Canção

A Bernardino Machado

 

I

Mostraram-me um dia na roça dançando

Mestiça formosa de olhar azougado

Co’um lenço de cores nos seios cruzado,

Nos lobos da orelha pingentes de prata.

Que viva mulata!

Por ela o feitor

Diziam que andava perdido de amor.

 

II

De entorno dez léguas da vasta fazenda

A vê-la corriam gentis amadores,

E aos ditos galantes de finos amores,

Abrindo seus lábios de viva escarlata,

Sorria a mulata,

Por quem o feitor

Nutria quimeras e sonhos de amor.

 

III

Um pobre mascate, que em noites de lua

Cantava modinhas lundus magoados,

Amando a faceira de olhos rasgados,

Ousou confessar-lho com voz timorata...

Amaste-o mulata!

E o triste feitor

Chorava na sombra perdido de amor.

 

IV

Um dia encontraram na escura senzala

O catre da bela mucamba vazio:

Embalde recortam pirogas o rio,

Embalde a procuram nas sombras da mata.

Fugira a mulata,

Por quem o feitor

Se foi definhando, perdido de amor.

(1870)

Na Roça

Ao Dr. Luís Jardim

 

Cercada de mestiças, no terreiro,

Cisma a Senhora Môça; vem descendo

A noite, e pouco e pouco escurecendo

O vale umbroso e o monte sobranceiro.

 

Brilham insetos no capim rasteiro,

Vêm das matas os negros recolhendo;

Na longa estrada ecoa esmorecendo

O monótono canto de um tropeiro.

 

Atrás das grandes, pardas borboletas,

Crianças nuas lá se vão inquietas

Na varanda correndo ladrilhada.

 

Desponta a lua; o sabiá gorjeia;

Enquanto às portas do curral ondeia

A mugidora fila da boiada...

 

A Negra

Teus olhos, ó robusta criatura,
Ó filha tropical!
Relembram os pavores de uma escura
Floresta virginal.

És negra sim, mas que formosos dentes,
Que pérolas sem par
Eu vejo e admiro em rúbidos crescentes
Se te escuto falar!

Teu corpo é forte, elástico, nervoso.
Que doce a ondulação
Do teu andar, que lembra o andar gracioso
Das onças do sertão!

As lânguidas sinhás, gentis, mimosas,
Desprezam tua cor,
Mas invejam-te as formas gloriosas
E o olhar provocador.

Mas andas triste, inquieta e distraída;
Foges dos cafezais,
E no escuro das matas, escondida,
Soltas magoados ais...

Nas esteiras, à noite, o corpo estiras
E com ânsias sem fim,
Levas aos seios nus, beijas e aspiras
Um cândido jasmim...

Amas a lua que embranquece os matos,
Ó negra juriti!
A flor da laranjeira, e os níveos cactos
E tens horror de ti!...

Amas tudo o que lembre o branco, o rosto
Que viste por teu mal,
Um dia que saías, ao sol posto,
De um verde taquaral...
(Noturnos 1882).

As Velhas Negras

A Mme. Aline de Gusmão

 

As velhas negras, coitadas,

Ao longe estão assentadas

Do batuque folgazão.

Pulam crioulas faceiras

Em derredor das fogueiras

E das pipas de alcatrão.

 

Na floresta rumorosa

Esparge a lua formosa

A clara luz tropical.

Tremeluzem pirilampos

No verde-escuro dos campos

E nos côncavos do val.

 

Que noite de paz! que noite!

Não se ouve o estalar do açoite,

Nem as pragas do feitor!

E as pobres negras, coitadas,

Pendem as fontes cansadas

Num letárgico torpor!

 

E cismam: outrora, e dantes

Havia também descantes,

E o tempo era tão feliz!

Ai! que profunda saudade

Da vida, da mocidade

Nas matas do seu país!

 

E ante o seu olhar vazio

De esperanças, frio, frio

Como um véu de viuvez,

Ressurge e chora o passado

- Pobre ninho abandonado

Que a neve alagou, desfez ...

 

E pensam nos seus amôres

Efêmeros como as flôres

Que o sol queima no sertão...

