ANIMA TEM UM SONHO

 

A felicidade de Anima durou pouco. Lutou muito para adentrar aquele espaço: mulher negra, de nome forte, nome de rainha africana, nascida na favela, pensou: "Agora consegui chegar aonde meu povo merece estar". Doce ilusão de Anima. Como ser feliz na casa-grande?

Foi só uma ilusão momentânea, daquelas de contos de fadas. Anima viu a sinhazinha dos tempos modernos vestida de mucama, falando como mucama... ao menos tentava. Tinha o discurso bem afiado a favor da liberdade de todos os negros, todos aqueles que tentavam "ser escravos de dentro". "Não existe mais casa-grande", pensou! "Estou louca! Não existe mais sinhá nem sinhô!". Mas acordou e tropeçou bem dentro da casa-grande dos tempos modernos: a universidade pública. Acordou bem no meio dos truques da sinhá. A sinhá que ora se travestia de amiga, ora chicoteava, dizia que estava ensinando as regras da casa-grande dos tempos modernos, entendem?

Ela percebeu, da pior forma que uma mulher negra pode compreender, que depois de mais de trezentos anos de escravidão no Brasil, e com cento e trinta anos de abolição da escravatura, vivemos o resquicio da escravidão. Anima não entendia a submissão de todos, pois os grilhões não deveriam mais existir, mas infelizmente ainda existiam.

Foi uma tentativa de adentrar a casa-grande, que outrora nunca fora ocupada por nós, reles negros recém-alforriados que, assim como Anima, enfrentamos as regras postas na mesa. Infelizmente, não bastavam somente as regras visíveis, havia as subjetivas, as invisíveis. Anima pensava: "Somos livres!". Mas como recém-alforriados somente há cento e trinta anos dos quinhentos de existência, o desmando está longe de acabar, para tristeza de Anima e de muitos que ousam lutar contra esses grilhões impostos pelos senhores e senhoras dos tempos modernos.

A universidade pública atual é um dos locais de poder da elite branca, local de formação de pensadores, filósofos, doutores, pessoas que irão, de certa forma, influenciar a sociedade, e é bem nesse lugar que, passados cento e trinta anos de abolição, estava Anima, filha de uma doméstica, e que foi gerada embaixo de uma marquise, e que ao nascer voltou para esta marquise com sua mãe. Quase morreu, porém, ela era mais uma negra que furou o bloqueio e quebrou o sistema, onde muitos jovens negros não ultrapassam o antigo segundo grau, hoje ensino médio. Quando Anima passou na seleção para o curso de doutorado, com nível 7 da Capes, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, ela comentou com seus amigos e familiares: "A filha da Dona Ivone será Doutora!" (ela sempre teve esse hábito de falar de si na terceira pessoa, hábito este da academia). E seguindo a analogia vivenciada por Anima, a universidade é o local que ela intitula "A Casa-Grande dos Tempos Modernos", pois é onde se concentram os brancos que acreditam ser detentores e sabedores de tudo, e que ali estão em uma missão de apoiar o negro, escrever para o negro e sobre o negro, porém, essa missão acaba quando o negro quer construir sua própria narrativa, de algo que custou aos seus antepassados mais de três séculos de servidão e subalternidade. Dessa forma, Anima não quis aceitar a migalha jogada ao chão da casa-grande pela sua tutora, orientadora, e essa insubmissão lhe custou caro. Custou-lhe tomar uma atitude drástica: dar um basta em todo o processo de racismo vivido por ela em um ano e meio. Foi expurgado em um e-mail que dizia exatamente o que a sinhá queria ouvir para soltar o chicote.

Certa vez a sinhá ficou arrasada quando, em uma rede social, disseram: "Essa branca racista sobrevive, pois tem muitos de nós dando ração para ela". Naquele momento, Anima compadeceu da sua dor, mas agora ela entende o alerta que a comunidade negra gritava em alto e bom som. O "branco" pode e deve estar na luta antirracista, ele não pode e não deve querer dizer que vive ou entende a comunidade negra melhor que o negro. Eis aí o cerne da questão em muitas histórias de racismo vivenciadas nesses espaços de poder.

