similarmente, os dois poemas mantêm a linguagem coloquial e “a oralidade enquanto suporte de expressão” (Patrocínio, 2013, p.15):
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Em sua reescrita da história do Brasil, “Sou negro” rejeita explicitamente um dos estereótipos mais conhecidos – a saber, o da paternidade na submissão – sempre por meio de figuras ancestrais familiares:
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou a faca
Escreveu não leu
O pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
O território deixa, assim, de ser a nação branca, europeizada, para transmutar-se poeticamente “nas terras de Zumbi”. Africaniza-se a herança, desconstroem-se os mitos de fundação que instituem e reforçam a matriz europeia desacreditando as demais.
Sugiro, na leitura aqui encetada, que a presença negra através da temática familiar é o eixo em torno do qual se dá o funcionamento dos três poemas, em sua apreensão do social. Trata-se de uma presença fundadora, nunca enquanto “mito”, porém enquanto realidade populacional e cultural na civilização brasileira. Como os poemas mostram e, segundo espero, a análise textual ajude a desvelar, tal presença mostra-se profícua e plural na fabricação poética, assim como na crítica cultural e literária, e não menos na necessária reformulação e releitura da história do Brasil. O passado distante desponta, não como traço morto, mas como memória viva, indicador do presente e de um futuro a construir no conhecimento. “Se eu faço isto” diz Foucault referindo-se a sua “arqueologia”, “é com o objetivo de saber o que somos hoje” (apud Revel, 2008, p.14).
“Sou Negro” acentua a problemática da identidade sobre outras camadas de significação. Como em “Vozes mulheres”, a realização escrita se dá a partir da tensão com os textos da oralidade, a “grande dominante cultural africana”, no dizer de Laura Cavalcante Padilha (1995, p.10). Em “Infância”, a problemática do tempo-espaço, abordada através do privilégio de um instante familiar tão simples quanto revelador, abarca e abraça contrastes socioculturais e de classe.
Os três poemas – assim como outros, que eles evocam e trazem à baila – compõem partes autônomas, porém complementares, de um mosaico expressivo de cultura, povoamento, população e trabalho. Em sua execução, na representação de gentes e cenários, na reflexão que induzem sobre a formação brasileira, sobre as dores de nossa história e também sobre as suas realizações, eles desdobram parte de um belo tecido discursivo em seus fios, nós, tramas – sempre no jogo de calar e falar, de sombra e luz, de silêncios tensos e sons exuberantes que a teia poética explora e exibe.
Nenhum desses poemas chega a alguma conclusão – nem tampouco esta sua análise. No tratamento da coisa cultural, almeja-se buscar primordialmente, segundo penso, algo que aponte para a curiosidade de buscar mais, e sempre mais, rentáveis caminhos.
Notas
Referências
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* Heloisa Toller Gomes é Mestre e Doutora em Letras pela PUC Rio, Professora da UERJ e Pesquisadora-Associada do PACC-UFRJ. Autora, entre outros de O negro e o romantismo brasileiro (1988); As Marcas da Escravidão: o negro e o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos (2009); e coorganizadora de Crítica pós-colonial: panorama de leituras contemporâneas (2. ed., 2019).
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