Os filhos quando crescidos,

Foram levados, vendidos,

E ninguém sabe onde estão.

 

Conheceram muito dono:

Embalaram tanto sono

De tanta sinhá gentil!

Foram mucambas amadas,

E agora inúteis, curvadas,

Numa velhice imbecil!

 

No entanto o luar de prata

Envolve a colina e a mata

E os cafezais em redor!

E os negros, mostrando os dentes,

Saltam lépidos, contentes,

no batuque estrugidor.

 

No espaçoso e amplo terreiro

A filha do Fazendeiro,

A sinhá sentimental,

Ouve um primo recém-vindo,

Que lhe narra o poema infindo

Das noites de Portugal.

 

E ela avista, entre sorrisos,

De uns longínquos paraísos

A tentadora visão...

No entanto as velhas, coitadas,

Cismam ao longe assentadas

Do batuque folgazão...

(Agir,1967)

 

A Sesta

 

Na rêde, que um negro moroso balança,

Qual berço de espumas,

Formosa crioula repousa e dormita,

Enquanto a mucamba nos ares agita

Um leque de plumas.

 

Na rêde perpassam as trêmulas sombras,

Dos altos bambus;

E dorme a crioula de manso embalada,

Pendidos os braços da rêde nevada

Mimosos e nus.

 

A rêde, que os ares em 'tôrno perfuma

De vivos aromas,

De súbito pára, que o negro indolente

Espreita lascivo da bela dormente

As túmidas pomas.

 

Na rêde suspensa dos ramos erguidos

Suspira e sorri

A lânguida môça cercada de flôres;

Aos guinchos dá saltos na esteira de cores

Felpudo sagüi.

 

Na rêde, por vêzes, agita-se a bela,

Talvez murmurando

Em sonhos as trovas cadentes, saudosas,

Que triste colono por noites formosas

Descanta chorando.

 

A rêde nos ares de nôvo flutua,

E a bela a sonhar!

Ao longe nos bosques escuros, cerrados,

De negros cativos os cantos magoados

Soluçam no ar.

 

Na rêde olorosa, silêncio! deixai-a

Dormir em descanso! ...

Escravo, balança-lhe a rêde serena;

Mestiça, teu leque de plumas acena

De manso, de manso ...

 

O vento que passe tranqüilo, de leve,

Nas fôlhas do ingá;

As aves que abafem seu canto sentido;

As rodas do engenho não façam ruído,

Que dorme a Sinhá!

(Agir,1967)

 

Canção

A Bernardino Machado

 

I

Mostraram-me um dia na roça dançando

Mestiça formosa de olhar azougado

Co’um lenço de cores nos seios cruzado,

Nos lobos da orelha pingentes de prata.

Que viva mulata!

Por ela o feitor

Diziam que andava perdido de amor.

 

II

De entorno dez léguas da vasta fazenda

A vê-la corriam gentis amadores,

E aos ditos galantes de finos amores,

Abrindo seus lábios de viva escarlata,

Sorria a mulata,

Por quem o feitor

Nutria quimeras e sonhos de amor.

 

III

Um pobre mascate, que em noites de lua

Cantava modinhas lundus magoados,

Amando a faceira de olhos rasgados,

Ousou confessar-lho com voz timorata...

Amaste-o mulata!

E o triste feitor

Chorava na sombra perdido de amor.

 

IV

Um dia encontraram na escura senzala

O catre da bela mucamba vazio:

Embalde recortam pirogas o rio,

Embalde a procuram nas sombras da mata.

Fugira a mulata,

Por quem o feitor

Se foi definhando, perdido de amor.

(1870)

 

 

O Juramento do Árabe

A Teixeira de Queirós

 

Baçus, mulher de Ali, pastôra de camelas,

Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrêlas,

Wail, chefe minaz de bárbara pujança,

Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança;

Corre, célere voa, entra na tenda e conta

A um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.

 

"Baçus, disse tranqüilo o hóspede gentil,

"Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Wail."

 

Disse e cumpriu.