Anima largou o curso e cedeu àquilo que subjetivamente foi orquestrado pela sinhá, e como Anima tinha uma filha para criar, preferiu recuar e seguir depois, até porque a ancestralidade já se encarregara da morte da sinhá em vida; uma mulher doente pelas maldades e atrocidades que comete, com um histórico de abusos e maus-tratos dentro da casa-grande universitária. Anima gritou: Não, sinhá! Esse preço não pago! Meus antepassados já pagaram duramente por minha liberdade. Se o lugar é seu e não meu, eu lhe entrego de volta! Toma.... pega... é seu! Divida com quem comunga seus mandos e desmandos, com medo e pavor do seu chicote. Divida com quem ainda há de dar chicotadas nos seus iguais para não perder a chance de estar neste lugar, réplica fiel da casa-grande dos tempos coloniais.

Anima finalmente conseguiu comprar sua alforria, e como a casa-grande é de tempos modernos, ela a comprou por e-mail. Sim, entregou a alforria via e-mail. Num silêncio ensurdecedor, via internet, que foi a maneira que Anima arrumou para deixar de ser açoitada e voltar para o quilombo para, junto com seus irmãos de luta, ser cuidada e fortalecida para retornar a esse espaço de poder em outro momento e, com certeza mais fortalecida e com outro olhar sobre as sinhás e os senhores.

E com a determinação de não permitir mais nenhuma chicotada, recebeu o comunicado da sinhá sobre seu desligamento também por e-mail. Seguiu triste, mas curando as feridas e se fortalecendo entre os seus, pois Anima tem um sonho, assim como Luther King. Um dia a filha da Dona Ivone realizará esse sonho, pois todos os negros dos tempos da colônia estavam por sua própria conta, assim como Anima nos tempos modernos, sendo que ela também estava no quilombo, onde tem muitos por sua própria conta, ficando mais fácil curar as feridas, se levantar e lutar contra qualquer sinhazinha doente da atualidade.

Anima poderia ter comprado uma briga por direitos com a sinhá, e ter levado chicotadas por mais dois anos e meio, concluindo sua jornada na casa-grande, saindo com seu canudo nas mãos, apesar de totalmente doente, assim como vivem a sinhá e seus seguidores fiéis, aqueles de dentro. Anima preferiu sair na contramão, como os negros que formaram o quilombo. Recuou para se aquilombar e pegar um canudo que fizesse jus e sentido à história e à memória de seus antepassados e ancestrais. Eles lutaram, morreram e resistiram para que ela não desse nenhum passo atrás... Nenhum! Anima tinha um sonho e continuará tendo.

Anima crê na justiça de Xangô, pois esse não falha. Pode-se aguardar! Não foi a primeira a retirar o chicote da mão dela; foi, talvez, a primeira a entregar, sem gritar, aquilo que, para ela, era a forma que, ainda que por baixo dos panos, encontrou para assumir sua branquitude arraigada nesta vida e em qualquer outra.

O grito de Anima ecoou na casa-grande dos tempos modernos. Ela não se permitiu continuar sendo chicoteada pela sinhá e devolveu, nas mãos dela, o que ela tinha como forma de escravizar e chicotear Anima e quem o permitisse.

Quem estava no quilombo, naquela noite de quarta-feira, dia de Xangô, o rei da justiça e o orixá que a rege, podia ouvir por todo o quilombo o que Anima gritou com lágrimas nos olhos: - Sou livre, nasci livre e luto por liberdade com os meus, com aqueles que lutam de verdade, e não só nos papéis, como os brancos, que em sua maioria vão morrer impregnados pelo racismo que os alimenta. Kaô Kabecilê, Xangô! Por mais de cento e trinta anos lutando contra o racismo nosso de cada dia! Nenhum passo atrás! Eu tenho um sonho! Ubuntu! Ninguém solta a mão de ninguém!

Ao final do discurso, com os olhos marejados e com punhos cerrados, jurou não desistir jamais e seguiu noite adentro com seus irmãos de verdade, criando estratégias de luta e de retomada da liberdade verdadeira nos tempos modernos. De longe podia se ver a roda que se formou no quilombo, com Anima no meio e no alto de uma pedra clamando e lutando por justiça.


(Cadernos Negros 42, 2019, p 105-110)

A insônia da moça

 

Quinze horas. Talvez desse para fazer mais duas viagens. Dezoito horas. O dia estaria ganho. Dormiria na garagem e pegaria no volante às seis da manhã, no fim do mês estaria com uma boa grana de horas extras.

Primeira, segunda terceira. Ponto. Primeira, segunda, sinal. Terceira, quarta, cigarro, ponto. Corcel, caminhão, fusca, guarda. Motor, suor, atenção.

Motorista de ônibus é tudo assassino. Porrada! Porrada! A multidão querendo mais sangue. Vinte anos de volante, uma mulher, uma amante, oito filhos e a merda do sindicato na mão dos pelegos. Vinte anos de primeira, segunda, ponto. Sem nenhum acidente.

