A noite dos Cristais (trechos)

Sou estudante de línguas, faço francês.

– Para saber bem uma língua estrangeira é necessária a convivência com seus nativos, dizia o professor. Como não posso passear na França e nem no Canadá, fui para Caiena nas Guianas. É mais barato, muito mais próximo e faz calor.

Sou professor, e assim, após quatro anos de uma economia de guerra, comprei as passagens. Tirei férias no trabalho e depois de cinco dias de viagem de ônibus e mais algumas horas de tapuia, desembarquei em Caiena.

Por ser um sujeito moderado instalei-me numa casa de pensão, um velho casarão de dois andares. Meu quarto ficava no segundo piso e aos fundos, de onde eu via por cima uma baixa construção em L, com uma cozinha e outros quartinhos para alugar.

A proprietária, Madame Mary, era uma velhota de setenta e oito anos de vida e alegria. Era pequena, de cabeça grisalha, com calvas aqui e ali. Usava óculos fortes e quando falava olhava por sobre as lentes. Enrugada, tinha uma corcunda e as unhas dos pés e mãos encalacradas. Gostava de papear l' quando ria, fazia saltitar o ventre e os olhos lacrimejavam.

Seu esposo, senhor Benédict, era também uma pessoa muitíssimo interessante. Tinha mais de noventa anos, andava com muita dificuldade, era magro, cabeçudo, e estava sempre vestido com roupas que certamente não eram suas.

Homem expansivo, fumava quando lhe davam, bebia café, tocava violão e ainda cantava.

Algumas noites depois do jantar, nos reuníamos na cozinha dos fundos, de onde eu via melhor os outros quartos. O primeiro era ocupado por um trabalhador do comércio que retornando no fim do dia passava ligeiro, murmurando um boa noite, entrava em seu quarto, fechava a porta, deitava-se e ligava o rádio em alto volume. Ao lado morava um músico que tocava na noite e dormia de dia. O outro era ocupado por um jovem Hmong que fazia questão de não conversar. Havia um último, o menor, desocupado.

Falávamos de tudo nas reuniões, inclusive do tempo. Uma noite Benédict perguntou-me qual era a razão de minha viagem. Eu disse que queria saber bem a língua francesa, que gostava de ir a lugares desconhecidos e de conhecer outras culturas.

– Fala outras línguas? Perguntou-me. Disse-lhe que já estudara um pouco de espanhol, inglês, italiano e até de russo, riu, mas falar só falo francês.

Naquele momento apresentava um olhar vago sem direção, como se procurasse imagens no passado. Disse de repente:

– O Brasil é um grande país.

– Sim, respondi, são oito milhões de quilômetros ...

Depois de urna semana de conversas regadas a café, cigarros e lembranças, já éramos amigos. Uma tarde conversávamos, e repentinamente, como se se livrasse de um grande peso na consciência, disse: – tenho comigo um maço de papéis que penso te interessem muito.

– É verdade? Por quê?

– São escritos feitos por um negro fugitivo do Brasil. Uma vez li um trecho, estão em português, mas parecem ser nomes de ruas ... de pessoas ... não sei bem... acho que são lembranças, não?

Perguntei onde estavam, comigo, respondeu e continuou mastigando as palavras, parece que meu pai conheceu esse homem aqui em Caiena, nunca me disse exatamente, antes de morrer pediu que eu os guardasse. Eles jamais me foram úteis, ri, não tenho mais ninguém no mundo, então eu os passo para você.

Aflitíssimo, perguntei pelos papéis.

– Venha comigo.

Fomos até o seu quarto que era no térreo em frente ao banheiro. Havia uma cama encostada à janela, coberta com uma colcha de retalhos e abarrotada de roupas. Ao lado dela um sofá azul escuro, grandalhão, com braços de madeira e recheado de molas e algodão. Benédict seguia com seus passos trôpegos, demonstrando todo o esforço de suportar o peso de seu quase século. Apoiava-se nas paredes, que um dia foram rosas e nos móveis escuros e pesados, ricos de detalhes, torneios, frisos e contornos. Com grande dificuldade sua mão demente abriu um armário que, como ele, rangia das articulações. Estava entupido de roupas que emanavam um aroma misturado à frieza de quase bolor.

Tudo ali recendia a passado. Vasculhou nos bolsos de um paletó retirou um maço de papéis, sentou-se arquejante, deu-me e disse: – Leia.

Peguei os papéis, voei para o meu quarto, abri, li e tremi de emoção. Eram anotações, rascunhos e desenhos. Não tinham datas e estavam em desordem. Havia nomes de pessoas de lugares, de pratos, de frutas, e até de embarcações. Ainda outros nomes, orações e várias outras anotações dispersas e desconexas.