Foi esta a causa verdadeira

Da guerra pertinaz, horrível, carniceira

Que as tribos dividiu. Na luta fratricida

Omar, filho de Amru, perdera o alento e a vida.

 

Amru que lanças mil aos rudes prélios leva,

E que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva,

Incansável procura, e é sempre embalde, o vil

Matador de seu filho, o tredo Muhalhil.

 

Uma noite, na tenda, a um môço prisioneiro,

Recém-colhido em campo, o indômito guerreiro

Falou severo assim:

"Escravo, atende, e escuta:

"Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,

"Em que vive o traidor Muhalhil, dize a verdade;

"Dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdadel"

 

E o moço perguntou:

“É por Alá que o juras?”

 

- Juro, o chefe tornou –

“Sou o homem que procuras!

“Mulhalil é o meu nome, eu fui que espedacei

“A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!”

(Amru volveu: - És livre, Alá seja contigo!)

 

 

Na Roça

Ao Dr. Luís Jardim

 

Cercada de mestiças, no terreiro,

Cisma a Senhora Môça; vem descendo

A noite, e pouco e pouco escurecendo

O vale umbroso e o monte sobranceiro.

 

Brilham insetos no capim rasteiro,

Vêm das matas os negros recolhendo;

Na longa estrada ecoa esmorecendo

O monótono canto de um tropeiro.

 

Atrás das grandes, pardas borboletas,

Crianças nuas lá se vão inquietas

Na varanda correndo ladrilhada.

 

Desponta a lua; o sabiá gorjeia;

Enquanto às portas do curral ondeia

A mugidora fila da boiada...

 

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O Juramento do Árabe

A Teixeira de Queirós

 

Baçus, mulher de Ali, pastôra de camelas,

Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrêlas,

Wail, chefe minaz de bárbara pujança,

Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança;

Corre, célere voa, entra na tenda e conta

A um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.

 

"Baçus, disse tranqüilo o hóspede gentil,

"Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Wail."

 

Disse e cumpriu.

Foi esta a causa verdadeira

Da guerra pertinaz, horrível, carniceira

Que as tribos dividiu. Na luta fratricida

Omar, filho de Amru, perdera o alento e a vida.

 

Amru que lanças mil aos rudes prélios leva,

E que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva,

Incansável procura, e é sempre embalde, o vil

Matador de seu filho, o tredo Muhalhil.

 

Uma noite, na tenda, a um môço prisioneiro,

Recém-colhido em campo, o indômito guerreiro

Falou severo assim:

"Escravo, atende, e escuta:

"Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,

"Em que vive o traidor Muhalhil, dize a verdade;

"Dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdadel"

 

E o moço perguntou:

“É por Alá que o juras?”

 

- Juro, o chefe tornou –

“Sou o homem que procuras!

“Mulhalil é o meu nome, eu fui que espedacei

“A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!”

(Amru volveu: - És livre, Alá seja contigo!)

Griot & guerreiro

Lélia Gonzalez*

 

A poesia de Abdias Nascimento tem muito a ver com sua pintura e seu teatro. Exatamente porque cada registro nos remente a outro, numa espécie de circularidade, tematizando, em suas respectivas linguagens, um campo cultural alternativo àquele totalitariamente imposto pela cultura dominante: Abdias “poeteia, pinta e teatraliza” porque e enquanto negro. A força metafórica dos seus versos, a força colorida das formas de seus quadros, a força dramática de suas peças, ele não buscou nas escolas ocidentais especializadas em “fazer artistas”, mas nesse campo cultural alternativo, repito, reelaborado e recriado pelo povo negro em nosso país. É do axé (para os nagôs) ou do muntu (para os bantus), é dessa força vital doadora da existência e da transformação dos seres que ele retira a energia que perpassa os três registros em que sua criação artística se expressa.