Não dormia há uma semana. Talvez duas. Três. O corpo caído, meio torto no ar, olhos fundos, inexpressivos. Era um retrato medíocre. Precisava dormir de qualquer jeito, fechar os olhos e corpo na doce maldição do sono. Um sono eterno, de pedra, inviolável. Sem sonhos.

Já dividia a noite com fantasmas, com pequenos monstros cotidianos que, pela rotina do dia a dia, se tornaram parte de seu mundo sem que percebesse. Um alarido de ecos perturbava as coisas sem sentido. Uma mulher com insônia vê o mundo de uma forma lógica, mas depois se arrepende. Se culpa e finge que não sabia como mexer no destino. Elas pensam que os machões não sabem dessa artimanha.

Caminhou como se fosse a algum lugar ali dentro do quarto. Caminhou decidida e deu de cara com a parede. Voltou-se em busca de um caminho. Parou. Duvidou de tudo por um instante. Andou em si. Parou. Fez isso muitas vezes. Desistiu. Em vão. Qualquer um sabe que caminhar num quarto semi escuro não diminui a

Olhou pelo buraco da fechadura certa de espreitar um fato. Alguém. Qualquer coisa com vida, até mesmo uma daquelas ratazanas que sempre surpreendiam, brotando do assoalho cheio de rangidos e cupim. Nada. Silêncio esquisito lá fora. Voltou-se desiludida e olhou a cama. Acariciou o pulso esquerdo vendo a gilete sobre o travesseiro. Os cabelos marrons caiam-lhe desalinhados pelo rosto. Olhou a cama inútil. Inútil. Com aquele lençol branco e encardido. Desconfiada de si repetiu os mesmos movimentos tentando dominar o espaço. Caminhar, ir voltar, parar...A parede com restos da cara de Roberto Carlos, a jarra da mesa, flores de plástico salpicadas de cocô de mosca, a Bíblia, o urinol ágata com as beiras lascadas, a bolsa de nailon na cadeira, o litro de álcool. Passou por dentro das mesmas coisas sem nenhuma migalha de imaginação para qualquer outro ato. Que ato idiota! “Chego a ficar furioso, mas para uma mulher desesperada caminhar é um bom destino.”

Siririca violenta, como se tecesse apressadamente um ato de vingança com aquele gesto escroto e desmedido. Depois sentiu nojo de tudo. Um nojo imprestável, murrinhento que se diluiu com a imagem do homem. Um homem não tem mistério e qualquer um vale o gozo, são todos diferentes. ...Miserável, sabia disto e chorou baixinho. Parecia um bichinho abandonado. Levantou-se arrogante, impôs-se diante da própria tragédia. Uma semana de insônia, talvez um mês. Não resistiu e jogou-se sobre o colchão de molas barulhentas. Chorou mais .

Pequenos duendes bailaram diante dos seus olhos, dentro das lágrimas. Milhares deles pendurados pelas coisas do quarto. Fez um sinal obsceno para tudo, com descaso espalho uma gargalhada feia que pulverizou os macaquinhos. aliviou-se, mas lá no fundo do peito, o medo permaneceu estático.

Caminhar. Deu movimento ao verbo. Parecia uma condenada com tanta certeza. Cabeça baixa, olhos no chão, caminhando. Olhos no nada, caminhando. Olhos para dentro, caminhando. Olhos sem razão, caminhando. Olhos mortos caminhando. Não perdeu o movimento até que o sol clareou.

Uma, duas, três, talvez quatro semanas sem dormir. Um absurdo. Abriu o móvel tirou a blusa, a calcinha verde – fundo encardido - , a saia quadriculada colocou tudo sobre a cama. Deu um pontapé. Odiava a cama pela sua inutilidade. Talvez um ano, oito meses, nove dias. Vinte e nove anos e nem príncipe encantado, nem casa arrumada, pinguim sobre a geladeira, e um casal de crianças. Perdera a razão, os sonhos, a esperança. Vinte e cinco anos. Enxoval, convites. O príncipe encantado, sargento do Corpo de Bombeiros, era casado e tinha quatro filhos. A mãe morreu de desgosto por sua culpa. O enterro foi simples.