Eram as lembranças de Gonçalo, um homem que vivera no Brasil à época da escravidão e que um dia fugira para Caiena.

Não tenho mais os papéis comigo, foram tirados de mim por circunstâncias alheias à minha vontade. Tentarei reproduzir com exatidão tudo o que li, algumas passagens são produto do que a leitura reteve, outras, a maioria, correm por conta da imaginação.

Assim, quem os ler poderá também fazer uma releitura seu gosto.

 

 

Eu acredito em Deus.

Por que resolvi escrever? Porque quero que saibam que em um passado não distante, homens vendiam outros homens, e que o futuro saiba que houve um tempo onde homens se sentiam mais humanos que outros.

Escreverei ao sabor das recordações, não me preocuparei com datas, que já me fogem. Tentarei resgatar momentos de minha infância e juventude, que foram as épocas mais doces de minha vida.

Meu nome é Gonçalo Santanna. Nasci na cidade de São Salvador, capital da província da Bahia, Brasil, em 18 ...

Filho natural e único de Amaro Santanna e de Flora Maria. De meus avós conheci somente a mãe de minha mãe, Ombutchê, nagô e velha como o passado.

Meu pai Amaro era um homem de mais de cinquenta anos, da nação haussá, alto, com braços e mãos fortes e de cabeça pequena num rosto quase quadrado. Tinha os olhos grandes, o nariz achatado e os lábios grossos. Seus largos ombros possuíam três marcas; uma da tradição de seu povo, uma segunda de quando foi vendido na África, e outra que recebeu quando desembarcou de um negreiro no Brasil.

Conhecera a escravidão aos dez anos de idade. Em uma manobra de guerra, quando os homens haviam partido para a luta, sua aldeia foi invadida por inimigos acompanhados de homens brancos.

Mulheres e crianças foram presos, acorrentados e levados até o mar, onde eram colocados em grandes fortalezas de pedras, Ajuda, ele dizia. Permaneceu ali vários dias. Em uma madrugada foi colocado com os outros no porão de um navio, fez uma viagem de mais de sessenta dias e chegou quase morto ao Brasil. Foi vendido, e como era um menino e estava debilitado, trabalhou nos afazeres domésticos. Vendido novamente trabalhou vários anos nas plantações de tabaco do Recôncavo. Depois como escravo de ganho, trabalhou como carregador de palanquins.

Uma vez na Ladeira da Montanha em seu trabalho de carregar nos ombros fornidos senhores vermelhões, sofreu um acidente que lhe provocou um defeito na perna esquerda. A partir daí ficou impossibilitado para aquele tipo de função. Então foi trabalhar para um português rico que tinha comércio na cidade baixa. Aprendera a ler e escrever, assim, auxiliava no controle e expedição de fumo, tecidos, aguardente, ferragens e iguarias, que eram comercializados com a costa da África. Trabalhou ali por mais de vinte anos, economizando cada pataca, e assim pôde comprar sua carta de alforria. Dizia sempre que um homem deveria vencer na vida por seu próprio trabalho e suor.

Finalizava, dizendo:

– Filho, só o conhecimento liberta.

Fora instruído no Alcorão, que ele renegava devido à traição, e não aceitava o catolicismo, que abençoara sua escravidão.

Com a carta saiu do comércio e foi trabalhar no Jornal da Bahia. Organizava os pesados tipos de chumbo, carregava galões de tinta, fardos de papel e limpava o chão e as máquinas. No fim do dia, sempre com um jornal debaixo do braço, vinha claudicando, subia as lajes da Rua da Oração e entrava na Rua das Laranjeiras. Quando o avistava de longe, eu corria afogueado para os seus braços, ele me recebia com um abraço e me colocava nos ombros. Eu gostava de ver o mundo lá de cima, me dava o jornal e dizia rindo, quer ler as notícias? Sempre tinha um confeito escondido nos bolsos, perguntava:

– Fez a lição hoje?

Nada tinha de valor material na vida a não ser aquela carta amarelada e com um timbre. Várias vezes com orgulho me mostrara e dizia que ela fora o preço de sua liberdade.

Casou-se tarde com minha mãe alegando que, enquanto fosse escravo, não teria filhos e que jamais seus filhos seriam escravos como ele fora um dia. Disse-me uma vez:

– Você, meu filho, talvez não compreenda por ser uma criança, mas você é muito rico, porque é livre. A carta dizia:

– ...Como tabelião e provedor do Senhor Emídio Paterno de Sant'Anna, recebi do negro Amaro, da nação haussá, cento e cinquenta mil réis em dinheiro, sorna fixada e paga, pela qual eu lhe concedo a liberdade, que poderá gozar a partir de hoje e para sempre; solicito às Justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional que lhe preste toda a ajuda necessária para a conservação dessa liberdade e para sempre, declaro passar-lhe a presente feita e assinada por mim. Bahia, 18 ...