Como nos diz Muniz Sodré, o "muntu, assim como o axé, existe nos animais, minerais, plantas, seres humanos (vivos e mortos), mas não como algo imanente: é preciso o contato de dois seres para a sua formação. E, sendo força, mantém-se, cresce, diminui, transmite-se em função da relação ontológica do indivíduo com os princípios cósmicos (orixás), com os irmãos de linhagem, com os ancestrais, com os descen­dentes" (1983, p. 129-130).
Não é por acaso que, no poema de abertura, "Padê de Exu Liber­tador", o autor invoca esse princípio da existência individualizada e também princípio dinâmico de comunicação, veiculador de axé que é Exu, dizendo:

(...)
imploro-te Exu
plantares na minha boca
a teu axé verbal
restituindo-me a língua
que era minha
e ma roubaram
(...)

É recebendo o axé plantado por Exu (e atente-se para o planta­do), que eu posso retomar a língua que me foi roubada: é absorvendo esse axé que retomarei o conhecimento de um saber que me foi tirado pela violência física, pelo terrorismo cultural, pelo etnocídio a que fui submetido por aqueles que escravizaram meus ancestrais e que, hoje, me exploram e discriminam, afirmando sua "superioridade" e sua "ci­vilização"; é retomando o "meu falar antigo/ por tua força devolvido", que não me perderei nas armadilhas das abstrações vazias que só fariam me arrancar do chão que piso com pés desnudos e ligeiros na dança do aqui e do agora, onde passado e futuro estão presentes. Por isso mesmo, com teu axé, "percorrerei as distâncias do nosso aiyê/ feito de terra incerta e perigosa"...

Por outro lado, é importante ressaltar que esse poema de aber­tura não ocupa tal lugar por mero acaso. Ele aí está como elemento in­dispensável à abertura do ritual que cerimonializa as atividades da co­munidade-terreiro. E falar de ritualidade é dizer de uma das marcas típi­cas da cultura negra. "Todo ritual, diz-nos Muniz Sodré (op. cit., p. 130), implica num conjunto de procedimentos (verbais e não-ver­bais) destinados a fazer aparecerem os princípios simbólicos do grupo, aquilo que os gregos acabaram chamando de verdade (alétheia)”. E é fazendo o seu padê de Exu que Abdias "abre os trabalhos" rituais para que sua verdade, sua negra verdade de homem negro, possa surgir no xirê de sua vida de an-danças por esse aiyê, "feito de terra incerta e peri­gosa". E, na invocação dos orixás, convertido em griot, ele conta can­tando, ao ritmo do rum-rumpi-lé e do agogô, o percurso e os caminhos do filho de Josina, a de braços escarificados em "buquês de queima­duras e cicatrizes" pelos tachos de pasta fervente de goiaba.

De Exu a Oxalá, em terras africanas ou da diáspora, os orikis/poe­mas se seguem, cumprindo os procedimentos do ritual nagô/bantu. Em linguagem ocidental, diríamos que é este o modo de estruturação do livro.

"Mãe" é, sem a menor dúvida, um dos melhores poemas do texto, dada a sua grande riqueza metafórica. O elemento líquido — desde "as águas primordiais de Olokurn" (que nos remetem a Isis, Oxum e a todas as grandes-mães míticas), ao leite e ao sangue — constitui o mar por onde o griot/poeta navega suas lembranças de infância, suas an-danças solimônicas com amigos/irmãos, suas denúncias de negro revoltado, seus soluços de sensibilidade ferida, seu amor generoso pelos de sua linhagem. Na verdade, ele narra o seu mergulho no ventre da vida.

O axé, implorado no poema de abertura, manifesta-se na força da palavra que navega "do Egito antigo a Oshogbo a Franca", cantando o amor que exalta Josina doceira, mãe-de-leite de filhos alheios, senhora do saber das ervas que curam os males e as mazelas dos que a ela recorriam (e que não foram poucos). Josina, a do amor valente, "jamais enfraquecido/ na queixa ou na lágrima". Josina, mulher negra oprimida e explorada pelos senhores da terra francana, terra que "se alimentou/ do teu suor/ dos teus ossos/ de tua carne/ golpeada pela necessidade". Josina, mulher de José, "não o carpinteiro/ mas o sapateiro". Josina, mãe de Benedito, Rubens, Dedé, Oliveira metalúrgico, Antônio, Abdias e Ismênia, brotados das águas e do sangue de seu ventre (não cheio de graça, mas de axé). Josina, a dos braços vigorosos "nos quais/ navego teus abraços/ nesses braços que são teus/ traço a ternura dos lábios meus/ à flor borbulhante do sangue/ que chamusca tua pele escura/ no tacho da tua existência/ tão curta de alegria/ tão sofrida de vivência/ raiz fincada na terra ao/ infinito de tua compaixão/ unicamente parti­lhada/ à graça pura da doação". Ninguém melhor que o poeta negro para cantar o amor à mulher-mãe.