Arreganhou as pernas na pia do quarto e lavou a xoxota. O rosto. Os sovacos. Maquiou-se . Sobre as olheiras usou algo azul. Cresceu os cílios. Passou batom vermelho. Vivo e moderno. Vestiu-se. Admirou-se no espelho e sentiu-se jovem e resignada. Sorriu das coisas, de tudo, mas não havia fantasmas nem doentes. Só as coisas de pegar, usar, quebrar, coisas de coisas sem outros sentidos. Mesmo assim ela insistiu em sorrir como se valesse a pena. Não valia. Tudo que lhe valia, o pecado e a insônia tinham matado. Ela sabia disto e não impediu as lágrimas. Borrão. Maquilagem. Sentiu tristeza de mulher solitária. Inconfessável. Resignou-se e dominou o dilúvio que ameaçava vazar pelos olhos.

O tempo estava passando o caos lá fora em pouco teria sentido. O guarda da esquina apitando e os pombos na calçada. Tanto tempo sem dor não lhe causava cansaço. Havia vida lá fora, árvores, carros, pessoas, bares e esperança. Pegou a bolsa e saiu decidida a viver. Havia vida, compreensão e esperança. Tudo lá fora esperando e ela se daria de corpo e alma.

Cruzou com uma ratazana no corredor. Um susto. Desceu as escadas. A luz do dia doeu nos olhos, mas a vida pulsava. Obrigado, meu deus! e caminhou misturando-se às outras pessoas. Era a multidão. Parou embaixo de uma placa de siga em frente. Estava calma e o ônibus vinha na curva, veloz, de quarta. Ela estava calma e pertencia à multidão sem rosto. Ninguém viu. Só depois, dez segundos depois, quando alguém disse: ela parece que está dormindo. O motorista pálido, afirmava que não teve culpa.

“Ela parece que está dormindo”. Quanta ironia!

Dançando Negro

 

Quando eu danço

atabaques excitados,

o meu corpo se esvaindo

em desejos de espaço,

a minha pele negra

dominando o cosmo,

envolvendo o infinito, o som

criando outros êxtases...

Não sou festa para os teus olhos

de branco diante de um show!

Quando eu danço há infusão dos elementos,

sou razão.

O meu corpo não é objeto,

sou revolução.

 

(Cadernos Negros: os Melhores Poemas, 1998, p. 57)

Amor do fruto deformado

 

eu sangro e choro

sou quase capaz de ser refeito.

falo às pedras que um dia

elas serão instrumento

para eu conseguir o nosso pão.

falo o meu silêncio

no vácuo das emoções que me arrancaram.

só os escorpiões não sabem

quantas vezes me ferrei de solidão.

 

eu, maldito nós, sempre feito de pedra

que não se dá jamais ao absurdo

que nunca se vê fora do próprio útero

mas que finge ser vida da vida.

 

te encontrei semente estéril

flor de todas as culpas e sem mistério

sendo por dentro um só vazio

peito amargo, cheio de feridas.

te vi transformada num lugar

que ninguém ousaria se esconder

que nem mesmo um verme habitaria.

mas raspei da mente o medo

a hipocrisia, os sonhos pretendidos

ensanguentei minha cultura e mitos

até que por fim juntei-me a ti.

 

agora o tempo é um

amontoado de horas sórdidas

e o ódio se tempera com angústia

e a frustração remenda trapos

e as cinzas do amor já são do vento

eu me vejo por dentro dos momentos

tramando sinais esquizofrênicas

te suicidando num caso ao acaso

utilizando a morte pra te ver morta

e ter com isto

um sofrimento só pra mim.

 

amores...busquei-os feito tolo

e em desamores desaguei.

bebi a seiva das dores

na fonte dos sonhos. venenos

embriagar-embriaguei: embrionei-me

sinas inesperadas

tristezas somente imaginadas

nos versos de ocasionais poetas

e nas verdades contidas

no coração da gente simples

que o cotidiano esmaga e oculta

sem que ninguém veja

o desespero exposto nos varais.

não encontrei minha cria, meu rebento.

o silêncio do teu corpo

posso traduzir agora

com meu próprio silêncio

pois o passado nos deixou apenas

esta ausência da nossa carne

entre os fatos da vida.

por amor mata-se as ilusões

cega-se o coração, vende-se a alma

e, ainda, por amor perde-se a calma

de esperar que o amor se faça amor.

(Cadernos Negros 9)

Outras Notícias

Não vou às rimas como esses poetas

que salivam por qualquer osso.

Rimar Ipanema com morena

é moleza,

quero ver combinar prosaicamente

flor do campo com Vigário Geral,

ternura com Carandiru,

ou menina carinhosa / trem pra Japeri.

Não sou desses poetas

que se arribam, se arrumam em coquetéis

e se esquecem do seu povo lá fora.

(Cadernos Negros: os Melhores Poemas, 1998, p. 58)