[...]

(A noite dos cristais, p.19-24)

 

****

Nos depoimentos de meu pai para que ele fizesse leituras trouxeram brochuras e tábuas islâmicas chamadas atôs. Ele confessou então que recebera ensinamentos islâmicos em sua infância e que devido aos longos anos de afastamento, não lembrava de mais nada na temida língua. Dizia também que não na praticante do Islão, e que sua memória já não ajudava mais.

– Você é católico, nego?

– Sou não senhor.

– Esse nego é metido a ler, tá sempre com jornal debaixo do braço. Na casa dele tinha dois livros. Não sei porque estas pestes se metem com leituras.

Um cutucão. – Leia macaco!

Meu pai num esforço de memória, tentava traduzir trechos dos escritos, lia alguns fragmentos, subia, voltava e repetia palavras soltas de versículos:

 

... oh misericordioso oh clemente... oh misericordioso... oh clemente... só a ti adoramos... oh misericordioso... no dia do juízo... es está... detrás deles... sua... sua ciência seu trono... em... em nome... de Deus... salve... nem... nem sono...

 

Pressionado pelas autoridades que ansiavam pela identidade de novos revoltosos, cada vez mais sua tentativa de leitura se fragmentava.

Tinha contra si a visita noturna de Mala Abubakar, rnentor da tentativa de revolta. A sua não habilidade nas leituras das tábuas sagradas foi interpretada como maliciosa, e como tática para safar-se dos inquéritos e processos. Foi levado para o calabouço.

Foi trazido em seu lugar um preto de nome Albino, escravo de um advogado, que sabia ler e escrever na complicada língua arabesca e não estava envolvido com os insurrectos. Sob juramento e na presença das autoridades leu mais detidamente os atôs:

 

... do mal tentador furtivo

que sopra no peito dos homens ...

... deveras já chegou a vós

um enviado de entre vós...

.. .livro explícito e ele

tem as chaves do ocultado,

ninguém as conhece...

 

Deu informações sobre costumes e modos islâmicos, falou das orações e da fé.

Existiam os limanos, espécie de bispos; os ladames, seus secretários; e os alufás que eram sacerdotes e havia ainda os sagabamos, que eram imediatos dos juízes, os alikalis.

A suma era o batismo de aceitação e todo iniciado fazia a kola, uma circuncisão. As preces ou kissiuns eram feitas pelos Assivajus ou mestres de cerimônias e as tintas das tábuas eram feitas de arroz queimado.

Para não despertar suspeitas as orações eram sempre feitas em locais diferentes, pela manhã, ao meio-dia, à tarde e ao anoitecer. O que eles chamavam de acubá, ai-lá, ay-á e alimangariba, respectivamente.

Começam as execuções e castigos. Os líderes do movimento tinham penas variadas; no grau máximo a morte; no grau médio, galés em perpétua, e no grau mínimo quinze anos de galés.

Todos os mestres e professores de letras árabes foram condenados. Os corretivos eram aplicados em praça pública para exemplar os demais. Inauguraram um patíbulo na Rua da Forca e pelourinhos extras em Água de Meninos, no Campo Grande e no Campo da Pólvora.

As penas foram cumpridas à risca.

[...]

 

No dia três de março um Decreto era publicado jornal:

.

“...fez sair do território brasileiro todos os africanos libertos perigosos para nossa tranqüilidade. Tais indivíduos, não tendo nascido no Brasil, possuem uma língua, uma religião e costumes diferentes e tendo se mostrado inimigos de nossa tranquilidade durante os últimos acontecimentos, não devem gozar das garantias oferecidas pela constituição unicamente aos cidadãos brasileiros...”

 

Naquele mesmo mês, a goeleta Ninrod, financiada pelo governo inglês, zarpou para a África, levando os muçulmanos, nos da Bahia, perigosos à tranquilidade pública.

Para indenizar o Império por perdas e danos fui resgatado como escravo c vendido junto com outros escravizados para os engenhos de Pernambuco.

Meus pais partiram para a África; já no cais acenando senti o tilintar das correntes. Iniciava-se uma nova fase em minha vida.

Pela primeira vez senti o peso da palavra escravidão.

(A noite dos cristais, p.91-94)

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Luiz Gama 

A cativa

Uma graça viva
Nos olhos lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.

             (Camões)

Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

Ledo o rosto, o mais formoso,
De trigueira coralina,
De Anjo à boca, os lábios breves
Cor de pálida cravina.

Em carmim rubro engastados
Tinha os dentes cristalinos;
Doce a voz, qual nunca ouvira,
Dúlios bardos matutinos.