Mas o canto à mulher-filha também se faz presente em "Evoca­ção da Rosa", oferecido a Yemanjá, a quem conheci nas terras geladas de Búfalo, qual um raiozinho de sol dos trópicos exilado. E o que se tem, na "Evocação da Rosa" é mais uma doação de amor paterno que fala da própria infância para a infância da filhinha distante. E, na histó­ria da gatinha Rosa, fica uma espécie de apelo que, dada a continuação do xirê da vida, tenta dizer à filha-criança, ainda não mulher: — Vê? Temos algo em comum. Eu também já fui criança.

Já em "Lucina" se delineia o amor à mulher-amada, metonimi­zada em Lua. Uma sensualidade tépida, que perpassa pelo poema, des­vela a sensibilidade do amante (filho de Oxum, é bom não esquecer) em seus doces apelos à amada: "Vem Lucina pálida/ que ao teu luar/ beijarei teu lunar" ou, então, "Vem Lucina pálida/ genuflexo beijarei teu sexo". Mas eis que o queixume do amante, que deseja sua "rosa da noite/ se abrindo toda da lua ao reflexo", explode no grito alegre do africano "ministro alufá/ Xangô servidor do sexo/ bebedor de aluá" que, em tempo de lunação, clama por lues, "lues não/ Tragam-me luas Lanas/ venham luandas aruandas" ... E neste poema de amor, onde nosso griot fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas nos volteios das danças e contra-danças do ato de amor (perplexo, complexo, re­flexo, luniflexo, desflexo etc). Mas só no finalzinho do poema, encon­trei aquela que, a meu ver, o caracteriza sem rodeios: amplexo. Afinal, já nos primeiros versos, nosso griot fala de um escafandrista que mergu­lha em profundas águas enluaradas...

Aliás, a história desse poema é bastante curiosa. Primeiro, porque "Lucina" foi o primeiro poema publicado do autor (em Paris, na revis­ta Le temps des loups, n° 45, 1969). Segundo, porque se trata de seu único poema por encomenda: justamente para fazer parte de uma anto­logia que tematizava a Lua, com a contribuição de poetas de todas as partes do mundo. Vivia-se, naquele momento, o impacto do lançamen­to do Sputnik e demais satélites artificiais. Por essas e outras, ele nada teria a ver com o xirê que estamos acompanhando. Mas quem é que po­de determinar os desígnios da criação poética? Sobretudo quando ela se faz sob a égide dos orixás, esses doadores de axé?

Os passos do ijexá, cantado pelo griot/ poeta, conduzem-nos ao solo sagrado de Oshogbo. E aqui, o cântico se eleva, intensificado pelo toque dos atabaques, agora na exaltação da Grande-Mãe Mítica. Em sua "Prece a Oxum", o filho-peixe mensageiro, num relato indignado, de­nuncia os senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacri­ficam milhões de crianças negras aos ídolos de seus terrorismo colonialista. E mais, sob a hipocrisia do que chamam de "sincretismo", obri­gam-nos a, "em lugar do vosso sagrado nome/ invocar nomes profanos/ nossa senhora da conceição/ nuestra señora de la caridad del cobre/ fe­tiches pagãos insanos".

Na denúncia indignada, afirma-se a heterogeneidade em face da ideologia dominante ocidental que, em sua fome de controle absoluto, só permite a afirmação da diferença, justamente porque esta não passa de um disfarce da sua exigência totalitária de homogeneidade trans­parente.