Seus ingênuos pensamentos
São de amor juras constantes;
Entre a nuvem das pestanas
Tinha dois astros brilhantes.

As madeixas crespas, negras,
Sobre o seio lhe pendiam,
Onde os castos pomos de ouro
Amorosos se escondiam,
Tinha o colo acetinado
– Era o corpo uma pintura –
E no peito palpitante
Um sacrário de ternura.

Límpida alma, flor singela
Pelas brisas embaladas,
Ao dormir d’alvas estrelas,
As nascer da madrugada.

Quis beijar-lhe as mãos divinas,
Afastou-mas – não consente;
A seus pés de rojo pus-me
– Tanto pode o amor ardente!

Não te afastes, lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, neste peito
Tens um trono, mulatinha!...

Vi-lhe as pálpebras tremerem,
Como treme a flor louçã,
Embalando as níveas gotas
Dos orvalhos da manhã.

Qual na rama enlanguecida
Pudibunda sensitiva,
Suspirando ela murmura;
Ai, senhor, eu sou cativa!...

Deu-me as costas, foi-se embora
Qual da tarde do arrebol
Foge a sombra de uma nuvem
Ao cair da luz do sol.

(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981, p. 191-192)

 

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Minha Mãe

Minha mãe era mui bela,
– Eu me lembro tanto dela
De tudo quanto era seu!
Tenho em meu peito guardadas
Suas palavras sagradas
C’os risos que ela me deu.

                   (Junqueira Freire)

Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c’os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava.

Éramos dois – seus cuidados,
Sonhos de sua alma bela;
Ela a palmeira singela,
Na fulva areia nascida.
Nos roliços braços de ébano.
De amor o fruto apertava,
E à nossa boca juntava
Um beijo seu, que era a vida,

Quando o prazer entreabria
Seus lábios de roxo lírio,
Ela fingia o martírio
Nas trevas da solidão.
Os alvos dentes nevados.
Da liberdade eram mito,
No rosto a dor da aflito,
Negra a cor da escravidão.

Os olhos negros, altivos,
Dois astros eram luzentes;
Eram estrelas cadentes
Por corpo humano sustidas.
Foram espelhos brilhantes
Da nossa vida primeiro,
Foram a luz derradeira
Das nossas crenças perdidas.

Tão ternas como a saudade
No frio chão das campinas,
Tão meiga como as boninas
Aos raios do sol de abril.
No gesto grave e sombrio,
Como a vaga que flutua,
Plácida a mente – era a Lua
Refletindo em céus de anil

Suave o gênio, qual rosa
Ao despontar da alvorada,
Quando treme enamorada
Ao sopro d’aura fagueira.
Brandinha a voz sonorosa,
Sentida como a Rolinha,
Gemendo triste sozinha,
Ao som da aragem faceira.

Escuro e ledo o semblante,
De encantos sorria a fronte,
– Baça nuvem no horizonte
Das ondas surgindo à flor;
Tinha o coração de santa,
Era seu peito de Arcanjo,
Mais pura n’alma que um Anjo,
Aos pés de seu Criador.

Se junto à cruz penitente,
A Deus orava contrita,
Tinha uma prece infinita
Como o dobrar do sineiro,
As lágrimas que brotavam,
Eram pérolas sentidas
Dos lindos olhos vertidas
Na terra do cativeiro.


(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981. p. 201-203.)

 

 

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Lá Vai Verso!

Quero também ser poeta,
Bem pouco, ou nada me importa
Se a minha veia é discreta
Se a via que sigo é torta

                        (F. X. de Novais)

Alta noite, sentindo o meu bestunto
Pejado, qual vulcão de flama ardente,
Leve pluma empunhei, incontinente
O fio das ideias fui traçando.

As Ninfas invoquei para que vissem
Do meu estro voraz o ardimento;
E depois, revoando ao firmamento,
Fossem do Vate o nome apregoando.

Oh! Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d'urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
As vias me conduz d'alta grandeza.

Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes,
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
Às longínquas regiões da velha Báctria!

Quero que o mundo me encarando veja
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E, qual Aríon entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo —
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que presa a Líbia adusta.

Com sabença profusa irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo potentosa
A mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.

Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentes — sem juízo,
Irrisórias fidalgas — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;
Espertos maganões, de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.

Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote —
Ao ruflo do tambor, e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes —
Nas danças entrarei d'altas cayumbas.

(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981, p. 110-112)

 

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Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — "Ninguém!" —

         A. E. Zaluar — "Dores e Flores"

 

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe,
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não — das Kalendas,
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulfatos de quinina,
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pingo de rubor,
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
— Neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista —
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, cabos, furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Syiringa
Tinha pelo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos ludus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981, p. 177-181)

 

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