Chegamos agora ao ponto culminante do nosso xirê. Aqui, a hete­rogeneidade se afirma, plena de axé, no canto forte do griot e no toque acelerado do adarrum. Pisando firme no espaço sagrado dos orixás, dos ancestrais, do mito e do rito, a dança também se acelera. E do peito do griot explode um oriki tonitroante de conclamação à luta, imagem ter­rível de Xangô Justiceiro. Pontuado pelo ritmo candente dos atabaques, aqui e ali marcadamente nomeados, o brado ecoa vibrante, arremetendo contra a "descivilização ocidental", etnocida em sua "universalidade" ditatorial, letal em seu unitarismo sectário ("na sola dos pés sangren­tos/ temos dançado/ o madrigal da escravidão/ o minueto do tráfico/ o fado do racismo/ agora na pele flamejante dos tambores dancem eles o nosso bailem de guerra/até despontar aquela aurora/ de dançar o afoxé/ da nossa batalha final vitoriosa").

Por tudo isso, há que desfraldar a bandeira tricolor, não aquelas do imperialismo ocidental, mas a do pan-africanismo, "úmida do san­gue negro derramado/ no combate vermelho sempre continuado/ pela integridade verde da herança nativa poluída". Em sua dança de guerra, transfigurado em Ogum, com o ixé de Oxum em seu peito fincado, nos­so griot de novo 'firma o ponto" da heterogeneidade: "Somos a semen­te noturna do ritmo/ a consciência amarga da dor/ florescida nos toques anunciadores/ da perenidade das coisas vivas".

Empunhando o agadá, "obrigação a Ogum e lfá", o griot/guer­reiro conclama seu povo a transfigurar o tempo do chorar e reclamar em tempo de afirmação do próprio ser, através da luta semeada com deci­são, ampliada "com ardor e paixão", às custas da "incompreensão/ do inimigo ou do irmão". Pois só o ser-em-luta é capaz de se desvencilhar das armadilhas do louvor e do egoísmo, do desejo de glória ou do medo da morte, todas elas armadilhas, sobretudo a última, "do insensível mundo branco". Afinal, 'Tempo de viver/ (ensina Ajacá)/ é tempo de morrer". E para aqueles que ainda titubeiam, continua: "uns já estão mortos/ vivendo/ nós estaremos vivos/ morrendo"...

"O Agadá da Transformação", a meu ver, é como um testamen­to mito-poético que o guerrilheiro Abdias lega a seus irmãos. Mas há que estar no campo alternativo da cultura negra para que o axé/muntu nele contido possa ser absorvido, afim de que se apreenda o seu segredo. Laroié!

No xirè de sua vida, nosso griot canta muitos outros orikis, dançando-os ao ritmo do opanijé, do ijexá, do alujá, do adarrum e tantos outros, ao passar por terras míticas e/ou reais. Deles aqui não falei, para não ser repetitiva ou por efeitos de minha própria limitação. Mas diante de um deles me curvo em silêncio respeitoso, já que a minha iniciação até aí não chegou. Refiro-me ao oriki de encerramento, "Axexê em Oxalá"...

E, retomando o canto de outro poeta, ficamos por aqui:

Tá contada a minha história
Verdade, imaginação
Espero que o Sinhô
Tenha tirado uma lição:
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
(...)

Afinal, a lição que nos foi dada aqui é a de que, inclusive, a gente tem o modo da gente pra contar a nossa história. ORAYEYEO! AXÉ/ MUNTU! 

Rio de Janeiro, 18/01/1984

 

Referências

GONZALEZ, Lélia. Griot e guerreiro. Prefácio a NASCIMENTO, Abdias. Axés do sangue e da esperança (orikis). Rio de Janeiro: Achiamé/RIOARTE, 1983.

SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Ed. Codecri, 1983.

______________________

*Lélia Gonzalez, pensadora e ativista, é autora, entre outros, de Por um feminismo afro-latino-americano (2020) e Primavera para as rosas negras (2018). Para mais informações consultar http://www.letras.ufmg.br/literafro/ensaistas/1204-lelia-gonzalez.

 

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